"Colóquio Internacional 100 anos de Jorge Amado"
12 a 16 de Novembro de 2012, CLEPUL, Universidades de Lisboa, Coimbra e Porto.
Dia 13: Mesa 1 - "Jorge Amado, Portugal e o neorrealismo".
Coord.: João Marques Lopes.
Com: Edvaldo Bergamo (UnB), Ernesto Rodrigues (FLUL), Fernando Cristóvão (FLUL), Teresa Martins Marques (CLEPUL) e Juva Batella (CLEPUL).
12 a 16 de Novembro de 2012, CLEPUL, Universidades de Lisboa, Coimbra e Porto.
Dia 13: Mesa 1 - "Jorge Amado, Portugal e o neorrealismo".
Coord.: João Marques Lopes.
Com: Edvaldo Bergamo (UnB), Ernesto Rodrigues (FLUL), Fernando Cristóvão (FLUL), Teresa Martins Marques (CLEPUL) e Juva Batella (CLEPUL).
“O quase marinheiro português do século XIX que bem o é” — Ensaio acerca
da completa verdade sobre as discutidas aventuras do Comandante
Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso
Resumo:
Recontar-se-á
aqui a vida do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, narrativa do volume Os velhos marinheiros, de Jorge Amado,
sob um específico interesse: observar esta invenção que realiza de si mesmo o
comerciante “seu” Aragãozinho como a encarnação de um dilema que ultrapassa a
sua biografia ficcional e contamina o modo como se pode inscrever este texto no
percurso da literatura de Jorge Amado.
Palavras-chave:
Autoficção
Biografia
Invenção
Marinheiro
Memória
Texto:
Quando li “A
completa verdade sobre as discutidas aventuras do Comandante Vasco Moscoso de
Aragão, Capitão de Longo Curso”, segunda narrativa dOs velhos marinheiros, de Jorge Amado, e vi ali um personagem que
podia ser muitas coisas — um personagem acerca do qual não havia verdade que se
encaixasse melhor na sua personalidade do que a mentira por ele inventada —,
pensei que posso olhar para o Comandante Moscoso como um marinheiro português
do século XIX.
Bem sei que a
tarefa aqui é daquelas tidas como improváveis. Observar a invenção que realiza
de si mesmo o comerciante “seu” Aragãozinho como a encarnação de um dilema que
ultrapassa a sua biografia ficcional e contamina o modo como se pode inscrever
esse texto no percurso da literatura de Jorge Amado. E para tal tentarei
convencer a mim mesmo de que um marinheiro português que nunca foi nem
marinheiro nem português pode muito bem, não exatamente vir a sê-lo, mas ter sido. Estamos a falar do Comandante
Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso.
Que nasceu em
1868 e morreu, aos 82 anos, em 1950, sendo, portanto, um homem do século XIX. O
que nos interessa aqui é a verdade, a verdade do texto, a verdade do narrador e
a do personagem. O narrador, ele próprio diz, não costuma “discutir, muito
menos negar a literatura e o jornalismo”.
Vivemos aqui,
com este delicioso romance de Jorge Amado, duas narrativas: uma em tempo de
narração, o narrador a falar de si e do seu tumultuoso caso de amor com a
mulata Dondoca; outra em rememoração, a contar episódios passados, sendo um
deles a atribulada existência do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, a sua vida
de menino, de jovem e adulto, e tudo o que se deu após a sua chegada na pacata região
de veraneio chamada Periperi, na Costa Leste Brasileira, nos anos de 1929. A segunda
narrativa dá-se em dois níveis: no da própria narração (o narrador amante da mulata
Dondoca e favorável ao Comandante, em primeira pessoa, a contar o que sabe, e
sabe porque lhe contaram); e, o outro, no encadeamento dos fatos, por si, durante
o qual mal se percebe a presença de um narrador, embora ele lá esteja. Está,
sim, e não sozinho, pois surge um outro, a funcionar como um contraponto: um
personagem inserido na história de 1929, Chico Pacheco, “o invejoso”, que nos
vai contar uma outra história, ou melhor, que vai contar ao narrador amante da
Dondoca uma outra história, e ele nos vai contar a nós. A verdade dos fatos, ao
final, estará sempre ao lado do narrador, seja ele qual for.
E de quem
estamos a falar, ao fim e ao cabo? Do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, um
homem do mar, com um olhar e uma postura que revelam uma antiga intimidade com
o Oceano, feita de amor e cólera, de histórias vividas, sensível aos corações
pacatos de Periperi, corações que nunca viveram a aventura distante e brilhante
do heroísmo.
O que é
Periperi antes da chegada do Comandante? Uma região habitada por uma população
estável de aposentados e retirados dos negócios, com suas famílias, quase
sempre a esposa e por vezes uma irmã solteirona, e muitos velhinhos sozinhos, como,
por exemplo, um bom exemplo, o “seu” Adriano Meira. Retirado do negócio de
ferragens, o homem sai, todas as noites, durante o verão, depois das nove horas,
com uma lanterna elétrica, para, como ele mesmo diz, “passar em revista os
namorados, ver se estão trabalhando bem”.
Nada
acontecia em Periperi, onde “o tempo se alongava, nada o apressava, os
acontecimentos duravam acontecendo”, com exceção de dois ótimos escândalos. O
primeiro deu-se com o tenente-coronel Ananias Miranda, a sua esposa Ruth de
Morais Miranda e o jovem estudante de Direito, Arlindo Paiva, um dia a entreter
a dona Ruth, como fazia todos os dias, à tarde, enquanto o marido, o
tenente-coronel, trabalhava. Entretinham-se muito bem, tão sozinha a dona Ruth...,
entretendo-se ambos, Arlindo e Ruth, sempre nus no quarto de casal, em meio a
risadas e gemidos, quando numa tarde decide o nosso Ananias Miranda fazer à
mulher uma surpresa, toda ela composta de guloseimas e vinhos em sacos
plásticos presos aos dedos. Vinha carregado de compras o Ananias. Mas podia ter
avisado... Não avisou; simplesmente apareceu, surpresa é surpresa, deixando a
empregada à porta em pânico. Não há muito o que narrar, fiquemos apenas com
esta cena: Ananias parado à soleira, tentando desvencilhar-se dos sacos
plásticos das compras presos aos dedos, tentando chegar à pistola presa ao
cinto; Ruth paralisada, gritando por dentro, esbugalhados os olhos; Arlindo
Paiva, nu, saltando a janela, desaparecendo pelado, atravessando Periperi em
alta velocidade e à vista de toda a população, e nunca mais voltando.
O segundo
escândalo rasgou a família Cordeiro, composta do pai, da mãe e de quatro filhas
casadoiras. A mais nova, Adélia, um dia desaparece, levando as suas roupas, as
melhores roupas das irmãs e ainda, na mala, o dr. Aristides Melo, médico e
casado. A mulher do dr. Aristides invade a casa dos Cordeiro, aos berros: “A
putinha da sua filha roubou o meu marido!”. Fogem os Cordeiro de Periperi. A
casa é vendida. O pai, Pedro Cordeiro, mata-se.
Acontece
então a entrada do Comandante, comprador da casa vendida, a chamada “Casa das
janelas verdes”. Todos examinam o “cidadão baixote e troncudo, de rosto
avermelhado, nariz adunco, vestido com aquele extraordinário paletó”; “o
Comandante pela rua, vestido com o seu paletó marítimo, o cachimbo na boca, e,
sobre os revoltosos cabelos, um boné ornado com uma âncora”. Zequinha Curvelo,
leitor assíduo de romances de aventuras, devorador de folhetins baratos, é quem
inicia a construção da imagem do Comandante para o povo de Periperi. O
Comandante faz a sua parte, sim, mas a própria cidade faz o resto. E diziam,
aumentando e enfeitando as cenas: “Antes mesmo de entrar em casa foi ver o mar”;
“Quanta coisa esse homem não tem para contar”; “Essa gente do mar, em cada
porto uma mulher…”; “Basta olhar para ele e logo se vê um homem de ação”; “Um
herói, meus amigos, vivendo entre nós”. E as narrativas do Comandante Vasco
Moscoso de Aragão desfilam portos, tubarões abertos pela barriga, mulheres,
vinho, uísque, pôquer e muitos outros fragmentos de vida que contribuem para a
construção de uma autobiografia, um escrever-se a si mesmo. Diz o narrador, o
amante da mulata Dondoca: “Quem muito viveu é assim: qualquer fato, paisagem ou
face recorda-lhe algo do passado”. Quando não há passado a ser recordado, há um
passado a ser criado, e qualquer fato, paisagem ou face inspira a sua criação.
Ou a sua mentira. A escolha é nossa.
Há Soraia, “a
pecadora, a mórbida bailarina de lábios de fogo (…) aquela por quem Johann, o
piloto sueco e dramático, contraíra dívidas, vendera objetos do navio, quisera
matar-se”; “… ela bulia como o sangue dos homens, música langorosa como um
vício”; “Soraia era como uma doença a penetrar o sangue, envenenando-o. Os
braços de serpente, as despidas pernas, o fulgor das pedras preciosas sobre os
seios, uma flor no ventre, quem não perderia a cabeça?” Há Giovanni, italiano,
supersticioso: “Comandante, se eu morrer embarcado quero ser jogado em mar de
minha terra”; “Segundo ele, se seu corpo fosse atirado em outras águas, sua
alma não teria descanso…”. Há o naufrágio nas costas do Peru, durante um
maremoto: “Vagas como montanhas, rasgando-se o mar em abismos, o céu negro como
tão negra jamais a noite conseguira ser” (está aqui o narrador a ser escritor).
Há a história da bebida aprendida com um velho lobo do mar, nas bandas de
Hong-Kong: açúcar queimado, trago de água, conhaque português, casca de
laranja. Há os tubarões no Mar Morto (o nosso herói abriu a barriga de três…).
Há o seu título de “Capitão de Longo Curso”, enaltecedor do patriotismo do
Comandante, que, aos 37 anos, veio do Oriente para prestar os seus exames na
Bahia, no “cais de Salvador, de onde partira menino para a aventura do mar”. Há
o seu ser português: o que conta à
Clotilde quando está a bordo do Ita:
suas relações com a lusofonia, “sua participação nas lutas monárquicas e
republicanas em Portugal, levado por nobres sentimentos de gratidão ao rei D.
Carlos I. Navegou de Portugal para as Índias, onde os marujos o haviam
apelidado de Mão de Ferro e Coração de Ouro, pois, brando como a brisa, amigo
de seus tripulantes, podia ser, se desobedecido, violento como o furação, implacável
mão de ferro”. Recebe, do rei de Portugal e Algarves, pelos seus relevantes serviços
ao comércio marítimo, a condecoração lusitana da Ordem de Cristo. Quando está
para receber a medalha, assim diz o Capitão de Fragata, George Dias Nadreau: “…
ele se chama Vasco, é comandante, neto de portugueses, quase parente do
Almirante Vasco da Gama…”. E a premiação lhe é entregue com a seguinte
justificativa, lusitana até à medula: por sua notável contribuição à abertura
de novas rotas marítimas. Não há coisa mais portuguesa do que a abertura de
rotas marítimas...
E há, enfim, Dorothy,
a razão do seu abandono do mar, o juramento que faz à amada, em seu leito de
morte, de nunca mais enfrentar o oceano caso ela não resista à doença que a foi
matando. Ela não resiste, e o Comandante Vasco Moscoso de Aragão, então, nunca
mais deixa de pisar a terra.
Belas linhas,
e parabéns ao nosso narrador, que quer ser escritor mas sabe que escrever é tão
difícil quanto satisfazer a Dondoca, dada a quantidade de críticas que recebe,
pelo seu “estilo frouxo e impreciso, [pela] ação lenta e débil, [pelos] lugares
comuns em quantidade, personagens sem vida interior. Uma frase da qual,
confesso, me orgulho [diz ele], uma que ficou aí para trás, ‘contra ele se
levantam, em vagalhões de infâmia, os oceanos da calúnia’, mereceu a sardônica
reprovação e um riso de mofa”. De quem? Como se mencionou lá atrás, é Chico
Pacheco quem solta a gargalhada: “Capitão de longo curso? Pra mim, esse sujeito
não é capaz de comandar nem uma canoa… Tem cara de dono de armarinho…”. E assim
faz ele, infelizmente, um espetacular resumo biográfico do nosso Comandante...
Chico Pacheco,
embora personifique o conhecimento sistematizado do mundo e se localize no pólo
oposto ao do Comandante — usuário da literatura como forma de conhecimento do
mesmo mundo, sim, mas um conhecimento diferente, não sistematizado, errante e
náfego —, Pacheco também pratica lá as suas mentirinhas, que não passam de
tricas jurídicas, “triviais e limitadas, seu campo de ação não ultrapassava a
cidade da Bahia, gente conhecida, cenários a meia hora de trem”; nada comparado
ao “exagerado sem medidas, plantado na cobertura de navios no meio de mares e
oceanos remotos, às voltas com tempestades, naufrágios, tubarões, batido por
todos os ventos e repleto de mulheres, a maioria delas apaixonadas e lúbricas”.
O objetivo de Chico Pacheco é negar uma realidade de vida. Sim, o diploma de
Capitão de Longo Curso era difícil de negar, mas o que havia por trás do
diploma? A outra história de vida do Comandante Vasco Moscoso do Aragão?
A outra
história que ele não escreveu? A do “seu” Vasquinho? Aquela história descoberta
por Pacheco acerca do passado do Comandante? A história dos cinco amigos: o
Coronel Pedro de Alencar, o Capitão de Fragata George Dias Nadreau, o Dr.
Jerônimo de Paiva, o Tenente Lídio Marinho, e o “seu” Vasco Moscoso de Aragão,
dono da firma Moscoso & Cia. Ltda.? A outra história? A do “seu” Vasquinho?
Neto do José Moscoso, um português das antigas, de rígidos princípios e de
visão comercial, para quem a firma era tudo, e o resto era quase nada? A outra
história? A do “seu” Vasquinho? Neto que herdou as quotas do avô, que lhe
garantiram o controle da firma, a maior parte dos lucros, uma fortuna
considerável e nenhuma responsabilidade. A outra história? A do “seu”
Vasquinho? Sim: a história do que poderíamos chamar “Mal de Moscoso”, a
angústia por não possuir de seu, seu de verdade, nenhum título.
O que temos
aqui é a verdadeira história de uma história de vida verdadeiramente inventada.
O Comandante Vasco Moscoso de Aragão não inventou um presente ou um futuro. Não,
toda a sua construção de si é um a priori
que só funciona a posteriori. Dentro
de si estavam todas aquelas histórias de viagem, e um título como o seu não
poderia vir sozinho; tinha de vir com um passado. Mas, no entanto, a construção
do passado do Comandante teve de eliminar um passado de vida em Salvador, a
vida do “seu” Aragãozinho, na pensão Monte Carlo, com a verdadeira Dorothy.
Somem-se a isso
a entrada em Periperi e a junção de duas demandas: a necessidade de contar a
sua história de vida grandiosa e a necessidade daquele povo de ouvir uma
história de vida — uma demanda a legitimar a outra. A semelhança entre os Ulisses, o homérico (herói: comandante
do mar, filho de Laertes) e o joyceano (anti-herói: Leopold Bloom), é clara.
Aqueles interlocutores transformaram tudo em verdade. E todos saem ganhando, menos
Chico Pacheco.
E, de repente,
surge a viagem a comandar o Ita, e o passado
se defronta com o presente, mas se cumprimentando, um ao outro, educadamente, e
todas as histórias de amor a bordo se arrumam. Mas essa história do “seu”
Vasquinho não nos interessa aqui (a nossa cena é a dos heróis!); podemos pular
todas essas páginas e cair diretamente na navegação do Ita, quando o Comandante finalmente entra num navio, depois de
muitos anos sem pôr o pé num (frase ambígua?).
E chegar
diretamente à questão das amarras ao cais. Não há para este homem meio termo. Serão
todas as amarras, ou não será nada, porque todos os ventos de todas as suas
histórias comparacerão para tentar derrubar o seu navio, amarrado com todas as
amarras, todos os ferros, todas as manilhas, todas as espias, todos os strings e o ancorete, e o navio a se
ligar por amarra ou cabo de aço, Comandante? “Pelos dois”, diz o Comandante
Vasco Moscoso de Aragão. E todos riram. E os ventos surgem. Quais? Todos. Ou
são todos ou não é nenhum. As Monções, o Harmatã, os ventos Alísios, o Mistral,
os ventos da Sibéria, e os do Nordeste, o Terral e o Aracati.
Estava o
personagem dividido e a meio caminho entre o seu ser português e “comandante” e o seu ser brasileiro e comerciante, com a sua “cara de dono de armarinho”.
Estava o nosso comandante-comerciante envolvido com a invenção de um passado
glorioso que iria representar uma saída para o registo documental da sua vida
quotidiana, a sua ficção a desafiar o seu real. E do mesmo modo está a
narrativa d“A completa verdade sobre as discutidas aventuras do Comandante
Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso” a oscilar entre uma vontade
lírica de realismo mágico e uma necessidade social de realismo — o que vai
resultar no que Adolfo Casais Monteiro chamou de “realismo lírico”,
referindo-se ao universo literário de Jorge Amado, qualidade que tanto
influenciou os romancistas portugueses do neorrealismo, ajudando-os a não cair
no risco de se preterir a ficção em nome do documentarismo político-social de
caráter panfletário.
Naquele navio,
o Ita, ele foi, agora
verdadeiramente, o Comandante Vasco Moscoso de Aragão — não no modo de pôr o
navio a navegar, mas no modo de não o
pôr a navegar; no modo de melhor o imobilizar, preso, bem preso, à terra, tal
como o seu comandante se manteve toda a vida.
Pergunta-nos
o narrador, ao final do romance: “Qual a moral a extrair desta história por
vezes salafrária e chula? Está a verdade naquilo que sucede todos os dias, nos
quotidianos acontecimentos, na mesquinhez e chatice da vida da imensa maioria
dos homens ou reside a verdade no sonho que nos é dado sonhar para fugir de
nossa triste condição?”. O Comandante Vasco Moscoso de Aragão mostra-nos as
duas verdades: a verdadeira história de uma história de vida verdadeiramente
inventada e, além disso, também o êxito do seu projecto, que é a satisfação de
duas demandas. A primeira: a sua necessidade íntima e ficcional de imaginar
para si, capitão de longo curso, as aventuras que diz ter vivido; a segunda: a
necessidade das pessoas de Periperi de ouvir as histórias que ouviram,
escapando assim de um real ordinário e encontrando, enfim, o herói que sempre
quiseram ter ali, à mão, a viver entre elas — uma demanda a legitimar a outra.
Aqueles interlocutores-ouvintes, transformando a invenção em verdade,
concretizam o pacto ficcional.
Ensaiamos uma
tese: o comandante; deparamo-nos com uma antítese: o “seu” Vasco; e chegamos a
uma síntese: o comandante “seu” Vasco a comandar o Ita. Naquele navio, ele se reconcilia com o seu passado, que deixou
de ser uma mentira. A sua grande peculiaridade é esta: tanto no seu passado
criado como no seu presente, ele comanda navios, mas os comanda da terra: todos os navios que comandou
localizam-se no passado, menos o Ita,
e ele os comanda do presente, e através da memória, do leme da memória,
olhando, pela luneta, não para frente, e sim para trás, para o passado. Com
exceção do Ita. Mantendo o seu Ita bem amarrado ao cais, com todas as
amarras, ele o comandou como nenhum outro comandante o faria. Viva o Comandante
Vasco Moscoso de Aragão, capitão de longo curso, o nosso marinheiro português
do século XIX!
Referências:
AMADO, Jorge.
“A completa verdade sobre as discutidas aventuras do Comandante Vasco Moscoso
de Aragão, capitão de longo curso”. In: __________. Os velhos marinheiros —
duas histórias do cais da Bahia. São Paulo: Martins, 1970.
COUTINHO,
Afrânio (Dir.). A literatura no Brasil. 6 Vols. — Vol. V: Era Modernista. 3ª
ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: EDUFF —
Editora da Universidade Federal Fluminense — UFF.
GOLDSTEIN,
Ilana Seltzer. O Brasil best seller de Jorge Amado — Literatura e identidade
nacional. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003.
SALEMA,
Álvaro. Jorge Amado: o homem e a obra — presença em Portugal. Lisboa:
Publicações Europa-América, 1982.