20 de julho de 2010
8 de julho de 2010
"A viagem do escritor"
“Pilar, encontramo-nos noutro sítio”, foi mais ou menos isso o que disse José Saramago, a olhar para a câmara do realizador português Miguel Gonçalves Mendes na abertura do documentário José e Pilar, recentemente concluído e escolhido para abrir o festival Doc Lisboa. A partir desse ponto, o filme carrega-nos pelo quotidiano ensandecido do grande escritor português durante uma parte dos últimos anos de sua vida, ou, mais precisamente, um pouco depois de iniciada a escrita do romance A viagem do elefante até ao seu desfecho, e pelo meio do caminho a doença que quase o matou e a sua inacreditável recuperação — o que lhe permitiu não só concluir o texto como escrever mais um, Caim; o último livro de José Saramago, porque nunca mais haverá outro.
José e Pilar atira-nos para dentro de uma privacidade muito pouco partilhada até então. Como documentário que é, documenta, mas como poucos o fizeram, a vida íntima e pública de um escritor. Este equilíbrio não é simples, uma vez que corre o risco de ser, por um lado, invasivo e indiscreto, e, por outro, redundante e óbvio. Nada disso, no entanto, acontece. Miguel Gonçalves Mendes revela-se uma câmara elegante quando entra na vida privada de José Saramago e Pilar, e original ao nos mostrar esta mesma vida do lado de fora da porta de casa — a vida pública, vale dizer, atribulada e polémica do escritor e de sua não menos polémica esposa, amiga, interlocutora, leitora, admiradora, produtora e principal incentivadora.
Tudo aquilo a que assistimos é novo e impressionante, sendo, ao mesmo tempo prosaico e quotidiano. Como é que isso é possível? José e Pilar, a começar pelo título, que os trata pelos nomes, desmitifica e ao mesmo tempo homenageia. Estamos diante daquele se foi tornando um mito da literatura, um Nobel, um intelectual com uma biografia que corre em constante diálogo com a história política portuguesa, um criador que soube perceber e recuperar, em meio às ideias que fazem parte do universo romanesco contemporâneo, a força crítica da alegoria como tema, um escritor que criou um novo paradigma rítmico na prosa, através da economia no uso dos sinais de pontuação, da utilização fluida da vírgula, da presença das maiúsculas como separadoras para a marcação da alternância entre os diálogos, da prolixidade opinativa do narrador e da ténue fronteira entre discurso directo e indirecto livre — isto sem mencionarmos os personagens e enredos.
Este mito, no filme, desfaz-se e humaniza-se quando o flagramos no seu dia-a-dia em Lanzarote, com a sua mulher, a seleccionar os quilos de correspondência recebida, divertindo-se com algumas, guardando poucas e rasgando muitas; quando o sentimos fraquinho, bastante doente, a caminho do hospital e depois quando acompanhamos a sua ginástica, já em casa e em recuperação, a pedalar uma bicicleta ergométrica; quando percebemos que está a dormitar numa conferência de imprensa, ao lado de outros ícones literários, que também estão a dormitar, loucos para tudo aquilo acabar, entre eles Gabriel Garcia Marquez; e tantas outras cenas deliciosas captadas pelo olhar documentarista de Miguel Gonçalves Mendes.
José e Pilar não é uma história de vida e muito menos uma história das obras de José Saramago, mas um registo de uma parte dos seus últimos anos, vale dizer, das suas últimas andanças pelo mundo. E se o realizador perde um bocado a mão, pecando, como se diz, pelo excesso, é justamente quando se torna incansável na documentação vertiginosa desse dia-a-dia de viagens, conferências, entrevistas, fotos e lançamentos de livros pelo mundo afora. Saramago está exausto, e tão exausto fica que cai doente; e cansado, a certa altura, fica também o espectador, que acompanha o escritor no entrar e sair de aviões, assinando livros, participando de homenagens e festas e sendo fotografado e impiedosamente questionado acerca das mesmas questões, sempre. “Eu dou sempre as mesmas respostas porque vocês fazem sempre as mesmas perguntas...”, queixa-se Saramago diante dos jornalistas que o assediam.
Tive o prazer de conhecer o Miguel Gonçalves Mendes, e o mérito não é meu; é dele, porque foi através deste blogue que ele apareceu, comentando um ou outro texto meu e me convidando para assistir a uma sessão prévia do filme. Mais tarde, numa conversa, eu lhe falei desse exagero documental e do quanto fiquei cansado, para não dizer quase chateado com a Pilar, que não conheço, e com o mundo todo, que não deixavam o escritor sossegado, em casa, quietinho, a trabalhar e a nos dar mais e mais livros. Como eu disse, a sua esposa era a sua principal motivadora, alegando sempre que o marido teria toda a eternidade para descansar, e por isso o impulsionava para correr pelo planeta. O Miguel, diante da minha crítica, contou-me da sua imensa dificuldade em seleccionar as cenas para a edição e a montagem. “Foram ao todo 240 horas de gravação”, disse-me ele, “e há momentos de entrevista que são preciosos mas que tiveram de sair.” A primeira versão de José e Pilar ficou com seis horas de duração; a segunda, a que assistiu o próprio Saramago, com três horas e meia. Sim, falar que um filme é longo é bastante fácil; difícil é torná-lo mais curto.
A excessiva documentação, se por um lado nos cansa, por outro tem o mérito de nos fazer conhecer mais e mais aquele incrível casal que são José e Pilar. Incríveis ambos, e tão diferentes entre si. Em determinado ponto do filme assistimos à seguinte conversa entre os dois: Saramago pergunta à Pilar o que é mais importante: os livros ou a vida. Ela não hesita, e elege a vida, “é claro que é a vida”. Saramago defende os livros, ela retruca, ele rebate, imperturbável; e ficam assim, a rir um da escolha do outro e não chegando a nenhum acordo. Para um, a vida; para outro, os livros. Mas a felicidade dela, a sua alegria, o contentamento da Pilar quando, terminada a escrita dA viagem do elefante, Saramago lhe confidencia, ainda sentado na poltrona de um avião que os levaria ao outro lado do mundo, que acabava de ter uma nova ideia para um próximo romance, Caim — toda esta excitação incontida e quase infantil nos faz suspeitar de que a questão não é simples, não, alguns livros entram na vida, como algumas vidas bem que caberiam nalguns livros, como o senhor José e a senhora Pilar: imbricados que foram; imbricados que agora estão, neste ecrã de História que é o filme do Miguel Gonçalves Mendes.
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