13 de novembro de 2012

“O quase marinheiro português do século XIX que bem o é” - "Colóquio Internacional 100 anos de Jorge Amado"

"Colóquio Internacional 100 anos de Jorge Amado"
12 a 16 de Novembro de 2012, CLEPUL, Universidades de Lisboa, Coimbra e Porto.

Dia 13: Mesa 1 - "Jorge Amado, Portugal e o neorrealismo".
Coord.: João Marques Lopes.
Com: Edvaldo Bergamo (UnB), Ernesto Rodrigues (FLUL), Fernando Cristóvão (FLUL), Teresa Martins Marques (CLEPUL) e Juva Batella (CLEPUL).

“O quase marinheiro português do século XIX que bem o é” — Ensaio acerca da completa verdade sobre as discutidas aventuras do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso

Resumo:

Recontar-se-á aqui a vida do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, narrativa do volume Os velhos marinheiros, de Jorge Amado, sob um específico interesse: observar esta invenção que realiza de si mesmo o comerciante “seu” Aragãozinho como a encarnação de um dilema que ultrapassa a sua biografia ficcional e contamina o modo como se pode inscrever este texto no percurso da literatura de Jorge Amado.

Palavras-chave:

Autoficção
Biografia
Invenção
Marinheiro
Memória

Texto:

Quando li “A completa verdade sobre as discutidas aventuras do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso”, segunda narrativa dOs velhos marinheiros, de Jorge Amado, e vi ali um personagem que podia ser muitas coisas — um personagem acerca do qual não havia verdade que se encaixasse melhor na sua personalidade do que a mentira por ele inventada —, pensei que posso olhar para o Comandante Moscoso como um marinheiro português do século XIX.

Bem sei que a tarefa aqui é daquelas tidas como improváveis. Observar a invenção que realiza de si mesmo o comerciante “seu” Aragãozinho como a encarnação de um dilema que ultrapassa a sua biografia ficcional e contamina o modo como se pode inscrever esse texto no percurso da literatura de Jorge Amado. E para tal tentarei convencer a mim mesmo de que um marinheiro português que nunca foi nem marinheiro nem português pode muito bem, não exatamente vir a sê-lo, mas ter sido. Estamos a falar do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso.

Que nasceu em 1868 e morreu, aos 82 anos, em 1950, sendo, portanto, um homem do século XIX. O que nos interessa aqui é a verdade, a verdade do texto, a verdade do narrador e a do personagem. O narrador, ele próprio diz, não costuma “discutir, muito menos negar a literatura e o jornalismo”.

Vivemos aqui, com este delicioso romance de Jorge Amado, duas narrativas: uma em tempo de narração, o narrador a falar de si e do seu tumultuoso caso de amor com a mulata Dondoca; outra em rememoração, a contar episódios passados, sendo um deles a atribulada existência do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, a sua vida de menino, de jovem e adulto, e tudo o que se deu após a sua chegada na pacata região de veraneio chamada Periperi, na Costa Leste Brasileira, nos anos de 1929. A segunda narrativa dá-se em dois níveis: no da própria narração (o narrador amante da mulata Dondoca e favorável ao Comandante, em primeira pessoa, a contar o que sabe, e sabe porque lhe contaram); e, o outro, no encadeamento dos fatos, por si, durante o qual mal se percebe a presença de um narrador, embora ele lá esteja. Está, sim, e não sozinho, pois surge um outro, a funcionar como um contraponto: um personagem inserido na história de 1929, Chico Pacheco, “o invejoso”, que nos vai contar uma outra história, ou melhor, que vai contar ao narrador amante da Dondoca uma outra história, e ele nos vai contar a nós. A verdade dos fatos, ao final, estará sempre ao lado do narrador, seja ele qual for.

E de quem estamos a falar, ao fim e ao cabo? Do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, um homem do mar, com um olhar e uma postura que revelam uma antiga intimidade com o Oceano, feita de amor e cólera, de histórias vividas, sensível aos corações pacatos de Periperi, corações que nunca viveram a aventura distante e brilhante do heroísmo.

O que é Periperi antes da chegada do Comandante? Uma região habitada por uma população estável de aposentados e retirados dos negócios, com suas famílias, quase sempre a esposa e por vezes uma irmã solteirona, e muitos velhinhos sozinhos, como, por exemplo, um bom exemplo, o “seu” Adriano Meira. Retirado do negócio de ferragens, o homem sai, todas as noites, durante o verão, depois das nove horas, com uma lanterna elétrica, para, como ele mesmo diz, “passar em revista os namorados, ver se estão trabalhando bem”.

Nada acontecia em Periperi, onde “o tempo se alongava, nada o apressava, os acontecimentos duravam acontecendo”, com exceção de dois ótimos escândalos. O primeiro deu-se com o tenente-coronel Ananias Miranda, a sua esposa Ruth de Morais Miranda e o jovem estudante de Direito, Arlindo Paiva, um dia a entreter a dona Ruth, como fazia todos os dias, à tarde, enquanto o marido, o tenente-coronel, trabalhava. Entretinham-se muito bem, tão sozinha a dona Ruth..., entretendo-se ambos, Arlindo e Ruth, sempre nus no quarto de casal, em meio a risadas e gemidos, quando numa tarde decide o nosso Ananias Miranda fazer à mulher uma surpresa, toda ela composta de guloseimas e vinhos em sacos plásticos presos aos dedos. Vinha carregado de compras o Ananias. Mas podia ter avisado... Não avisou; simplesmente apareceu, surpresa é surpresa, deixando a empregada à porta em pânico. Não há muito o que narrar, fiquemos apenas com esta cena: Ananias parado à soleira, tentando desvencilhar-se dos sacos plásticos das compras presos aos dedos, tentando chegar à pistola presa ao cinto; Ruth paralisada, gritando por dentro, esbugalhados os olhos; Arlindo Paiva, nu, saltando a janela, desaparecendo pelado, atravessando Periperi em alta velocidade e à vista de toda a população, e nunca mais voltando.

O segundo escândalo rasgou a família Cordeiro, composta do pai, da mãe e de quatro filhas casadoiras. A mais nova, Adélia, um dia desaparece, levando as suas roupas, as melhores roupas das irmãs e ainda, na mala, o dr. Aristides Melo, médico e casado. A mulher do dr. Aristides invade a casa dos Cordeiro, aos berros: “A putinha da sua filha roubou o meu marido!”. Fogem os Cordeiro de Periperi. A casa é vendida. O pai, Pedro Cordeiro, mata-se.

Acontece então a entrada do Comandante, comprador da casa vendida, a chamada “Casa das janelas verdes”. Todos examinam o “cidadão baixote e troncudo, de rosto avermelhado, nariz adunco, vestido com aquele extraordinário paletó”; “o Comandante pela rua, vestido com o seu paletó marítimo, o cachimbo na boca, e, sobre os revoltosos cabelos, um boné ornado com uma âncora”. Zequinha Curvelo, leitor assíduo de romances de aventuras, devorador de folhetins baratos, é quem inicia a construção da imagem do Comandante para o povo de Periperi. O Comandante faz a sua parte, sim, mas a própria cidade faz o resto. E diziam, aumentando e enfeitando as cenas: “Antes mesmo de entrar em casa foi ver o mar”; “Quanta coisa esse homem não tem para contar”; “Essa gente do mar, em cada porto uma mulher…”; “Basta olhar para ele e logo se vê um homem de ação”; “Um herói, meus amigos, vivendo entre nós”. E as narrativas do Comandante Vasco Moscoso de Aragão desfilam portos, tubarões abertos pela barriga, mulheres, vinho, uísque, pôquer e muitos outros fragmentos de vida que contribuem para a construção de uma autobiografia, um escrever-se a si mesmo. Diz o narrador, o amante da mulata Dondoca: “Quem muito viveu é assim: qualquer fato, paisagem ou face recorda-lhe algo do passado”. Quando não há passado a ser recordado, há um passado a ser criado, e qualquer fato, paisagem ou face inspira a sua criação. Ou a sua mentira. A escolha é nossa.

Há Soraia, “a pecadora, a mórbida bailarina de lábios de fogo (…) aquela por quem Johann, o piloto sueco e dramático, contraíra dívidas, vendera objetos do navio, quisera matar-se”; “… ela bulia como o sangue dos homens, música langorosa como um vício”; “Soraia era como uma doença a penetrar o sangue, envenenando-o. Os braços de serpente, as despidas pernas, o fulgor das pedras preciosas sobre os seios, uma flor no ventre, quem não perderia a cabeça?” Há Giovanni, italiano, supersticioso: “Comandante, se eu morrer embarcado quero ser jogado em mar de minha terra”; “Segundo ele, se seu corpo fosse atirado em outras águas, sua alma não teria descanso…”. Há o naufrágio nas costas do Peru, durante um maremoto: “Vagas como montanhas, rasgando-se o mar em abismos, o céu negro como tão negra jamais a noite conseguira ser” (está aqui o narrador a ser escritor). Há a história da bebida aprendida com um velho lobo do mar, nas bandas de Hong-Kong: açúcar queimado, trago de água, conhaque português, casca de laranja. Há os tubarões no Mar Morto (o nosso herói abriu a barriga de três…). Há o seu título de “Capitão de Longo Curso”, enaltecedor do patriotismo do Comandante, que, aos 37 anos, veio do Oriente para prestar os seus exames na Bahia, no “cais de Salvador, de onde partira menino para a aventura do mar”. Há o seu ser português: o que conta à Clotilde quando está a bordo do Ita: suas relações com a lusofonia, “sua participação nas lutas monárquicas e republicanas em Portugal, levado por nobres sentimentos de gratidão ao rei D. Carlos I. Navegou de Portugal para as Índias, onde os marujos o haviam apelidado de Mão de Ferro e Coração de Ouro, pois, brando como a brisa, amigo de seus tripulantes, podia ser, se desobedecido, violento como o furação, implacável mão de ferro”. Recebe, do rei de Portugal e Algarves, pelos seus relevantes serviços ao comércio marítimo, a condecoração lusitana da Ordem de Cristo. Quando está para receber a medalha, assim diz o Capitão de Fragata, George Dias Nadreau: “… ele se chama Vasco, é comandante, neto de portugueses, quase parente do Almirante Vasco da Gama…”. E a premiação lhe é entregue com a seguinte justificativa, lusitana até à medula: por sua notável contribuição à abertura de novas rotas marítimas. Não há coisa mais portuguesa do que a abertura de rotas marítimas...

E há, enfim, Dorothy, a razão do seu abandono do mar, o juramento que faz à amada, em seu leito de morte, de nunca mais enfrentar o oceano caso ela não resista à doença que a foi matando. Ela não resiste, e o Comandante Vasco Moscoso de Aragão, então, nunca mais deixa de pisar a terra.

Belas linhas, e parabéns ao nosso narrador, que quer ser escritor mas sabe que escrever é tão difícil quanto satisfazer a Dondoca, dada a quantidade de críticas que recebe, pelo seu “estilo frouxo e impreciso, [pela] ação lenta e débil, [pelos] lugares comuns em quantidade, personagens sem vida interior. Uma frase da qual, confesso, me orgulho [diz ele], uma que ficou aí para trás, ‘contra ele se levantam, em vagalhões de infâmia, os oceanos da calúnia’, mereceu a sardônica reprovação e um riso de mofa”. De quem? Como se mencionou lá atrás, é Chico Pacheco quem solta a gargalhada: “Capitão de longo curso? Pra mim, esse sujeito não é capaz de comandar nem uma canoa… Tem cara de dono de armarinho…”. E assim faz ele, infelizmente, um espetacular resumo biográfico do nosso Comandante...

Chico Pacheco, embora personifique o conhecimento sistematizado do mundo e se localize no pólo oposto ao do Comandante — usuário da literatura como forma de conhecimento do mesmo mundo, sim, mas um conhecimento diferente, não sistematizado, errante e náfego —, Pacheco também pratica lá as suas mentirinhas, que não passam de tricas jurídicas, “triviais e limitadas, seu campo de ação não ultrapassava a cidade da Bahia, gente conhecida, cenários a meia hora de trem”; nada comparado ao “exagerado sem medidas, plantado na cobertura de navios no meio de mares e oceanos remotos, às voltas com tempestades, naufrágios, tubarões, batido por todos os ventos e repleto de mulheres, a maioria delas apaixonadas e lúbricas”. O objetivo de Chico Pacheco é negar uma realidade de vida. Sim, o diploma de Capitão de Longo Curso era difícil de negar, mas o que havia por trás do diploma? A outra história de vida do Comandante Vasco Moscoso do Aragão?

A outra história que ele não escreveu? A do “seu” Vasquinho? Aquela história descoberta por Pacheco acerca do passado do Comandante? A história dos cinco amigos: o Coronel Pedro de Alencar, o Capitão de Fragata George Dias Nadreau, o Dr. Jerônimo de Paiva, o Tenente Lídio Marinho, e o “seu” Vasco Moscoso de Aragão, dono da firma Moscoso & Cia. Ltda.? A outra história? A do “seu” Vasquinho? Neto do José Moscoso, um português das antigas, de rígidos princípios e de visão comercial, para quem a firma era tudo, e o resto era quase nada? A outra história? A do “seu” Vasquinho? Neto que herdou as quotas do avô, que lhe garantiram o controle da firma, a maior parte dos lucros, uma fortuna considerável e nenhuma responsabilidade. A outra história? A do “seu” Vasquinho? Sim: a história do que poderíamos chamar “Mal de Moscoso”, a angústia por não possuir de seu, seu de verdade, nenhum título.

O que temos aqui é a verdadeira história de uma história de vida verdadeiramente inventada. O Comandante Vasco Moscoso de Aragão não inventou um presente ou um futuro. Não, toda a sua construção de si é um a priori que só funciona a posteriori. Dentro de si estavam todas aquelas histórias de viagem, e um título como o seu não poderia vir sozinho; tinha de vir com um passado. Mas, no entanto, a construção do passado do Comandante teve de eliminar um passado de vida em Salvador, a vida do “seu” Aragãozinho, na pensão Monte Carlo, com a verdadeira Dorothy.

Somem-se a isso a entrada em Periperi e a junção de duas demandas: a necessidade de contar a sua história de vida grandiosa e a necessidade daquele povo de ouvir uma história de vida — uma demanda a legitimar a outra. A semelhança entre os Ulisses, o homérico (herói: comandante do mar, filho de Laertes) e o joyceano (anti-herói: Leopold Bloom), é clara. Aqueles interlocutores transformaram tudo em verdade. E todos saem ganhando, menos Chico Pacheco.

E, de repente, surge a viagem a comandar o Ita, e o passado se defronta com o presente, mas se cumprimentando, um ao outro, educadamente, e todas as histórias de amor a bordo se arrumam. Mas essa história do “seu” Vasquinho não nos interessa aqui (a nossa cena é a dos heróis!); podemos pular todas essas páginas e cair diretamente na navegação do Ita, quando o Comandante finalmente entra num navio, depois de muitos anos sem pôr o pé num (frase ambígua?).

E chegar diretamente à questão das amarras ao cais. Não há para este homem meio termo. Serão todas as amarras, ou não será nada, porque todos os ventos de todas as suas histórias comparacerão para tentar derrubar o seu navio, amarrado com todas as amarras, todos os ferros, todas as manilhas, todas as espias, todos os strings e o ancorete, e o navio a se ligar por amarra ou cabo de aço, Comandante? “Pelos dois”, diz o Comandante Vasco Moscoso de Aragão. E todos riram. E os ventos surgem. Quais? Todos. Ou são todos ou não é nenhum. As Monções, o Harmatã, os ventos Alísios, o Mistral, os ventos da Sibéria, e os do Nordeste, o Terral e o Aracati.

Estava o personagem dividido e a meio caminho entre o seu ser português e “comandante” e o seu ser brasileiro e comerciante, com a sua “cara de dono de armarinho”. Estava o nosso comandante-comerciante envolvido com a invenção de um passado glorioso que iria representar uma saída para o registo documental da sua vida quotidiana, a sua ficção a desafiar o seu real. E do mesmo modo está a narrativa d“A completa verdade sobre as discutidas aventuras do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso” a oscilar entre uma vontade lírica de realismo mágico e uma necessidade social de realismo — o que vai resultar no que Adolfo Casais Monteiro chamou de “realismo lírico”, referindo-se ao universo literário de Jorge Amado, qualidade que tanto influenciou os romancistas portugueses do neorrealismo, ajudando-os a não cair no risco de se preterir a ficção em nome do documentarismo político-social de caráter panfletário.

Naquele navio, o Ita, ele foi, agora verdadeiramente, o Comandante Vasco Moscoso de Aragão — não no modo de pôr o navio a navegar, mas no modo de não o pôr a navegar; no modo de melhor o imobilizar, preso, bem preso, à terra, tal como o seu comandante se manteve toda a vida.

Pergunta-nos o narrador, ao final do romance: “Qual a moral a extrair desta história por vezes salafrária e chula? Está a verdade naquilo que sucede todos os dias, nos quotidianos acontecimentos, na mesquinhez e chatice da vida da imensa maioria dos homens ou reside a verdade no sonho que nos é dado sonhar para fugir de nossa triste condição?”. O Comandante Vasco Moscoso de Aragão mostra-nos as duas verdades: a verdadeira história de uma história de vida verdadeiramente inventada e, além disso, também o êxito do seu projecto, que é a satisfação de duas demandas. A primeira: a sua necessidade íntima e ficcional de imaginar para si, capitão de longo curso, as aventuras que diz ter vivido; a segunda: a necessidade das pessoas de Periperi de ouvir as histórias que ouviram, escapando assim de um real ordinário e encontrando, enfim, o herói que sempre quiseram ter ali, à mão, a viver entre elas — uma demanda a legitimar a outra. Aqueles interlocutores-ouvintes, transformando a invenção em verdade, concretizam o pacto ficcional.

Ensaiamos uma tese: o comandante; deparamo-nos com uma antítese: o “seu” Vasco; e chegamos a uma síntese: o comandante “seu” Vasco a comandar o Ita. Naquele navio, ele se reconcilia com o seu passado, que deixou de ser uma mentira. A sua grande peculiaridade é esta: tanto no seu passado criado como no seu presente, ele comanda navios, mas os comanda da terra: todos os navios que comandou localizam-se no passado, menos o Ita, e ele os comanda do presente, e através da memória, do leme da memória, olhando, pela luneta, não para frente, e sim para trás, para o passado. Com exceção do Ita. Mantendo o seu Ita bem amarrado ao cais, com todas as amarras, ele o comandou como nenhum outro comandante o faria. Viva o Comandante Vasco Moscoso de Aragão, capitão de longo curso, o nosso marinheiro português do século XIX!

Referências:

AMADO, Jorge. “A completa verdade sobre as discutidas aventuras do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, capitão de longo curso”. In: __________. Os velhos marinheiros — duas histórias do cais da Bahia. São Paulo: Martins, 1970.

COUTINHO, Afrânio (Dir.). A literatura no Brasil. 6 Vols. — Vol. V: Era Modernista. 3ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: José Olympio; Niterói: EDUFF — Editora da Universidade Federal Fluminense — UFF.

GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. O Brasil best seller de Jorge Amado — Literatura e identidade nacional. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003.

SALEMA, Álvaro. Jorge Amado: o homem e a obra — presença em Portugal. Lisboa: Publicações Europa-América, 1982.

TAVARES, Paulo. Criaturas de Jorge Amado. São Paulo: Martins, 1969.

1 de novembro de 2012

"Portugalzinho e o seu (meu) coração"

Um belo dia, em Lisboa, decidi ver e viver acontecimentos, um deles relativo ao meu coração, cuja válvula aórtica não é lá muito cristã no seu vai-e-vem de abrir e fechar. Terei um dia, quem sabe, de substituir a dita cuja por uma mecânica, tomar uns remedinhos, fazer exames periódicos e pronto. O cardiologista me disse, escondendo um quase-sorriso:

— O senhor já reparou na base do seu pescoço?

— O que é que tem a base do meu pescoço, senhor doutor?

— Ela pulsa. Veja — e me estendeu um espelhinho.

E eu vi, mesmo na base do pescoço, bem no meio, entre as clavículas, o vai-e-vem do coração pulsando sob a pele.

— Puxa... a pele se mexe para cima e para baixo...

— Pois se mexe...

Eu nunca havia reparado nisso, e nunca ninguém havia reparado nisso. Tratava-se de uma peculiaridade física que eu, aos 37 anos, acabava de descobrir em mim mesmo. Fiquei sem saber o que dizer, e a única coisa que me veio à cabeça e que consegui comentar foi:

— Nunca poderei fazer o papel de um morto no cinema…

O cardiologista, olhando-me pela primeira vez com alguma curiosidade, perguntou:

— O senhor é ator?

— Ator? Não, não... Sou escritor... Quer dizer...

— Escritor... Ah...

E assim terminou a consulta.

A secretária do senhor cardiologista me perguntou se eu queria que ela chamasse, pelo telefone, um táxi, porque ali passavam poucos táxis.

— Não, minha senhora. Obrigado. Eu sou um rapaz de sorte.

E, de fato, mal pisei a rua e já lá vinha um táxi. Fiz um sinal, entrei. Dobramos a primeira rua e caímos num grande congestionamento próximo à praça do Marquês de Pombal, em frente à avenida da Liberdade.

E o motorista do táxi, como se estivesse com tudo aquilo entalado na sua garganta há muitos anos, desandou a fazer o que muitos portugueses gostam de fazer (e o fazem com graça e inteligência): reclamar. O congestionamento no qual entramos e dentro do qual já estávamos metidos até o pescoço era, percebi imediatamente, apenas um pretexto para a sua digressão.

— O senhor veja, o senhor é brasileiro, o senhor há de me entender. Isto do jeito que está não funciona! — e ele colocou a mão esquerda para fora, num gesto que tinha a intenção de abarcar Lisboa inteira, Portugal todo ele. — Isto do jeito que está não anda a correr nada bem! O senhor olha aí para os lados, e o que o senhor vê? Vê um português por carro… Um carro por português. Isto assim não vai nada longe! É por isto que este país está assim, e esta cidade está assim, e este povo está assim… Isto aqui não corre nada bem! O senhor veja a quantidade de carros aqui à volta…

— Isto é em todo o mundo… — consegui dizer.

— Mas... Ó, meu senhor... Portugal é um país pequeno. Nós somos pequenos... Nós somos pequeninos. Isto assim não funciona! O português tem de saber viver na medida da sua possibilidade. E os transportes públicos? E os metros, os autocarros e os comboios? O senhor ‘tá a ver? Um carro por pessoa! O senhor sabe como isto aqui estará daqui a uma data d’anos? Não sabe… Pois não queira saber, hã… Ó, meu senhor. O senhor é brasileiro, o senhor há de me entender. Vou lhe dizer assim, o senhor veja: o português ganha, por mês, cinquenta, e gasta cinquenta e dois, e para obter estes dois ele vai ao banco e pede quatro de empréstimo, e gasta os cinquenta e seis e ainda começa a dever três no início do mês para o banco… Então o que é que temos? Temos um português que ganha cinquenta e gasta, ao fim e ao cabo, cinquenta e nove!

— Pois — disse eu.

— Pois — disse ele. E seguiu: — Isto é a bola de neve! A bola de neve portuguesinha... E ainda há quem diga por aí que Portugal tem condições... Portugal não tem condições, meu senhor. E o senhor sabe por quê? Porque o português não trabalha! Sim, isto mesmo! O português não trabalha! Isto aqui está tudo encostado, o dinheiro que temos aqui é o dinheiro da Comunidade. Agora o senhor vá conhecer o português fora de Portugal... O senhor é brasileiro, o senhor há de me entender... O português fora de Portugal é um bravo!

— Pois — disse eu, pensando nos portugueses donos da padaria Rio-Lisboa, ali no Leblon, no Rio de Janeiro. Pensei na padaria que vi e na qual entrei durante toda a minha infância e toda a minha adolescência, e me dei conta de que nunca vi aquela padaria Rio-Lisboa fechada em toda a minha vida… Estará fechada no dia do Juízo Final? Já posso ver, no dia do Juízo Final, aquela fila de gente à espera de levar o derradeiro pão-nosso-de-cada-dia para a vida eterna... E acrescentei ao meu comentário um outro comentário: — Pois. O português lá fora é um bravo... Mas aqui dentro também...

— O senhor não me está a levar a sério... Posso ver que não… Mas o senhor é brasileiro, e o senhor há de me entender... É como eu lhe digo: o português cá de dentro se encosta no Portugal que tem. O português de fora trabalha como um verdadeiro português, porque lá fora ele não tem o seu Portugalzinho para se encostar... O português lá fora é um cidadão do mundo! Adapta-se, corre atrás, dá o seu sangue e não fica à espera. É um bravo! Aprende as línguas, sai à rua, anda, como faz toda a gente, nos transportes públicos, e não fica com o reizinho na barriga, que é como vocês lá no Brasil dizem, não é mesmo? Se calhar nós é que inventamos a frase… O gajo tem o rei na barriga… Não é assim? É o caso do português cá de dentro. O português cá de dentro é o hóspede do seu Portugalzinho.

— Pois — disse eu, retornando aos comentários sintéticos.

— Pois — disse ele. E seguiu: — E o que é que faz este português de dentro, a encostar-se no seu Portugalzinho, a viver dentro do seu Portugalzinho como se estivesse num hotel?... Em vez de trabalhar e de dar o seu sangue, como faz o português de fora, que está no estrangeiro a ganhar a vida, o que é que faz o português que vive cá em Portugal, em vez de trabalhar? O que é que faz este português, dentro do seu Portugalzinho pequenino? Faz a única coisa que sabe fazer: reclamar e reclamar e reclamar... Isto, meu senhor, não está a correr nada bem...

— Pois — disse eu, a pensar, e enquanto pensava ia olhando, pela janela, para a cidade mais maravilhosa do mundo.