"A fala do chefe: discurso e legibilidade no romance Vila Real”,
in: João Ubaldo Ribeiro — Obra seleta, 1. ed., Rio de Janeiro, ed. Nova
Fronteira, 2005, v. Único, p. 105-118 (ISBN:
852100088X).
"A fala do chefe: discurso e legibilidade no romance Vila Real”
"Sou eu, Argemiro pensou, sou eu a quem perguntam. E pensou como gostaria de ter alguém a cujo colo lançasse a cabeça e a cujas vistas pudesse mostrar fraqueza e hesitação, com quem se permitisse gaguejar e maldizer a sorte madrasta."
"Sendo
não somos, disse e se admirou de que sua cabeça se enchia de clareza e de que
todas as palavras se apresentavam."
João Ubaldo Ribeiro, Vila Real
Tome-se o romance Vila Real, de João Ubaldo Ribeiro — na verdade, segundo a epígrafe do próprio autor, um conto militar —, e ressalte-se um novo aspecto: a transposição que realiza, para dentro de seu ambiente ficcional, de uma discussão bastante cara aos escritores, críticos de literatura, professores e todos aqueles preocupados com o fenômeno literário em sua dupla condição de autonomia e identificação diante de outros fenômenos culturais. A discussão alimenta-se, antes de tudo, em claras palavras, da necessidade, cada vez maior, de se colocar entre parênteses aquilo que até há pouco se revelava fora de dúvida: a literariedade da literatura, ou, para irmos além: a artisticidade da literatura.[1] O romance Vila Real dá vida a esse debate através de seus próprios elementos ficcionais, localizados justamente na formação do discurso do protagonista.
Vila Real é um livro sobre a guerra — a guerra entre o povo de
Argemiro e o povo de Genebaldo e Godofredo. É também uma guerra entre o povo
pobre daquela região e os grandes interesses capitalistas sobre a terra, que
não é, de antemão, de ninguém, mas daquele que a ela chega e nela se instala.[2]
Mas Argemiro e sua gente perdem a terra: para o povo de Genebaldo e Godofredo e
em seguida para uma companhia internacional de mineração, que os expulsa na
virada da noite, derrubando com suas máquinas de extração as casas, as roças e
as cruzes do cemitério, agora totalmente revirado e profanado.[3]
Argemiro e os seus fogem para mais longe, assentam acampamento em um novo lugar
e esperam por mais uma guerra contra o povo de Genebaldo e Godofredo, que os
quer bastante longe ou bastante mortos.
Argemiro
é apresentado como o chefe de seu povo. O primeiro período do romance dá conta
de três assuntos essenciais para a história: o recebimento de uma notícia ruim,
a capacidade do chefe de ver à frente e, por fim, a natureza dessa visão.[4]
Cabe a Argemiro, como chefe que é, tomar as decisões, exercer o comando, dar
proteção, ministrar ensinamentos e distribuir boas palavras. Cabe-lhe também,
antes de tudo, preparar-se para a guerra: uma guerra que ele não entende e para
a qual não encontra sentido. Uma guerra só tem sentido se também empresta
sentido à vida que guerreia. Uma vida sem sentido não merece uma guerra.
Argemiro conseguirá compreender a guerra e ser o verdadeiro chefe de sua gente
quando encontrar, por si, uma razão para a vida — aquela vida sem razão
aparente de ser.
Vamos
tratar aqui da guerra e dos discursos para a guerra. Para tanto, é importante
que se descrevam as representações do poder no interior da história e,
principalmente, à volta de seu protagonista, o personagem Argemiro,
naturalmente um líder e, ao mesmo tempo, incapaz de acreditar em si mesmo como
tal. Vamos, em primeiro lugar, tentar compreender o formato que assumirá a
relação de Argemiro com um carisma que ele não crê possuir e com um poder do
qual ele não se julga merecedor. Em seguida, faremos a conexão de Vila Real com um dos três mapas do poder
de que se serve Geertz, em seu texto “Centros, reis e carisma: reflexões sobre
o simbolismo do poder” (1997b), para analisar de que modo se dá a sustentação
dos soberanos frente à sociedade que os entronizou.
A
pergunta acerca das razões que levaram Argemiro ao poder e das razões que lá o
mantêm é pergunta de resposta difícil. A história de Argemiro é a história do
transcurso de uma incumbência: a formação da legitimidade de seu comando junto
a seu povo — uma legitimidade somente proporcionada através de uma conquista
bastante específica: a conquista da própria fala, das próprias palavras, do
próprio discurso, da própria legibilidade, enfim. Para tanto, Argemiro terá de
realizar uma superação: terá de despojar seu discurso — ou aquele discurso
ideal que ele imagina para si, chefe que é — de todos os seus valores
intrínsecos, os valores intrínsecos de um discurso de poder, para então
transformá-lo em uma fala que se apresente e se sustente como uma mediação
cultural. Silviano Santiago, em seu texto “Democratização no Brasil — 1979-1981
(Cultura versus Arte)”, faz uma pergunta. Se parafrasearmos essa pergunta,
teremos a seguinte variação: “Quando é que o discurso de Argemiro deixa de ser
literário e sociológico para ter uma dominante cultural e antropológica?” (1998,
p. 11).[5]
Tal é a superação necessária, e o presente texto poder ser lido como uma das
maneiras de se ver representada essa superação. A outra maneira, claro está,
constitui a própria história do romance Vila
Real.
O rei está sempre nu
O
texto de Clifford Geertz propõe de imediato uma alternativa de reflexão acerca
do que pode significar a qualidade do carisma: “... um fenômeno cultural ou um
fenômeno psicológico?”; “... um status,
um estímulo ou uma fusão ambígua dos dois” (1997b, p. 182)? Foi a sociologia de
Weber que reconheceu no problema a sua merecida complexidade, diz Geertz, e
chama a essa complexidade weberiana polifonia, atribuindo-lhe não apenas o
mérito de salvar a questão do simplismo, mas também o defeito de torná-la
indócil para o manejo teórico.
Geertz
cita Edward Shils como um estudioso que procurou revitalizar aspectos
adormecidos do complexo weberiano de carisma: entre eles a possibilidade de uma
nova interação entre a coletividade e o indivíduo, representado este pelo seu
valor simbólico e aquela através de seus centros ativos da ordem social.[6]
De que maneira podemos iluminar o romance Vila
Real com as peculiaridades do raciocínio de Shils? Ora, Argemiro não se
sente a priori chefe de povo nenhum.
Falar de uma chefia a priori
significa falar de uma chefia inata; significa falar de um carisma que então
vem a resultar, pragmaticamente, em efetivo comando. Argemiro não se considera
naturalmente um chefe até ao exato momento em que ele e seu povo se vêem
desprovidos de um centro para o giro da ordem social. É justamente quando não
há mais nada ao redor, não há terra nem comida nem armas, que Argemiro é alçado
à condição de líder. Geertz faz referência, em seu texto, às estruturas
simbólicas de dominação que, em determinadas sociedades mais complexas, se
tornam extremamente palpáveis e visíveis, deixando o poder, digamos assim,
exposto à sua máxima visibilidade. “... a visibilidade é tanta que acaba
deixando a descoberto aquela verdade que todo o misticismo do cerimonial da
corte deveria supostamente esconder — ou seja, que a majestade não é inata, e
sim construída” (1997b, p. 187). Quando, em Vila
Real, vemos a majestade de Argemiro se configurando justamente a partir da
ausência de uma estrutura palpável de poder — de ritos, de cerimoniais e de
cultos legitimadores —, tendemos a atribuir à sua liderança um caráter mais
inato do que construído. Mas
não se pode permanecer por muito tempo na idéia da chefia congênita. Em Vila Real, será a ausência de um centro
para a comunidade — uma ausência provocada do modo mais brutal, através da
expulsão e do morticínio — o fator decisivo para a instauração da necessidade
de um chefe: um chefe que passará a trabalhar numa espécie de vácuo geográfico.[7]
A esse vácuo geográfico ele vai dever a razão de ser de seu comando. Toda a
luta de Argemiro, no entanto, será o trespasse de sua condição de chefe. Para
ele, tudo estará bem quando não precisar agir como um chefe, porque então seu
povo terá um lugar para viver, já que ninguém “pode habitar uma estrada nem
tampouco nela criar filhos” (p. 37). Um lugar para o restabelecimento da ordem
social e a figura de um chefe vão aqui constituir, no entendimento de Argemiro,
elementos excludentes.
“O carismático”, continua Geertz,
“não é necessariamente dono de algum atrativo especialmente popular, nem de
alguma loucura inventiva; mas está bem próximo do centro das coisas” (1997b, p.
184). O centro das coisas em Vila Real
é a guerra, e mais nada. Estivesse o povo de Argemiro em condições de
estabilidade, outras áreas da vida social poderiam emancipar-se, ganhando evidência
e comando, como a agricultura, a religião ou a arte do artesanato. Argemiro,
nesse caso, acredita ele, não teria de suportar o peso do comando, uma vez que
não seria ele chefe de coisa alguma. Por razões que não consegue entender, no
entanto, ele constitui, mesmo assim, uma referência para a sua gente. “O senhor
(...) fala com sabedoria”, diz-lhe o combatente Alarico, “como podia falar meu
próprio pai. Muitas vezes ele me disse que sua voz era a de mais juízo entre
todos os que viviam na Jurupema, (...), que sua força era conhecida e sua idéia
respeitada” (p. 22).
Alarico
está a expor o que seria o carisma de Argemiro. Geertz diz que o carisma não
necessariamente deve sua aparição e seu desenvolvimento à extravagância de uma
condição emergencial. O carisma deve ser entendido como parte da normalidade
quotidiana da vida social (1997b, p. 184). Argemiro, que tem o carisma, embora
nele não acredite, não crê que esse carisma deva ser convertido em chefia
permanente, pois somente um povo em guerra — pensa ele — precisa de um chefe. É
por não acreditar na transcendência exclusiva de seu carisma que Argemiro, sob
hipótese alguma, será tentado a transformar seu poder em algo vitalício ou
mesmo totalizante.
Um dos principais problemas do
personagem Argemiro (não tivesse ele problemas, não seria ele um herói ou,
quando menos, um chefe) é justamente a sua incapacidade para reter somente para
si a aura e o produto dessa transcendência — uma transcendência que ele
acredita possuírem todos, e não apenas ele, ou, ainda, muito menos ele.
Argemiro espatifa então a idéia de transcendência e seu corolário imediato, a
chefia, e espalha essa idéia entre os de seu povo: “Como trazia também sob seu
comando as mulheres e as crianças (...), Argemiro pensou com grande melancolia
que todos eles teriam razão se, ao
receberem a notícia, decidissem não
mais haver motivo ou sustança para lutar” (p. 11, grifamos). Argemiro, que não
se sente um líder e, portanto, não pode agir como tal, não questionaria uma
suposta desobediência às suas ordens. Em outro ponto, vemos como Argemiro
também não consegue operar, nem mesmo minimamente, a encenação do poder de que
foi revestido pelo seu povo: tendo recebido a notícia de que, brevemente, seriam
todos atacados, Argemiro sobe ao topo de uma pedra. Conforme revela o narrador
— quase a todo o tempo em discurso indireto livre, e, portanto, quase a todo
momento por dentro da cabeça de seu personagem —, Argemiro subiu à pedra “mais
para ficar sozinho do que para sopesar qualquer grande questão” (p. 10) — ou,
poderíamos completar, para simular que sopesava qualquer grande questão.
Há, no entanto, uma outra modalidade
de carisma que funcionará muito bem através do acionamento de uma qualidade
oposta àquela de que fala Geertz. À proximidade dos centros ativos da ordem
social pode-se contrapor a sua ausência — uma ausência que será tanto mais
carismática quanto mais cercada de incompreensão e imprevisibilidade. A
organização social que se observa no romance Vila Real é toda ela marcada pela ausência: ausência de um lugar
para se assentar a vida, ausência de um chefe, ausência de previsões e
provimentos, ausência de grupos de poder rivais localizados internamente,
ausência, enfim, de centros ativos da ordem social — trata-se de uma sociedade da ausência. O único centro
ativo da ordem social, como se disse, é a guerra. Quando Argemiro e seu povo se
vêem perdidos e bastante próximos de um segundo ataque por parte da gente
inimiga de Genebaldo e Godofredo, surge dos matos aquele que é conhecido como o
que não existe, “o Filho de Lourival”, alcunha sob a qual se revezam quatro
homens — todos a responder pelo nome “o Filho de Lourival”.[8]
Se o “carisma é sinal de envolvimento com os centros que dão vida à sociedade”,
e se tais centros, no caso de Vila Real,
se resumem à guerra, logo, o carisma daqueles conhecidos como “o Filho de
Lourival” terá sua razão de ser justamente a partir de sua relação com a guerra
iminente. Mas não só. O magnetismo que os tais homens assim chamados “o Filho
de Lourival” irão exercer sobre Argemiro e todo o carisma que se desprenderá de
suas pessoas serão devidos à sua familiaridade com a guerra, sim, mas também à
sua condição fugidia de homens raros[9]
e a uma terceira razão — esta última particularmente cara a Argemiro, que irá
respeitá-los, a esses quatro homens, como se respeita a um verdadeiro líder,
amedrontado e estimulado por essa terceira razão, à qual se atribuirá um
conteúdo sagrado, e a esse conteúdo sagrado um poder soberano: a intimidade com
as palavras.
Vila Real, Marrocos
O
texto de Geertz expõe o que poderiam ser considerados mapas do poder, em três
sociedades e três tempos diversos: a Inglaterra do século XVII e seu centro
máximo de poder, Elizabete Tudor; a terra de Java e seu rei Hayam Wuruk; o
Marrocos e o reinado a duras penas de Hasan. Cada um desses mapas é a indicação
do funcionamento das estratégias de manutenção do poder junto à sociedade.
Geertz mostra-nos então: Elizabete a manipular e a incorporar à sua imagem de
soberana os símbolos morais e cristãos que davam sentido não apenas àquela
sociedade mas a todo o universo, o mesmo universo inteiramente geometrizado
segundo uma rígida hierarquia de mandos a caracterizar e congelar na
imortalidade o poder real e magnífico de Hayam Wuruk,[10]
e, finalmente, o que mais nos interessa aqui, em função de sua proximidade com
o mundo do romance Vila Real, o poder
a bastar-se como coisa-em-si, o poder que “não precisa ser representado como
outra coisa além de si mesmo para que se inunde de significados transcendentes”
(Geertz, 1997b, p. 202).[11]
O princípio a orientar a sociedade
marroquina de Hasan poderia ser assim expresso: “... as pessoas só possuem
verdadeiramente aquilo que têm a capacidade de defender” (Geertz, 1997b, p.
204). E porque estão sempre a defender algo — terras, honras e posições —,
estão sempre a viver a experiência da posse com a intensidade de quem está
prestes a perdê-la. Se não é renovada constantemente através de luta e ameaça,
a posse inverte os sinais de sua relação com o objeto possuído — “... a coisa
possuída traz o condão de possuir mais do que é possuída”, diz Argemiro, em
discurso indireto livre do narrador, e conclama: “Vamos guerrear. Por quê?
Porque tudo isto é uma discordância” (p. 75). A sociedade da ausência que mencionamos ser a característica mais marcante
do povo de Argemiro guarda sua razão de ser no estado de constante perda-vigilância-perda em que vivem seus
membros.
O poder soberano, do mesmo modo como
tudo o mais, é obrigado a renovar-se e a legitimar-se a cada dia, tendo por
recurso apenas a si próprio. Este “a si próprio” poderia concretizar-se através
do conceito norte-africano de baraka.[12]
O baraka é algo que se tem ou não se
tem. Qual a diferença entre o carisma de Argemiro e o carisma daqueles homens
conhecidos como “o Filho de Lourival”? Este, como vimos, funda seu carisma na
capacidade de organizar a guerra, nos mistérios de sua ausência e na boa lida
com as palavras. O carisma de Argemiro não tem razão de ser, e, por não ter
razão aparente de ser, ele não o compreende e nele não acredita — “O senhor
(...) fala com sabedoria”, já lhe disse o combatente Alarico, como vimos.
Argemiro não alcança a natureza de seu carisma, justamente porque seu carisma é
baraka — “algo que um indivíduo
simplesmente tem, como tem força, coragem, energia ou agressividade, e, como o
são estes atributos, é também distribuído arbitrariamente” (Geertz, 1997b, p.
204).
O baraka constitui um dos caminhos para o poder; o outro encontra sua
direção na força da linguagem como fator de comunicação, coerção e incitamento.
Toda vez que se põe a pensar em seu próprio papel junto ao povo de Vila Real,
Argemiro sopesa a qualidade de sua linguagem — não apenas de sua linguagem, mas
a daqueles a quem considera. O povo de Vila Real não tem nada mais senão a
linguagem de que Argemiro terá de valer-se para sobreviverem todos — e
Argemiro, finda a guerra, sente que não é mais o mesmo, e tem a certa altura
uma visão, a visão...
"...
das palavras que podiam trazer sangue ao rosto dos que as ouviam e podiam
molhar aquela terra como a chuva ou secá-la como o sol e que uma só palavra bem
posta — e viu então que não faltava nada a não ser palavras nos lugares em que
sabia que faltava tudo (...) — e que uma só palavra podia resolver, a qual não
sabia (p. 148-149)."
Em
outro momento do romance, quando estão Argemiro e o personagem Gaudêncio a
mirar os matos que os cercam, verificando assim a fragilidade inconteste de
todos ali, à espera do povo assassino de Godofredo e Genebaldo, ouve-se a fala
de Gaudêncio: “Tem mais rolas nesses matos (...) do que rola em todos os matos
da Jurupema”. Em seguida, a observação do atento Argemiro, em discurso indireto
livre do narrador: “A fala de Gaudêncio tinha uma nota clara e certeira e, no
silêncio que boiava sobre todas as cabeças, ela soltou-se como a voz de uma
corneta” (p. 11). O mesmo que diz Geertz acerca do poder intimidatório da
linguagem na estrutura de poder no Marrocos poderíamos dizer aqui acerca das
expectativas de Argemiro: a linguagem...
"...
dá a todo tipo de conversa que não seja totalmente fútil uma qualidade de um
pega-pega com palavras, uma colisão frontal de imprecações, promessas, (...)
desculpas, rogos, ordens, provérbios, argumentos, (...) citações, ameaças
(...), que não só valoriza enormemente a fluência verbal como dá, à retórica, um
poder inequivocamente coercitivo: (...) ‘ele tem palavras, oratória, máximas,
eloqüência’ também quer dizer, e não só metaforicamente, ‘ele tem poder,
influência, peso, autoridade’ (Geertz, 1997a, p. 173)."
A
peculiaridade da sociedade marroquina de Hasan em relação aos contextos
elizabetano e javanês diz respeito principalmente à potência simbólica das
palavras em um universo onde, afora o discurso e a energia suficiente para
mantê-lo em funcionamento, nada mais existe. O mesmo torneio de vontades verificado
por Geertz no Marrocos de Hasan — torneio responsável pela criação de uma
verdadeira “sociedade agonística” — pode ser encontrado no impasse de Argemiro
acerca de qual discurso seria o certo e o apropriado para aquela gente, aquele
tempo e aquela guerra. Seu torneio de vontades dá-se por dentro da cabeça — uma
cabeça, a sua própria, que de início ele não compreendia e apenas sentia
latejar; uma cabeça, a sua própria, que depois se foi tornando clara e amiga à
medida que foi encontrando dentro de si as suas palavras mesmas.[13]
O “espúrio legítimo”
Em
um artigo recente acerca do panorama da literatura brasileira contemporânea,
Silviano Santiago escreveu: “O leitor estrangeiro não quer compreender as
razões pelas quais, na literatura brasileira, o legítimo quer ser espúrio a fim
de que o espúrio, por sua vez, possa ser legítimo” (2002, p. 7). Silviano
referia-se a uma tendência de hibridização pouco apreciada e entendida pelo
público de fora que se põe a ler a produção literária brasileira atual. Esse
leitor de fora quer ver “o estético na arte e o político na política” (2002, p.
7). As mútuas contaminações afetam a vontade de pureza que se costuma esperar
de ambos os campos. Se um romance qualquer consegue trazer para o seu
artesanato literário uma discussão política relevante — seja ela a injustiça
social, a patética distribuição das riquezas nacionais, a violência banalizada,
a indiferença dos governantes, a mediocridade intelectual das elites
econômicas, o que for, que se pense no tema mais desagradável e urgente —, se
esse romance consegue, nas palavras de Silviano, deleitar e comover, e ainda
por cima ensinar,[14]
ele alcança, não uma legibilidade para os de fora (o leitor estrangeiro, em
sentido lato, que o vê como espúrio), mas uma legibilidade dirigida — para
usarmos outra palavra em sentido lato, extremamente lato — ao povo.
Tornar-se-á, aqui, para este público, legítimo.
Como
funciona esta discussão dentro do “conto militar” de João Ubaldo Ribeiro? Uma
resenha do jornalista Renato Pompeu, escrita em 1979, vislumbra importantes características
de uma literatura brasileira então nascente — uma resenha sobre Vila Real:
"Diante
desse quarto livro de ficção de João Ubaldo Ribeiro (...) seja permitido
meditar sobre o destino do bom escritor brasileiro. O pequeno público treinado
para ler regularmente no país parece preferir obras de informação, tipo reportagens ou biografias, certo de que
dados, estatísticas e datas proporcionam visão exata dos problemas nacionais.
Quanto a obras de ficção, esse mesmo público tende a preferir romances
estrangeiros, que lhe dão a visão da vivência desejada no futuro (...).
(...)
Ele [João Ubaldo] proporciona o que só a ficção pode dar: ao lado do prazer de
ler, da fruição da palavra, também um comentário emotivo sobre a condição do
homem, uma consciência sentimental de um modo de vida tão distante do leitor,
num mundo criado pela arte em que mesmo assim o leitor se pode reconhecer
(Pompeu, 1979)."
Silviano
Santiago está a comentar a configuração de uma literatura anfíbia que, no entanto,
já estava configurada, e comentada, 23 anos antes... Vila Real foi publicado em 1979, ano referido por Silviano como um
dos marcos para uma importante transformação dentro da arte e da cultura
brasileiras. Ele circunscreve o “momento histórico da transição do século XX
para o seu ‘fim’ pelos anos de 1979 a 1981” (Santiago, 1998, p. 11).
Do
mesmo modo, o discurso de Argemiro deverá ser e parecer-lhe, em um primeiro
momento, espúrio, ou seja, estranho àquilo que ele mesmo esperaria de um
discurso a seu povo — um discurso que deveria
ter em si um conhecimento que ele, Argemiro, não tinha; que deveria ter em si as muitas palavras que
ele, Argemiro, não conhecia; que deveria
ter em si a instrução que ele, Argemiro, nunca pôde adquirir devido ao
óbvio fato de ter passado a vida sobre a enxada; um discurso que acabaria por aparentar,
enfim, uma legitimidade que, no entanto, não conseguiria sustentar-se por muito
tempo.[15]
Esse legítimo discurso ideal, presente somente na cabeça e nas vontades de
Argemiro, deve jogar por terra as suas qualidades apriorísticas — as suas
muitas palavras instruídas, compridas e didáticas — e, com urgência,
contextualizar-se.[16]
A partir do momento em que ganha espontaneidade mas perde, para Argemiro, a
aura do que seria um legítimo discurso de poder, torna-se automaticamente, no
seu apressado entendimento, espúrio. Mas espúrio apenas por um instante,
porque, logo em seguida, se esse discurso consegue abrir-se para o seu contexto
e dele se alimentar, consegue atingir uma terceira condição. Torna-se então, de
outro modo e sob outras máscaras, legível, ganhando assim uma nova e diferente
legitimidade — e Argemiro “teve perfeito entendimento das palavras enquanto as
sopesava, avaliava e estimava, ao flutuarem elas no ar” (p. 147). A toda essa
volta podem-se dar os nomes de engajamento, comprometimento e experiência
social.
A legitimidade de uma posição de
chefe, uma posição de chefe a ser conquistada e mantida pela via do discurso,
ou seja, da escolha certa das palavras certas aos ouvintes certos acerca dos
assuntos certos, instaura um impasse, no entendimento do personagem Argemiro,
acerca de qual discurso seria o discurso “correto” para os de sua gente. Mas o
que há de errado com as palavras de Argemiro? Elas não correspondem àquilo que ele
próprio esperaria das palavras de um líder. As palavras de um líder devem ser
importantes, difíceis, poderosas e, antes de tudo — e esta qualidade restou em
último lugar justamente para que ficasse salientada a sua precedência sobre as
demais —, antes de tudo, dizíamos, as palavras devem ser muitas.[17]
E também as palavras devem ter atrás de si conhecimentos adquiridos pelo estudo
e pela leitura, como os que tem o padre Bartolomeu, por exemplo — “cujo
conhecimento ia além do de todos os homens”, cuja cabeça sabe de tudo e,
portanto, conhece todas as palavras que se referem a esse “tudo”. Ele,
Argemiro, não tem capacidade para resolver os problemas de sua gente, porque
ele, Argemiro, “não sabia muitas das palavras de que iria necessitar, palavras
que eram névoas e caroços por dentro do que via” (p. 29).
Silviano Santiago identifica o campo
da arte como especialmente convidativo para que se arme o debate acerca da
explosão das muralhas — as muralhas que distinguiam “o erudito do popular e do
pop” e as muralhas que distinguiam a então única esquerda brasileira
(contraposta à repressão militar de 1964 a 1979)[18]
das novas esquerdas, diferenciadas, agora internamente, a partir de múltiplos
discursos e múltiplas identidades sociais. Do mesmo modo, o romance Vila Real, tomando como matéria-prima a
política e a guerra em uma pequena comunidade rural, realiza, a seu turno, a
mesma discussão, tendo por agente Argemiro e por “questão” a necessidade de o
seu discurso ser legível, total e potentemente legível por todos.
"Não
soube quanto tempo sentiu que de si saíam as palavras e não sabia se estava
deitado, sentado ou de pé. Não sabia mesmo se estava ou estava onde e as
palavras também não só saíam dele, como vinham de todos os cantos, fazendo
daquilo tudo um oceano. Entendeu que as palavras vinham tomar corpo em sua
cabeça e depois velejavam de todas as cores e se enfunavam loucamente, tudo uma
festa panda e tremulante, e então pôde notar que aquelas palavras também
pareciam pedras e passarinhos sobre o campo (p. 147)."
Do
mesmo modo como o “poema se desnuda de seus valores intrínsecos para se tornar
um mediador cultural” (Santiago, 1998, p. 14), as palavras de Argemiro não
devem conter em si nada que não seja arrancado à força da vida de todos os dias
de seu povo. Do mesmo modo como, em nome da comunicabilidade e da
transitividade, se deve “esvaziar o discurso poético de sua especificidade
(...), equipará-lo qualitativamente ao diálogo provocativo sobre o cotidiano”
(Santiago, 1998, p. 14), com as suas novas palavras — palavras que não sabia
que sabia —, falará Argemiro muitos discursos a seu povo, estabelecendo assim
“a combinação extemporânea da prática política aliada à prática da vida”
(Santiago, 1998, p. 15), para citarmos mais uma vez as palavras de Silviano
Santiago acerca da mudança de lugar do discurso político das esquerdas: da
política para o exercício cotidiano da política; da arte para o exercício
quotidiano da arte.
Bibliografia
Geertz,
Clifford. 1997a. “A arte como um
sistema cultural”. In: O saber local:
novos ensaios em antropologia interpretativa. 4ª ed. Petrópolis: Vozes.
__________.
1997b. “Centros, reis e carisma:
reflexões sobre o simbolismo do poder”. In:
O saber local: novos ensaios em Antropologia interpretativa. 4ª ed.
Petrópolis: Vozes.
Pompeu,
Renato. 1979. “Alta tensão”. Veja, São Paulo, 18 jul.
Ribeiro,
João Ubaldo. 1979. Vila Real, 1ª ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
Santiago,
Silviano. 1998. “Democratização no
Brasil — 1979-1981 (Cultura versus Arte)”. In: Antelo, Raul; Camargo, Maria
Lúcia de Barros; Andrade, Ana Luiza & Almeida, Tereza Virgínia de (orgs.). Declínio da arte, ascensão da cultura.
Florianópolis: Letras Contemporâneas e abralic — Associação Brasileira de
Literatura Comparada, p. 11-23.
__________.
2002. “Literatura anfíbia”. Caderno Mais!,
Folha de S. Paulo, domingo, 30 jun., p.
4-8.
[1] Se fôssemos ainda mais além: a artisticidade da arte.
[2] “... um papel não poderia dar a ninguém
direito à terra, porque esta era de quem chegava até a sentir seu cheiro à
distância e com ela misturar-se pelo trato de todo dia. E nada o papel tem a
ver com a terra” (Ribeiro, 1979, p. 36 — a partir deste ponto, utilizaremos,
para esta referência, apenas o número da página correspondente).
[3] “[Argemiro] Lembrou que a única terra que
todos os homens do mundo estavam dispostos a dar-lhes era a de suas covas. Mas
assim mesmo, quando os donos das terras desejavam, até as covas dos defuntos
eram tomadas de volta, como aconteceu em Vila Real, quando a Caravana
Misteriosa [a companhia de mineração e suas máquinas quebradoras de pedras] pôs
suas máquinas contra o cemitério e de lá arrancou todos os ossos e relíquias e
matou a memória de muitos. Estes não tinham pai nem mãe nem ossos nem almas por
quem rezar, nem onde botar uma flor, nem sabiam mais quem eram. (...) Até mesmo
os gritos dos que imaginavam os parentes e filhos desenterrados e para sempre
vagando penados no mundo dos vivos não conseguiram que eles detivessem as
máquinas” (p. 24, 32).
[4] “Assim que Nicoto trouxe a notícia de que os
homens de Genebaldo tinham armado suas tendas por todos os lados de Vera Cruz e
agora as mulheres se persignavam nas encruzilhadas, rezando pelas vidas dos
filhos e maridos, Argemiro previu que o terror se espalharia nos corações dos
que estavam ali acampados” (p. 9).
[5] Substituindo “discurso de Argemiro” por
“arte brasileira” chegaremos à frase de Silviano Santiago. Como não poderiam os
personagens de Vila Real falar de
arte, porque, afinal, não é de arte que se está a falar e não é por ela que se
está a guerrear, falar-se-á de poder e de discursos de poder.
[6] “Tais centros, que ‘não têm qualquer relação
com geometria e muito pouco com geografia’ são, em essência, locais onde se
concentram atividades importantes; consistem em um ponto ou pontos de uma
sociedade, onde as idéias dominantes fundem-se com as instituições dominantes
para dar lugar a uma arena onde acontecem os eventos que influenciam a vida dos
membros desta sociedade de uma maneira fundamental” (Geertz, 1997b, p. 184).
Mais tarde, no texto do próprio Geertz, há a exposição dos centros e dos
momentos do poder onde tanto a geografia quanto a geometria ocupam posição
decisiva para a permanência do poder como tal.
[7] “Primeiro, moraram na parte melhor da
Jurupema, que não se chama Aratanha. Corridos, moraram em Vila Real. De lá,
buscaram Aratanha, quando a Caravana Misteriosa fez com que eles saíssem de
onde tinham plantado roças e pensado em sossegar. Se voltavam agora a Vila
Real, cumpria dizer que não existia esperança de que os homens da Caravana
Misteriosa e todos aqueles que pareciam manejados por seus dedos (...)
quisessem que eles ficassem ali” (p. 24-25).
[8] “... esse Filho de Lourival aparecia e
desaparecia com petrechos de guerra e de amedrontamento, arremetido pelos ermos
e pelos cerrados e pelos montes. Há quem diga, falou Argemiro (...), que ele é
uma assombração, indo e voltando igual a luz de cemitério e que não tem nome”
(p. 59).
[9] “... quando aparece o Filho de Lourival,
nunca se diz o nome que traz de pia, nem qualquer outra informação. Por esta razão,
quando ele vem, explica que não existe. (...) ... você pensa que eu existo?
Você se engana, você esfregue os olhos e vai ver que eu não sou. Eu sou na sua
cabeça, eu sou o que você quer” (p. 56).
[10] “Camponeses reverenciam os chefes, (...) os
chefes reverenciam os senhores, os senhores reverenciam os ministros, os
ministros reverenciam o rei, os reis reverenciam os sacerdotes, os sacerdotes
reverenciam os deuses, os deuses reverenciam os poderes sagrados, e os poderes
sagrados reverenciam o Nada Supremo”, segundo reza um texto sagrado citado por
Geertz (1997b, p. 195-196, citando T. Pigeaud, Java in the 14th century: a study in cultural history, 5
vols., Haia, 1963).
[11] Alterou-se aqui o tempo verbal das duas
frases citadas, para que se pudessem encaixar melhor no período.
[12] “O termo já foi comparado a inúmeros outros
conceitos na tentativa de explicá-lo — maná, carisma, ‘eletricidade
espiritual’; trata-se de algo assim como um dom de poder sobrenatural que pode
ser utilizado por aqueles que o recebem a seu bel-prazer (...). Mas o que
melhor define baraka, e o que o
diferencia de outros conceitos semelhantes, é que é radicalmente
individualista” (Geertz, 1997b, p. 204).
[13] “Sendo, não somos, disse e se admirou de que
sua cabeça se enchia de clareza e de que todas as palavras se apresentavam” (p.
143).
[14] Silviano escreve: “Talvez pudéssemos nos
ater apenas a dois princípios da estética: o livro de literatura existe ‘ut
delectet e ut moveat’ (para deleitar e comover). Pudéssemos nos ater a esses
dois princípios e deixar de lado um terceiro princípio: ‘Ut doceat’ (para
ensinar)” (2002, p. 8). Um dos aspectos desse artigo de Silviano reside na
análise do desvio que teve de fazer a literatura brasileira para contornar uma
deficiência de base na formação de nossa sociedade: o déficit educacional.
[15] “— Sim — disse Argemiro, sentindo que o
coração se apressava e a cabeça empacava, na falta das palavras que gostaria de
dizer e que sabia trazer dentro de si, mas não havia como elas tomassem forma e
voassem da boca” (p. 88).
[16] “E aí Argemiro compreendeu todas as
palavras, em primeiro lugar pelo som que fazem, o qual traz cólicas ou risos ao
rosto (...) ou ódios imorredouros ou pesadelos esquecidos antes de deixarem de
ser as nuvens escuras que rodeiam as cabeças das pessoas” (p. 146).
[17] “Se uma mulher sabe mais palavras do que
nós, podemos chamar essa mulher de homem?” (p. 125), pergunta a si próprio
Argemiro, ensimesmado diante de uma mulher, Ernesta, por quem nutre uma
admiração que ele não consegue entender, uma vez que baseada em qualidades
normalmente associadas aos homens, tais como voz de mando, voz firme, voz
precisa, voz clara — a voz, enfim, de um chefe.
[18] Se tomado tecnicamente, o militarismo no
Brasil só termina no dia 15 de março de 1985, data em que chega ao fim o
governo de João Figueiredo e é implantada no país a República Nova, com a posse
do vice-presidente José Sarney. O ano de 1979 é, no entanto, tomado como um
marco por ser o ano de término do governo Geisel (1974-1979), responsável pela
“abertura política” no país.