22 de setembro de 1996

7 de setembro de 1996

"A dinâmica das máscaras"

"A dinâmica das máscaras — Jogo de ciladas e embustes do mundo literário é revelado no segundo livro de autor premiado", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7 de setembro de 1996.

Resenha sobre o livro A dinâmica das larvas, de Rodrigo Lacerda, ed. Nova Fronteira.

Este pequeno e inusitado romance, que não é exatamente romance; é comédia, não apenas comédia, mas farsa, talvez comédia-farsa, ou farsesca; esta quase novela levemente realista e de gestos largos; esta peça enfim, mas não de teatro, podendo-se-lhe chamar então peça em prosa; este romance, dizíamos, já nascido imune à estratificação em gêneros, conta, em quatro capítulos, a história de quatro personagens, quatro desejos e um punhado de insetos cientificamente observados em sua fase larval.

“A dinâmica das larvas”, de Rodrigo Lacerda, mesmo autor de “O mistério do leão rampante”, premiado com o Jabuti de Melhor Romance em 1995, é também uma dinâmica das máscaras. Larva, aliás, nunca é demais dizer, vem do latim e pode significar “máscara”. O enredo é um tecido minado, e as armadilhas se vão armando e desarmando à medida que avançamos, capítulo a capítulo, neste jogo de ciladas e embustes.

A história começa no dia em que será anunciado o resultado do concurso de literatura promovido pela Casa do Livro. A verdadeira identidade do autor premiado está muito bem guardada na ponta da língua de uma única mulher. O problema é que dona Míriam, funcionária da Casa do Livro e principal organizadora do evento, não abrirá a boca por nada deste mundo, nem mesmo para beijar seu marido e tentar reativar as rotinas amorosas de um casamento que já vai longe.

O professor Carlos Vasconcelos, doutor em teoria literária, editor universitário e marido, tem um sonho secreto: fundar uma editora que só publique a nata, o supra-sumo da chamada “baixa literatura”: coleções de faroeste, revistinhas picantes e espionagem americana de quinto escalão. Depois de trinta anos de Academia, Vasconcelos deixou de acreditar na grande arte como via de conhecimento para as coisas do mundo, está insatisfeito com seu emprego à frente da editora da universidade e quer autonomia para decidir o que deve e o que não deve publicar.

A tese “Estrutura e dinâmica de uma população de larvas de Myrmeleon uniformis”, do zoólogo Abdias Lobato, é um exemplo do que Vasconcelos julga não dever publicar. O próprio professor Abdias, cientista obcecado, depois de quinze anos curvado sobre o modus vivendi das tais larvas, tornou-se, aos olhos de Vasconcelos, uma patologia ambulante, a representação viva de uma ciência morta — especializada, técnica e melancolicamente afastada da realidade cotidiana dos homens. Mas as larvas são, para o zoólogo, uma questão pessoal. Significam a funcionalidade morfológica levada às últimas conseqüências, exprimem a harmonia inabalável entre modo de vida e organização social, sendo, enfim, o símbolo da metamorfose sem dor e sem filosofia — um exemplo para a raça humana, esta errante, insatisfeita e desajustada espécie.

Para completar o quadro, há ainda o editor de literatura José Fonseca. Sua editora está a dever os tubos aos banqueiros, seu contador já não sabe mais a quem pedir empréstimos e Fonseca, bon vivant incurável, só faz beber e dormir. Entre os editores Fonseca e Vasconcelos está o vencedor do concurso literário. Publicar o romance premiado significa, para os dois, dinheiro. Para Vasconcelos, a única maneira de fundar a editora de seus sonhos. Para Fonseca, a única maneira de não falir.

Em menos de duzentas páginas, Rodrigo Lacerda conta, e muito bem, esta história de arapucas. O texto é ágil, o narrador esbanja competência quando passa, num átimo, do discurso indireto para o indireto livre, o vocabulário arrebanha, sem desafinar, palavras raras e outras deliciosamente informais, os diálogos são engraçadíssimos, mas, como há sempre uma gramática ranzinza (e um crítico implicante) no meio do caminho, o texto não é integralmente escorreito. Sob este aspecto, “O mistério do leão rampante” é um trabalho bem mais artesanal.

A edição da Nova Fronteira é, acima de tudo, sofisticada. A capa é um primor, e a apresentação de Marco Lucchesi é poesia, brilhante e luminosa, do começo ao fim. O único senão fica por conta do texto, anônimo, da contracapa, que inclui entre as qualidades “em geral contraditórias” da escrita de Rodrigo Lacerda a qualidade de ser ao mesmo tempo “engraçada e inteligente”. Ora, ser engraçado e, ao mesmo tempo, inteligente não é ser, nem em geral, contraditório (aliás, os respectivos opostos também podem, por sua vez, conviver, e o texto da contracapa é um exemplo vivo); ser engraçado e inteligente é, acima de tudo, ser o que esta “Dinâmica das larvas” verdadeiramente é: artística do começo ao fim.

Trecho 1:

“Sabe-se que os muitos templos, palácios, pirâmides, monumentos funerários de toda a sorte, e mesmo cidades inteiras que sobreviveram ao tempo, foram salvos da erosão e da força destrutiva dos elementos graças à sedimentação gradual dos terrenos (...). Ora, este pomposo termo, ‘sedimentação’, não passa de outro nome para a santa cruzada das minhocas. Uma vez que a sedimentação é responsável pela preservação dos monumentos, e a minhoca pela sedimentação, conclui-se daí, com boa e irrespondível lógica, que são as minhocas as padroeiras dos arqueólogos e cientistas afins, além das principais guardiãs dos conhecimentos e segredos dos povos do passado (...). Os faraós, Alexandre da Macedônia, os Césares, todos devem, onde quer que estejam, render graças às minhocas, por preservarem-lhes do ostracismo definitivo.”

Trecho 2:

“De um lado, a literatura desgostara-o tremendamente. Afora Homero, Shakespeare e Dostoiévski, os outros eram repetições pouco inspiradas do que já havia sido dito. A literatura como um todo, de uns anos para cá, parecia-lhe um repositório de velhos assuntos e personagens, velhos enredos e metáforas, que ora descambavam num humor já gasto, ora escorregavam numa dramaticidade patética. Acima de tudo, a função literária dava-lhe a impressão de uma atividade inútil, meramente contemplativa, incapaz de agir sobre os fenômenos que descrevia e, por conseqüência, de fazer algum movimento real em direção à melhoria da vida humana sobre a superfície do planeta.”