17 de julho de 2018

Uberlândia - Parte 1

                                                                                                                  ilustração @karinakuschnir


Estou em Santo Amaro de Oeiras, no distrito de Lisboa. Em Santo Amaro não acontece nada. Somadas as pessoas que vejo a andar pela rua em um dia, o número não chega a cinquenta. Táxis nunca vi, exceto os que peço. Os autocarros (ônibus) — costumo ver um a cada dois dias. Mas há ventos, e de todos os tipos. E as árvores balançam bué (muito). Mesmo assim, com as árvores a balançar bué, em Santo Amaro não acontece nada.

Mas de vez em quando acontece. E é quando pego um Uber. Os motoristas são de todas as cores, sexos e nacionalidades; e de todos os feitios. Um deles me atropelou — um senhor da Croácia. Eu estava ocupado com a chuva, não notei que sua nota era 3.7, que tinha dois meses de trabalho e não mais que trinta viagens. Quando vi eu já estava dentro do carro. Cumprimentei-o, ele me olhou esquisito, resmungou em croata, vi que não falava português, atrapalhou-se com o aplicativo, correu feito um desvairado, não xingou Deus, mas quem estivesse ao lado, errou o caminho duas vezes — e por fim, depois que eu saí do carro, ele então me atropelou.

Mas não assim: passando por cima de mim. Já fora do carro, contornava-o por trás quando meu telefone tocou. Distraí-me atendendo, acabei parando, de costas, enquanto conversava, e o senhor croata deu então a sua marcha a ré sem nem querer saber... Senti a pancada por trás, pulei para a frente, e me vi de repente fugindo de um Uber em marcha a ré. Corri, desviei para o lado, fui ter com ele mas já era tarde. O carro engatou a primeira e arrancou, os pneus cantando na chuva. Dei apenas uma estrela ao gajo, e na justificativa disse que ele havia me atropelado levemente. A vida pode ser complicada, mas será bem menos se a linguagem for simples.

*

Quando a dona Rosarinho apareceu, muito empinadinha no seu Volvo preto, muito bem arrumadinha a conduzir, pensei na delicadamente poderosa Miss Marple, da Agatha Christie. Deve ser ela, disse a mim mesmo. Só pode ser. E o carro estalava de tão novo.

— A senhora tem um belo carro...

— O menino Juva... Posso chamá-lo assim, não? Tão moço...

— Claro, dona Rosarinho.

— O menino Juva não viu nada... As minhas colegas estão ainda mais bem equipadas. Renovamos a frota, e causamos uma bela impressão em Lisboa...

— A senhora pertence a um grupo de senhoras motoristas da... terceira idade?

— Sim, mas eu não gosto nada deste termo.

— Peço desculpas.

— Tudo bem. O menino Juva não é obrigado a saber.

— Mesmo assim peço desculpas.

— Ena, pá! Eu já lhe disse que não há problema... Só não me chame “cota”.

— Cota?!

— É uma gíria angolana que a malta usa para chamar os velhos...

— Peço desculpas, dona Rosarinho...

— E escusa de me chamar “dona” Rosarinho... Não sou dona de nada, só da minha vida.

— Claro, claro.

— Bom, mas eu estava a falar de quê? Sim, a Uber tem uma política de idade máxima, a coisa é um bocado estúpida, mas lá conseguimos resolver... A minha colega, a Maria João, é que cuidou da cena toda. E arranjamos uma autorização para realizar o nosso trabalho. Eu conduzo automóveis desde os quinze anos, graças ao meu pai, e conduzo muito bem! Muito melhor, aliás, que esses betinhos, mauricinhos, como vocês chamam, que andam por aí às corridas, mas não passam de uns despassarados... Uns aldrabões... 

— Mas eu estava a dizer que a senhora tem um belo carro...

— Sim! E este nem é o melhor da nossa frota, embora seja o mais seguro... É, aliás, o carro mais seguro do mundo!

E me descreveu algumas características de um Volvo, sistemas de alarme, sensores de objetos súbitos, os pioneiros no uso do cinto de segurança de três pontas, a direção sensitiva para curvas suaves, os alarmes de adormecimento, que avisam o motorista sonolento, e muito mais.

— A Maria João tem um BMW, a Sofia Marques, um Mercedes Classe A, e a Filipa das Graças, rica como o caraças... O menino Juva perdoe a minha linguagem, mas as mulheres, principalmente as idosas, têm de se adaptar à linguagem das ruas...

— Imagine...

— A Filipa das Graças, cheia da massa, agastou-se connosco porque queria conduzir o Lamborghini do marido, este sim um cota que não conduz há dez anos mas tem um Lamborghini de quando era um puto, e o carro está impecável. Um espectáculo! Mas nós fizemos uma votação e achamos aquilo um exagero. Lamborghini não pode ser. É bué fixe, mas não pode ser.

— Claro, claro.

— O menino Juva tem de perceber isto. Já somos mulheres, já sofremos desta pecha de não conduzirmos como os homens, e ainda por cima somos idosas, e por isso dizem que não sabemos fazer mais nada nesta vida. Pois sabemos, sim, senhor! E todas nós, somos sete no nosso grupo... estamos agora é a tentar reverter esta cena. Infelizmente, no mundo de hoje, precisamos de um carro para provar isto aos outros... Tem de ser. Somos é muito despachadas no trânsito! Isto, sim!

— Pois estou a ver — e eu de fato via.

— O senhor veja aí a minha nota.

— Nota 5.0.

— Pois. Sem falar nos comentários elogiosos... Eu converso sobre tudo.

— Estou a ver, principalmente sobre automóveis...

— Pois é isto mesmo. Esta história de “mulheres ao volante, perigo constante”... Não é assim que os homens dizem? E que velhinhas de “terceira idade” têm de ficar em casa a fazer baba de camelo para os filhos, crochet para os netos e sala para as visitas... Desculpa lá! Comigo, não... Sem falar nos maridos, com essa baboseira de Sporting para cá, Benfica para lá, e tudo às bebedeiras! Super Bock, Sagres, um Porto ao final... Eu, cá para mim, não topo com isto...

— A senhora disse baba de camelo?!

— É um doce angolano. O doce mais doce que há. Eu sou chef num restaurante angolano no bairro da Amadora.

— A senhora me surpreende... e tem razão em tudo o que diz...

— Tenho razão e tenho chão! O menino veja aí as minhas viagens...

— Mais de sete mil...

— E isto só na Uber! Eu tenho estrada, menino Juva! Se eu lhe contasse de todas as minhas viagens nesta vida... Vou lhe contar esta... Oiça. Uma vez, com dezassete anitos, lá no Bairro Alto, um polícia chegou e...

*

2 de julho de 2018

Os desconectados


                                                                                                                                                                           ilustração @karinakuschnir

Não usam smartphones; não têm e-mail nem Facebook; seus currículos não estão no Linkedin; não comentam o mundo pelo Twiter; não postam fotos no Instagram; e um selfie para eles remete a um conceito da psicologia. Também não fotografam os pratos que comem, os drinks que bebem nem os cafés que tomam. Não flertam pelo Tinder, mas ao vivo, com os olhos; e quando querem compartilhar momentos sem deixar “rastros” usam o fogo, não o Snapchat.

Também são efusivos. Dão abraços apertados, como se precisassem de fato estar presentes; conversam muito próximos de nós, como se quisessem assegurar-se de alguma privacidade básica e já esquecida; olham-nos de forma obsedante, como se procurassem pescar nosso olhar, sempre navegante entre o mundo e as telas; e falam de forma convicta, como se ansiassem por nos convencer de algo crucial. Mas do quê?

De que estamos afundando, desconectados com tanta conectividade; ansiosos com tanto imediatismo; expostos e isolados com tanto exibicionismo. Eles estão alarmados. E quem são “eles”?

São os chamados “desconectados”, ou “unplugged people”. Antes estavam mais preocupados com o vício da TV, mas sabem que TV, hoje, é coisa do passado.

Mais dia menos dia acabamos nos deparando com um deles na rua. 

— Juva!

— Henrique! Há quanto tempo... O quê? Uns quinze anos...

— Isso não é nada, Juva. A História sempre andou devagar... Mas hoje anda rápido! Essa velocidade me assusta, Juva... Mas já tomei as minhas providências.

— Providências?!... — E muito rápido a minha luzinha cor de laranja, nível 1, acendeu. Pressenti que estava entrando numa fria. Tratei de mudar o rumo da prosa. — Estás com uma cara boa, Henrique...

— Estou, né? E você vai querer tirar um selfie comigo, imagino... Mas nem pense nisso! Eu não tiro fotos nem deixo que ninguém tire fotos minhas.

— É só uma recordação, Henrique... Deixa de ser bobo.

— Vamos ter a recordação vivendo o momento. E, cá pra nós, a gente sabe que você nunca mais vai olhar pra essa foto no saco das centenas de fotos que você deve ter guardadas aí dentro do seu celular...

— Vou, sim.

— Até vai, mas somente pra compartilhar essa foto com todos os seus amigos, e todos os amigos dos seus amigos, e todos vão curtir o diabo da foto, e aí acaba a vida útil da foto. Ela só vai servir pra isso.

— Ok. Sem fotos... — e eu dei um suspiro. Foi quando a minha luzinha cor-de-rosa, nível 2, acendeu. Agora era mandar o clássico “Então, tá... Vamos combinar um café um dia desses pra colocar a conversa em dia”.

— O ponto, Juva, é que eu saí do digital. Não faça essa cara. Eu saí da rede. Porque as pessoas, hoje...

E aí começou a ladainha do “as pessoas, hoje...”. Porque as pessoas hoje não se comunicam mais; as pessoas hoje só compartilham experiências vazias; as pessoas hoje não vivem na pele os acontecimentos; não se veem mais; não falam umas com as outras ao vivo, só por mensagens mal escritas e mal abreviadas... As pessoas hoje não vivem!

— Estás exagerando...

— Os números são alarmantes, Juva. Eu leio estudos...

— Eu também leio. Há muitos sites sobre “tech addiction”...

— Não estou falando de sites. Eu leio estudos, mas é no jornal impresso. Eu ainda assino jornal impresso...

— Eu não.

— São muitos estudos... Até 2020 a metade da América Latina vai estar navegando afogada em redes sociais.

— Puxa...

— E os estudos no âmbito comportamental são ainda mais alarmantes. Aí a coisa pega...

— Pega, é? — A minha luzinha vermelha, nível 3, acendeu enfim. Eu tinha de fugir. — Bom, Henrique, mas agora eu tenho que...

— As pessoas hoje não escrevem mais cartas, Juva... Agora eu só escrevo cartas! Compro papel de carta e envelope, escrevo à mão, compro selos e vou ao correio. É lindo! E a carta leva o seu tempo pra chegar, e o meu destinatário recebe a carta no tempo natural do vaivém das cartas, e...

— A cena é bonita, Henrique, mas deve dar um trabalho...

— E se ele quiser se comunicar comigo vai ter que escrever uma carta, ou me fazer uma visita, claro... A psicanálise foi construída, durante anos, graças também às muitas cartas que Freud escreveu na vida, e ele escreveu mais de 10 mil, muito mais... Fora as que ele queimou pra dar trabalho aos biógrafos... — e o Henrique deu uma risadinha.

— Mas e se houver... uma emergência?...

— Sempre houve emergências, e ninguém morria por causa disso.

— Às vezes morria...

— Ok, Juva, ok, mas eu estou disposto a pagar o preço. Pra não ficar assim tão desconectado comprei um telefone fixo — e ele me olhou de cima a baixo. — Mas é fixo mesmo! Com fio comprido... daqueles que a gente vai arrastando pela casa, sabe como é...

— Sim, acho que me lembro.

— E quando eu não estou em casa e a pessoa quiser falar comigo tem que deixar um recado. Eu tenho uma secretária.

— Secretária, Henrique?! Estás falando de secretária eletrônica, não é?

— Claro, Juva! Você acha que vou contratar uma secretária particular? Eu sou professor, não ganho pra isso...

— Claro... Fico feliz que tenhas aderido a esse tipo de tecnologia... — E respirei fundo. A hora era agora: — Então, tá, Henrique... Vamos combinar um café um dia desses pra colocar a conversa em dia.

— Não precisa, Juva! A gente já está colocando a conversa em dia. As pessoas hoje estão indo pro abismo, homem! É muito blá-blá-blá...

E seguiu falando, especialmente do telefone fixo, dizendo que...

— As pessoas hoje são tão estúpidas que não conseguem mais deixar um simples recado; não conseguem esperar que a gente receba o recado somente quando chegar em casa; não...

— Ok, Henrique. Já entendi. Mas tudo isso é uma decisão difícil de ser tomada.

Eu já tinha percebido que não iria conseguir falar das chuvas que virão ou da violência no Rio de Janeiro, ou de algum livro interessante. Até pensei em comentar aquele livro do Harari, o Homo Deus, mas isso só iria piorar as coisas e acentuar o espírito “unplugged” do Henrique.

Disse a ele que eu estava ciente do que significava esse excesso de conectividade, mas também que que não deveríamos “culpar” a tecnologia, as redes sociais ou os vídeo games, mas sim a forma como nós lidamos com a coisa — nós e os nossos filhos.

— Tens filhos, Henrique?

— Eu? Filhos? Não.

— É difícil abrir mão de tudo isso quando se tem filhos. A gente fica preocupado... Sem falar que desconectar os filhos pode significar, hoje, um tipo de exclusão social. Os amigos, a escola... e o bullying...

— Mas é muita passividade, Juva!

— Ficar na frente da TV é mais passividade do que interagir com um celular.

— Mas a questão...

— A questão pode não ser a passividade, mas a ausência de introspecção. Quase ninguém hoje fica de fato sozinho. Escrevem-se mensagens, compartilham-se o tempo todo as mais insignificantes experiência, estuda-se ouvindo música, dorme-se ouvindo música, toma-se banho ouvindo música. Fica-se pouco tempo, quase nada, em silencio.

Pode parecer que sim, mas eu e o Henrique não estávamos falando a mesma língua. Ele me olhava, no entanto, como se estivéssemos. E sorriu. E naquele preciso instante o meu celular deu um gritinho, das profundezas do meu bolso, como se pressentisse que eu precisava de ajuda, que estava me afogando em tanta navegação apocalíptica. Eu não teria conseguido sair daquela conversa não fosse o apito do meu Whatsapp — o meu Deus ex machina.

Foi eu meter a mão no bolso, e o Henrique me olhar com espanto e indignação; com uma cara de quem havia sido traído. Então era assim — deve ter pensado ele —, depois de conversarmos tanta coisa e de termos concordado em algumas, eu deixaria uma porcaria de celular interromper brutalmente o nosso encontro? 

— Henrique, vou me despedir de ti agora porque tenho de responder a essas mensagens.

— Como queira, Juva. Como queira... — e virou as costas.

Uns minutos depois ainda pude vê-lo na rua a andar à minha frente. Andava devagar, arrastando os pés, carregando o próprio corpo, com os braços balançando pesados, como se também os carregasse. Parecia perdido, sem saber onde estava.

Eu mesmo, depois daquela conversa, não sei se sabia onde estava. Mas eu tinha o Waze...

E caminhei, seguindo o Henrique de longe. E os versos do Pessoa na canção do Caetano ficaram na minha cabeça, sim, mas de cabeça para baixo: “Navegar não é preciso; viver é preciso”. (1)

*

Citação:

1. Inversão do verso do Pessoa (referência à canção “Os Argonautas”, de Caetano Veloso). Os versos do Pessoa: “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: / ‘Navegar é preciso; viver não é preciso’” nasceram daqui: “Navigare necesse; vivere non est necesse”, frase de Pompeu, general romano, 106-48 a.C., dita aos marinheiros, cheios de medo, que se recusavam a viajar durante a guerra (segundo Soares Feitosa, cf. Plutarco, in Vida de Pompeu), acesso 1 jul. 2018.