Estou em Santo Amaro de Oeiras, no distrito de Lisboa. Em Santo Amaro não acontece nada. Somadas as pessoas que vejo a andar pela rua em um dia, o número não chega a cinquenta. Táxis nunca vi, exceto os que peço. Os autocarros (ônibus) — costumo ver um a cada dois dias. Mas há ventos, e de todos os tipos. E as árvores balançam bué (muito). Mesmo assim, com as árvores a balançar bué, em Santo Amaro não acontece nada.
Mas de vez em quando acontece. E é quando pego um Uber. Os motoristas são de todas as cores, sexos e nacionalidades; e de todos os feitios. Um deles me atropelou — um senhor da Croácia. Eu estava ocupado com a chuva, não notei que sua nota era 3.7, que tinha dois meses de trabalho e não mais que trinta viagens. Quando vi eu já estava dentro do carro. Cumprimentei-o, ele me olhou esquisito, resmungou em croata, vi que não falava português, atrapalhou-se com o aplicativo, correu feito um desvairado, não xingou Deus, mas quem estivesse ao lado, errou o caminho duas vezes — e por fim, depois que eu saí do carro, ele então me atropelou.
Mas não assim: passando por cima de mim. Já fora do carro, contornava-o por trás quando meu telefone tocou. Distraí-me atendendo, acabei parando, de costas, enquanto conversava, e o senhor croata deu então a sua marcha a ré sem nem querer saber... Senti a pancada por trás, pulei para a frente, e me vi de repente fugindo de um Uber em marcha a ré. Corri, desviei para o lado, fui ter com ele mas já era tarde. O carro engatou a primeira e arrancou, os pneus cantando na chuva. Dei apenas uma estrela ao gajo, e na justificativa disse que ele havia me atropelado levemente. A vida pode ser complicada, mas será bem menos se a linguagem for simples.
*
Quando a dona Rosarinho apareceu, muito empinadinha no seu Volvo preto, muito bem arrumadinha a conduzir, pensei na delicadamente poderosa Miss Marple, da Agatha Christie. Deve ser ela, disse a mim mesmo. Só pode ser. E o carro estalava de tão novo.
— A senhora tem um belo carro...
— O menino Juva... Posso chamá-lo assim, não? Tão moço...
— Claro, dona Rosarinho.
— O menino Juva não viu nada... As minhas colegas estão ainda mais bem equipadas. Renovamos a frota, e causamos uma bela impressão em Lisboa...
— A senhora pertence a um grupo de senhoras motoristas da... terceira idade?
— Sim, mas eu não gosto nada deste termo.
— Peço desculpas.
— Tudo bem. O menino Juva não é obrigado a saber.
— Mesmo assim peço desculpas.
— Ena, pá! Eu já lhe disse que não há problema... Só não me chame “cota”.
— Cota?!
— É uma gíria angolana que a malta usa para chamar os velhos...
— Peço desculpas, dona Rosarinho...
— E escusa de me chamar “dona” Rosarinho... Não sou dona de nada, só da minha vida.
— Claro, claro.
— Bom, mas eu estava a falar de quê? Sim, a Uber tem uma política de idade máxima, a coisa é um bocado estúpida, mas lá conseguimos resolver... A minha colega, a Maria João, é que cuidou da cena toda. E arranjamos uma autorização para realizar o nosso trabalho. Eu conduzo automóveis desde os quinze anos, graças ao meu pai, e conduzo muito bem! Muito melhor, aliás, que esses betinhos, mauricinhos, como vocês chamam, que andam por aí às corridas, mas não passam de uns despassarados... Uns aldrabões...
— Mas eu estava a dizer que a senhora tem um belo carro...
— Sim! E este nem é o melhor da nossa frota, embora seja o mais seguro... É, aliás, o carro mais seguro do mundo!
E me descreveu algumas características de um Volvo, sistemas de alarme, sensores de objetos súbitos, os pioneiros no uso do cinto de segurança de três pontas, a direção sensitiva para curvas suaves, os alarmes de adormecimento, que avisam o motorista sonolento, e muito mais.
— A Maria João tem um BMW, a Sofia Marques, um Mercedes Classe A, e a Filipa das Graças, rica como o caraças... O menino Juva perdoe a minha linguagem, mas as mulheres, principalmente as idosas, têm de se adaptar à linguagem das ruas...
— Imagine...
— A Filipa das Graças, cheia da massa, agastou-se connosco porque queria conduzir o Lamborghini do marido, este sim um cota que não conduz há dez anos mas tem um Lamborghini de quando era um puto, e o carro está impecável. Um espectáculo! Mas nós fizemos uma votação e achamos aquilo um exagero. Lamborghini não pode ser. É bué fixe, mas não pode ser.
— Claro, claro.
— O menino Juva tem de perceber isto. Já somos mulheres, já sofremos desta pecha de não conduzirmos como os homens, e ainda por cima somos idosas, e por isso dizem que não sabemos fazer mais nada nesta vida. Pois sabemos, sim, senhor! E todas nós, somos sete no nosso grupo... estamos agora é a tentar reverter esta cena. Infelizmente, no mundo de hoje, precisamos de um carro para provar isto aos outros... Tem de ser. Somos é muito despachadas no trânsito! Isto, sim!
— Pois estou a ver — e eu de fato via.
— O senhor veja aí a minha nota.
— Nota 5.0.
— Pois. Sem falar nos comentários elogiosos... Eu converso sobre tudo.
— Estou a ver, principalmente sobre automóveis...
— Pois é isto mesmo. Esta história de “mulheres ao volante, perigo constante”... Não é assim que os homens dizem? E que velhinhas de “terceira idade” têm de ficar em casa a fazer baba de camelo para os filhos, crochet para os netos e sala para as visitas... Desculpa lá! Comigo, não... Sem falar nos maridos, com essa baboseira de Sporting para cá, Benfica para lá, e tudo às bebedeiras! Super Bock, Sagres, um Porto ao final... Eu, cá para mim, não topo com isto...
— A senhora disse baba de camelo?!
— É um doce angolano. O doce mais doce que há. Eu sou chef num restaurante angolano no bairro da Amadora.
— A senhora me surpreende... e tem razão em tudo o que diz...
— Tenho razão e tenho chão! O menino veja aí as minhas viagens...
— Mais de sete mil...
*