"Na trilha do último dos povos do deserto — Escritora australiana conta como foi sua jornada de três meses pela Índia na companhia de 50 nômades, 15 camelos e 5 mil carneiros", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 de outubro de 1998.
Resenha sobre o livro Lugares desertos, de Robyn Davidson, ed. Companhia das Letras.
São muito pobres e riem muito. Dançarão a mesma canção e repetirão o mesmo mantra, felizes, até o final dos tempos. Possuem no olhar o abraço dos deuses. Inclinam a cabeça de um modo que não resistiremos a tomá-los por irmãos. Andam em grupos porque só em grupos poderá cada um sentir-se inteiro, forte e protegido. Para eles, o inferno é o eu. Partilham tudo o que lhes cai nas mãos. Praticam, com os estranhos, a dissimulação e a avareza. Criam camelos e também carneiros e cabras. Vestem-se com colorido esmero. Diz-se das mulheres que são inteligentes, astutas, francas e sábias; dos homens, serenos, simples e obtusos. Ainda conseguem viver do pastoreio, do comércio de lã e da venda de esterco aos fazendeiros. É uma gente da qual se fala muito e se sabe muito pouco. Seus descendentes vieram do deserto de Thar, ou Grande Deserto Indiano, e durante séculos se espalharam por todos os estados do país. Vivem em eterna migração. E porque são erráticos e insondáveis, porque comem e dormem pouco, muitos os chamam “os fantasmas”. O nome certo é rabari, ou raika. São os povos nômades da Índia, seu povo mais antigo.
Acompanhar essa gente em suas andanças pelo deserto tornou-se uma pequena obsessão para a australiana Robyn Davidson, que não é propriamente uma novata no assunto. Percorreu sozinha 2,8 mil quilômetros de areia, vento e silêncio quando atravessou a Austrália na companhia de dois camelos e um cão. O “passeio” virou livro, Tracks, e ganhou prêmio, o Cook Travel Book Award. Mais tarde, em 1978, visitando uma feira de camelos em Pushkar, no estado indiano do Rajastão, a inquieta Davidson abandonou o burburinho, subiu uma colina e sentou-se ao pé de um grupo nômade acampado sob a lua, assistindo-lhes o anoitecer. Diante das fogueiras, da imagem dos homens partilhando seus cachimbos e das mulheres esquentando o chá, ensaiou para si mesma o projeto de uma promessa, que só foi cumprir-se onze anos depois: acompanharia os rabaris em suas migrações e escreveria sobre eles. Isto soa romântico? Davidson é romântica e seu romantismo é irresistível, embora dure pouco. Quando finalmente chega à Índia, chega também à conclusão de que sua aventura australiana não passará mesmo de um passeio se comparada ao que tinha pela frente junto aos rabaris.
Arranjar o patrocínio de uma revista especializada, para a qual faria uma grande reportagem, foi fácil. Tudo o mais, quase impossível. Davidson tinha na cabeça duas Índias: uma turística, alegre, ruidosa e colorida; outra histórica, com seu passado luminoso e inventor, suas artes, seus homens sábios, a civilização, a democracia, a tolerância, a racionalidade. O que encontrou foi o caos: miséria, insalubridade e analfabetismo em massa numa sociedade rigidamente estratificada, sem leis e sem justiça, onde a autoridade constituída não passa de um entreposto de corrupção e a segurança só existe se atocaiada no seio da família ou na casta. Em lugar de remédios, rezas; em lugar de banheiros, muros a céu aberto. O contraponto de tanta desestrutura, ou o que talvez mantenha a sociedade de pé e funcionando, é o potente espírito de solidariedade praticado no interior das pequenas comunidades rurais, onde o individualismo moderno ainda não pôs os pés, onde o sucesso de um significa a felicidade de todos e onde a partilha é a única regra de ouro.
Assim caminha a Índia. Os rabaris, porém, já não caminham como antes. Quando o Thar ainda não se chamava deserto e suas planícies eram verdes e as migrações aconteciam aos milhares o ano inteiro, os povos nômades possuíam o status de povo especial, misterioso e impenetrável. De sua importância para a circulação de cultura e de animais, fertilização da terra e efervescência comercial veio o título de “os guardiães do caminho”. Mas os caminhos, hoje, estão quase totalmente fechados, as rotas migratórias bloqueadas por indústrias e campos de teste nuclear e as pastagens transformadas em areia. As dificuldades e os perigos para as poucas comunidades rabaris que ainda conseguem migrar são inenarráveis, e esta é a grande façanha de Robyn Davidson em seu livro Lugares desertos: narrar o dia-a-dia de sua viagem de três meses junto a um grupo rabari de 50 nômades, 15 camelos e 5 mil carneiros, sem perder totalmente a esportiva, ou seja, suportando a sujeira, a malária, a água infectada, o sol, o ar parado e malcheiroso, a falta de sono, banho e banheiro e a curiosidade exasperante que a sua figura de “mulher européia branca solteira e sem filhos” despertava em qualquer aldeão que com ela cruzasse. Foi o cárcere da língua, no entanto, a sua maior tormenta. Como ninguém em seu grupo falava inglês e ela não falava hindi, ficaram os gestos e o olhar, as caras e as bocas responsáveis por garantir um grau mínimo de razoabilidade nas “conversas” que se estabeleceram naqueles três meses.
Tratava-se, afinal, não apenas de administrar as diferenças, mas entendê-las. “A verdadeira viagem”, diz ela, “seria ver o mundo, ainda que por alguns instantes, com olhos alheios.” Mas o relativismo cultural tem limites. Quais são eles e até que ponto podem determinadas práticas culturais, mesmo quando significam agressão à integridade física ou solapamento da dignidade humana, permanecer incólumes a qualquer julgamento “de fora”, apenas porque estão sob a cobertura justificante da tradição ou da religião, são perguntas que caminham por todas as linhas do livro. Contudo, a moral da história não é o “elogio crítico” da diferença. A moral da história é a extinção do nomadismo, que não é, aqui, somente aquilo que aparenta ser, mas uma grande metáfora. Os rabaris não apenas se movem de um lugar a outro da Índia, mas também de um tempo a outro, até o momento em que, espremidos entre o poderoso passado e o inglório presente, com todos os caminhos já fechados, não possam mais migrar e desapareçam do mapa.
Trecho 1:
“Era hora de tomar banho e se aprontar para o casamento. Indicaram-me um canto parcialmente fechado do pátio e trouxeram-me um balde de água do poço. Que fazer? Eu podia ser vista num ângulo de sessenta graus e poderia ser totalmente vista por qualquer um que entrasse no pátio. Agachei-me e apressadamente enxaguei as partes que podia alcançar, terminando com as roupas encharcadas mas a pele relativamente seca. Ir para trás do muro da aldeia para fazer cocô era também um teste de criatividade. Era preciso passar pelos montes de fezes, encontrar um pedaço de areia e rezar muito para que ninguém passasse por perto. Agora eu compreendia a lógica das saias longas e rodadas das mulheres da aldeia. Quanto ao uso da água do jarro para lavar os fundilhos, nunca cheguei a aprender a técnica correta, e não é assunto sobre o qual se possa perguntar à vontade. Bem que tentei, mas nunca consegui vencer o acanhamento. O mundo se divide entre as culturas dos que tocam em suas próprias fezes e os que não o fazem. Parece-me que os que as tocam possuem um entendimento mais profundo da relação entre a espécie humana e a terra...”
Trecho 2:
“Uma mulher mais velha (viúva, e portanto vestida de sóbrio marrom com apenas alguns enfeites de metal) fez calar a todas, e voltou sua atenção para mim. Ela não acreditava que eu não conseguisse entender o que dizia, por isso chegou o rosto bem perto do meu, repetindo as perguntas em gritos bem articulados. A linguagem dos gestos é universal, e assim aos poucos chegamos a nos entender. Não, eu não tinha filhos. (Consternação e murmúrios.) Por que motivo? Pensei rápido. Porque meu marido morrera jovem. (Suspiros de comiseração e acenos de cabeça.) Pais? Ambos falecidos. (Murmúrios gerais.) E quantos irmãos? Uma irmã. O quê, nada de irmãos? Nada de irmãos. (Sensação de tragédia no ar.) E sua irmã tem filhos? Quatro filhas. Houve um silêncio respeitoso na presença de uma pessoa tão castigada pela sorte, e minha interlocutora juntou as mãos, indicando um Bhagwan celestial que, ela parecia dizer, tinha misteriosos desígnios. Emiti uma dessas interjeições que denotam sofrimentos suportados com bravura e em seguida aliviei o ambiente acendendo um cigarro...”
Trecho 3:
“Todos eles (...) haviam dito várias vezes que eu tinha um jeito muito indiano de ser. Não entendi muito bem o que queriam dizer, mas aceitei como um elogio. Era verdade que sempre me sentira bem naquela cultura, que me agradava o modo de ser indiano — a maneira pela qual as pessoas se ofereciam, franca, aberta, calorosa; a maneira pela qual o que se era tinha tanta importância quanto o que se fazia; a capacidade de tolerar contradições no comportamento humano. Mas agora que estava vivendo ali, que tinha de compreender, tudo o que via aumentava a minha confusão.”
Trecho 4:
“Arrastei-me para o meu quarto, fechei as cortinas, desabei de costas na cama e decidi que a culpa era da Índia. Tentar realizar qualquer coisa era como caminhar num mar de cola. As coisas mais simples — fazer uma chamada telefônica, ir à mercearia, pôr uma carta no correio — exigiam paciência sobre-humana. Por que as pessoas não enlouqueciam? Por que não se esfaqueavam ou davam tiros umas nas outras, como nos Estados Unidos? Por que não agarravam pelo pescoço os mesquinhos burocratas e esmagavam suas cabeças? Como poderia eu aprender aquela paciência indiana, temperada pelos milênios? E, acima de tudo, como aprenderia a lidar com os olhares do subcontinente? Onde quer que eu mostrasse meu rosto, imediatamente mil outros rostos se juntavam ao redor. Se parasse o jipe, ainda que por um segundo, mesmo que estivesse no meio do nada, instantaneamente rostos se amontoavam do lado de fora das janelas e do pára-brisas...”