26 de dezembro de 1998

"Contos compõem um singelo jogo de armar"

"Contos compõem um singelo jogo de armar", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 1998.

Resenha sobre o livro de contos Surtos urbanos, de Vera Albers, ed. 34.

Cada um destes dezoito pequenos contos não conta apenas a sua própria história, mas também, sob diferentes olhares e formas, as outras dezessete. Reunidos, contornam uma história maior, que não existe senão picotada nas mesmas dezoito partes, sem início ou fim determinados, escorregadiças, impalpáveis e abruptas como somente o podem ser as lembranças e os surtos. São crônicas e às vezes poemas em prosa as peças deste singelo jogo de armar que começa montando a adolescência de uma ou várias meninas, abandona etapas intermediárias e volta a reunir-se em peças para um novo momento — aquele em que uma ou várias mulheres, já não mais meninas, sabem que podem e devem contar com as próprias palavras a própria vida.

Nos quatro primeiros contos, onde a adolescência é tema e cenário, quem conta não é quem vive, pois quem vive não tem voz. As meninas estão à mercê dos acontecimentos, e os acontecimentos, apesar de singelos e até previsíveis, machucam um quotidiano polvilhado de inocência e idealização. Um narrador em terceira pessoa, porém íntimo das personagens, vai dando conta de difíceis momentos: uma carona prenhe de ruins conseqüências para a filha temporã e reprimida; a insciência de uma menstruação tardia produzindo confusão e desamparo; um belo dia destruído por uma proposta indecente, um atraso para o jantar e duas bofetadas paternas; o romantismo de reuniões clandestinas no embate da repressão policial. “Eram reuniões informativas, sem tarefas concretas, inconsistentes, no seu otimismo alienado. (...) indolência física, cigarros e mais cigarros. (...) No fim, todos saíam com a cabeça pesada, mas sentindo-se fortes na intenção, respaldados na idéia.”

A passagem para a vida adulta acontece formalmente com a mudança do foco narrativo para a primeira pessoa. Agora sou eu quem conto, a vida é minha e não devo satisfações. Mas contar não deixa de ser um modo de dar satisfações, ao menos a si mesmo. E as reminiscências desfilam em prosa elegante e concisa. Em alguns contos a concisão é demasiada, descambando para um hermetismo de fundo, creio, tão pessoal, que resta a sensação de estarmos metidos até o nariz em assuntos que não nos dizem nada e para os quais não fomos chamados. É o caso de “Réquiem para G.H.”, “Anapla Kilala”, “A Comilança”, “Bovary 70” e “Tamanho dos Testículos Impressiona Mais Que o Pênis (De Uma Manchete do Jornal de Domingo)”, contos chatos, obscuros e carentes de enredo. Estes cinco, porém, não comprometem os outros treze, tamanhas a qualidade do texto e a capacidade narrativa desta misteriosa autora que faz questão de manter-se incógnita.

O conto “O.O.”, por exemplo, é o relato de uma experiência mística vivida com humor por uma narradora provocante e quase absurda em sua curiosidade acerca dos mistérios divinos. “O caso da Liuba foi que depois de morta voltou de noite e sentou-se na cadeira do meu quarto toda sorridente e eu segurei-lhe febrilmente o braço e perguntei aquilo que sempre quis saber neste mundo, embora desconfiasse que a resposta, existindo, só me seria dada no outro. E ela (...) disse: ‘Existe sim’.” A angústia dos amores adultos que poderiam ter acontecido mas, por algum desgraçado acaso, não acontecem está na história do Dr. Fortuna — ex-ginecologista e psicólogo ligado aos assuntos ocultos, viúvo e idoso. Pela graça de sua palavra e contundência de seus conhecimentos, acaba seduzindo a narradora, que tenta explica como, de repente e contra todos os prognósticos, se viu dobrada e apaixonada pelo mais improvável dos homens quando já era tarde demais.

Três mui competentes relatos sobressaem graças à radical mudança que operam, tanto de ambiente como de narrador. Não há em “Relato de Ismerina”, “No Cocuruto da Serra” e “A República” nada que se assemelhe a um surto urbano. São vozes do sertão a de Ismerina, “Meu nome é Ismerina Maria da Conceição, de Lagoa Nova. Nasci e me batizei lá. (...) Ouvia papai falar em sertão. Ele dizia — minha filha, é um lugar tão bom, tão grande, mas por outra parte é um lugar que tem muita pedra. — Pai, eu queria ir lá nem que fosse a passeio — dizia eu.”, e a do velhinho que pega uma carona na estrada, vindo lá do alto, do cocuruto da serra. “Vou para São Paulo, sim senhora. Vim aqui cuidar da minha roça — a senhora sabe, se eu não cuidar, ninguém cuida. (...) Meu nome é João Francisco dos Santos, filho de pai e mãe.” O último conto, a vida inteira de um italiano nascido no Piemonte e imigrado para o Brasil, depois de pisar as brasas da guerra e quase cair nas patas do nazismo, talvez seja o mais bem feito do livro, pela concisão sem buracos, sobriedade do estilo e objetividade do enredo.

24 de outubro de 1998

"Na trilha do último dos povos do deserto"

"Na trilha do último dos povos do deserto — Escritora australiana conta como foi sua jornada de três meses pela Índia na companhia de 50 nômades, 15 camelos e 5 mil carneiros"​, Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 24 de outubro de 1998.

Resenha sobre o livro Lugares desertos, de Robyn Davidson, ed. Companhia das Letras.

São muito pobres e riem muito. Dançarão a mesma canção e repetirão o mesmo mantra, felizes, até o final dos tempos. Possuem no olhar o abraço dos deuses. Inclinam a cabeça de um modo que não resistiremos a tomá-los por irmãos. Andam em grupos porque só em grupos poderá cada um sentir-se inteiro, forte e protegido. Para eles, o inferno é o eu. Partilham tudo o que lhes cai nas mãos. Praticam, com os estranhos, a dissimulação e a avareza. Criam camelos e também carneiros e cabras. Vestem-se com colorido esmero. Diz-se das mulheres que são inteligentes, astutas, francas e sábias; dos homens, serenos, simples e obtusos. Ainda conseguem viver do pastoreio, do comércio de lã e da venda de esterco aos fazendeiros. É uma gente da qual se fala muito e se sabe muito pouco. Seus descendentes vieram do deserto de Thar, ou Grande Deserto Indiano, e durante séculos se espalharam por todos os estados do país. Vivem em eterna migração. E porque são erráticos e insondáveis, porque comem e dormem pouco, muitos os chamam “os fantasmas”. O nome certo é rabari, ou raika. São os povos nômades da Índia, seu povo mais antigo.

Acompanhar essa gente em suas andanças pelo deserto tornou-se uma pequena obsessão para a australiana Robyn Davidson, que não é propriamente uma novata no assunto. Percorreu sozinha 2,8 mil quilômetros de areia, vento e silêncio quando atravessou a Austrália na companhia de dois camelos e um cão. O “passeio” virou livro, Tracks, e ganhou prêmio, o Cook Travel Book Award. Mais tarde, em 1978, visitando uma feira de camelos em Pushkar, no estado indiano do Rajastão, a inquieta Davidson abandonou o burburinho, subiu uma colina e sentou-se ao pé de um grupo nômade acampado sob a lua, assistindo-lhes o anoitecer. Diante das fogueiras, da imagem dos homens partilhando seus cachimbos e das mulheres esquentando o chá, ensaiou para si mesma o projeto de uma promessa, que só foi cumprir-se onze anos depois: acompanharia os rabaris em suas migrações e escreveria sobre eles. Isto soa romântico? Davidson é romântica e seu romantismo é irresistível, embora dure pouco. Quando finalmente chega à Índia, chega também à conclusão de que sua aventura australiana não passará mesmo de um passeio se comparada ao que tinha pela frente junto aos rabaris.

Arranjar o patrocínio de uma revista especializada, para a qual faria uma grande reportagem, foi fácil. Tudo o mais, quase impossível. Davidson tinha na cabeça duas Índias: uma turística, alegre, ruidosa e colorida; outra histórica, com seu passado luminoso e inventor, suas artes, seus homens sábios, a civilização, a democracia, a tolerância, a racionalidade. O que encontrou foi o caos: miséria, insalubridade e analfabetismo em massa numa sociedade rigidamente estratificada, sem leis e sem justiça, onde a autoridade constituída não passa de um entreposto de corrupção e a segurança só existe se atocaiada no seio da família ou na casta. Em lugar de remédios, rezas; em lugar de banheiros, muros a céu aberto. O contraponto de tanta desestrutura, ou o que talvez mantenha a sociedade de pé e funcionando, é o potente espírito de solidariedade praticado no interior das pequenas comunidades rurais, onde o individualismo moderno ainda não pôs os pés, onde o sucesso de um significa a felicidade de todos e onde a partilha é a única regra de ouro.

Assim caminha a Índia. Os rabaris, porém, já não caminham como antes. Quando o Thar ainda não se chamava deserto e suas planícies eram verdes e as migrações aconteciam aos milhares o ano inteiro, os povos nômades possuíam o status de povo especial, misterioso e impenetrável. De sua importância para a circulação de cultura e de animais, fertilização da terra e efervescência comercial veio o título de “os guardiães do caminho”. Mas os caminhos, hoje, estão quase totalmente fechados, as rotas migratórias bloqueadas por indústrias e campos de teste nuclear e as pastagens transformadas em areia. As dificuldades e os perigos para as poucas comunidades rabaris que ainda conseguem migrar são inenarráveis, e esta é a grande façanha de Robyn Davidson em seu livro Lugares desertos: narrar o dia-a-dia de sua viagem de três meses junto a um grupo rabari de 50 nômades, 15 camelos e 5 mil carneiros, sem perder totalmente a esportiva, ou seja, suportando a sujeira, a malária, a água infectada, o sol, o ar parado e malcheiroso, a falta de sono, banho e banheiro e a curiosidade exasperante que a sua figura de “mulher européia branca solteira e sem filhos” despertava em qualquer aldeão que com ela cruzasse. Foi o cárcere da língua, no entanto, a sua maior tormenta. Como ninguém em seu grupo falava inglês e ela não falava hindi, ficaram os gestos e o olhar, as caras e as bocas responsáveis por garantir um grau mínimo de razoabilidade nas “conversas” que se estabeleceram naqueles três meses.

Tratava-se, afinal, não apenas de administrar as diferenças, mas entendê-las. “A verdadeira viagem”, diz ela, “seria ver o mundo, ainda que por alguns instantes, com olhos alheios.” Mas o relativismo cultural tem limites. Quais são eles e até que ponto podem determinadas práticas culturais, mesmo quando significam agressão à integridade física ou solapamento da dignidade humana, permanecer incólumes a qualquer julgamento “de fora”, apenas porque estão sob a cobertura justificante da tradição ou da religião, são perguntas que caminham por todas as linhas do livro. Contudo, a moral da história não é o “elogio crítico” da diferença. A moral da história é a extinção do nomadismo, que não é, aqui, somente aquilo que aparenta ser, mas uma grande metáfora. Os rabaris não apenas se movem de um lugar a outro da Índia, mas também de um tempo a outro, até o momento em que, espremidos entre o poderoso passado e o inglório presente, com todos os caminhos já fechados, não possam mais migrar e desapareçam do mapa.

Trecho 1:

“Era hora de tomar banho e se aprontar para o casamento. Indicaram-me um canto parcialmente fechado do pátio e trouxeram-me um balde de água do poço. Que fazer? Eu podia ser vista num ângulo de sessenta graus e poderia ser totalmente vista por qualquer um que entrasse no pátio. Agachei-me e apressadamente enxaguei as partes que podia alcançar, terminando com as roupas encharcadas mas a pele relativamente seca. Ir para trás do muro da aldeia para fazer cocô era também um teste de criatividade. Era preciso passar pelos montes de fezes, encontrar um pedaço de areia e rezar muito para que ninguém passasse por perto. Agora eu compreendia a lógica das saias longas e rodadas das mulheres da aldeia. Quanto ao uso da água do jarro para lavar os fundilhos, nunca cheguei a aprender a técnica correta, e não é assunto sobre o qual se possa perguntar à vontade. Bem que tentei, mas nunca consegui vencer o acanhamento. O mundo se divide entre as culturas dos que tocam em suas próprias fezes e os que não o fazem. Parece-me que os que as tocam possuem um entendimento mais profundo da relação entre a espécie humana e a terra...”

Trecho 2:

“Uma mulher mais velha (viúva, e portanto vestida de sóbrio marrom com apenas alguns enfeites de metal) fez calar a todas, e voltou sua atenção para mim. Ela não acreditava que eu não conseguisse entender o que dizia, por isso chegou o rosto bem perto do meu, repetindo as perguntas em gritos bem articulados. A linguagem dos gestos é universal, e assim aos poucos chegamos a nos entender. Não, eu não tinha filhos. (Consternação e murmúrios.) Por que motivo? Pensei rápido. Porque meu marido morrera jovem. (Suspiros de comiseração e acenos de cabeça.) Pais? Ambos falecidos. (Murmúrios gerais.) E quantos irmãos? Uma irmã. O quê, nada de irmãos? Nada de irmãos. (Sensação de tragédia no ar.) E sua irmã tem filhos? Quatro filhas. Houve um silêncio respeitoso na presença de uma pessoa tão castigada pela sorte, e minha interlocutora juntou as mãos, indicando um Bhagwan celestial que, ela parecia dizer, tinha misteriosos desígnios. Emiti uma dessas interjeições que denotam sofrimentos suportados com bravura e em seguida aliviei o ambiente acendendo um cigarro...”

Trecho 3:

“Todos eles (...) haviam dito várias vezes que eu tinha um jeito muito indiano de ser. Não entendi muito bem o que queriam dizer, mas aceitei como um elogio. Era verdade que sempre me sentira bem naquela cultura, que me agradava o modo de ser indiano — a maneira pela qual as pessoas se ofereciam, franca, aberta, calorosa; a maneira pela qual o que se era tinha tanta importância quanto o que se fazia; a capacidade de tolerar contradições no comportamento humano. Mas agora que estava vivendo ali, que tinha de compreender, tudo o que via aumentava a minha confusão.”

Trecho 4:

“Arrastei-me para o meu quarto, fechei as cortinas, desabei de costas na cama e decidi que a culpa era da Índia. Tentar realizar qualquer coisa era como caminhar num mar de cola. As coisas mais simples — fazer uma chamada telefônica, ir à mercearia, pôr uma carta no correio — exigiam paciência sobre-humana. Por que as pessoas não enlouqueciam? Por que não se esfaqueavam ou davam tiros umas nas outras, como nos Estados Unidos? Por que não agarravam pelo pescoço os mesquinhos burocratas e esmagavam suas cabeças? Como poderia eu aprender aquela paciência indiana, temperada pelos milênios? E, acima de tudo, como aprenderia a lidar com os olhares do subcontinente? Onde quer que eu mostrasse meu rosto, imediatamente mil outros rostos se juntavam ao redor. Se parasse o jipe, ainda que por um segundo, mesmo que estivesse no meio do nada, instantaneamente rostos se amontoavam do lado de fora das janelas e do pára-brisas...”

28 de agosto de 1998

"Uma geração no abismo"

"Uma geração no abismo — Romance de escritor inglês desce ao inferno das trincheiras, onde a juventude do país foi sacrificada na Primeira Guerra", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 de agosto de 1998.

Resenha sobre o livro O canto do pássaro, de Sabastian Faulks, ed. Record.

A amor, a guerra e a memória. O jovem inglês Stephen Wraysford, embora não conte mais de vinte anos, tem o olhar e os gestos de um homem feito. Abandonado pelo pai e depois pela mãe, criado pelo avô e em seguida por um tutor profissional, Stephen teve de crescer à força. Não chega a ser um sujeito frio, mas aprendeu a controlar-se e a deixar escapar de si a impressão de uma permanente indiferença pelos caminhos do mundo. Começou a trabalhar aos dezesseis anos no ramo dos tecidos, aprendeu a burocracia das finanças e agora deve aprofundar-se no processo da manufatura. Para tanto, sai de Londres, despachado pelo patrão, e vai para a pequena e tranqüila cidade de Amiens, no norte da França. Estamos em 1910.

Stephen aluga um quarto na mansão de Monsieur Azaire, dono de uma das maiores indústrias têxteis da região, e torna-se seu hóspede. Participa das reuniões familiares, incluídos os passeios de barco e as pescarias às margens do Ancre, e do agitado dia-a-dia na fábrica, junto às máquinas Singer, aos tintureiros e demais operários. À noite, depois de um jantar formal, recebem a visita de amigos e entabulam polidas conversas ao pé da lareira. Os dias, em Amiens, corriam bem. Até que, sob a superfície lisa e delicada das boas maneiras e dos olhares cordatos, explode o pior: o jovem Stephen, o hóspede, o aprendiz, o funcionário em serviço, surpreso com o próprio arroubo mas avesso a arrependimentos, apaixona-se por Isabelle, que não é a filha e nem a sobrinha de seu anfitrião, mas sua segunda esposa — a bela, intrigante e jovem Madame Azaire.

O romance se desenvolve rápido e obsessivo, a reprimida Isabelle incandesce, o novo casal jura eterno amor e ainda estamos em 1910 e já na página cento e trinta de uma história de paixão e adultério que poderia ser menos prolixa para ser melhor. O narrador não poupa palavras para descrever Stephen por dentro, o discurso indireto livre corre solto, mas o herói, com toda a sua elegância, juventude e ardor, não dá de si nada mais que um contorno fugidio e embaçado. As cenas de sexo são animadoras, sim, mas seriam tórridas se o vocabulário, ao invés de metáforas decorosas, desse nome aos nomes, simplesmente e sem dedos. Stephen e Isabelle fogem para bem longe... Alugam uma casinha no campo e pronto. Quase tudo, enfim, a meio caminho entre a poesia e o lugar-comum? Não tudo. Estávamos há pouco em 1910 e esta foi apenas a primeira das três partes deste ótimo romance.

França, 1916. O amor, agora a guerra. O que Henry James chamou “o abismo de sangue e escuridão” avança por todos os lados. Stephen Wraysford, promovido a tenente por atos de bravura, está entrincheirado bem no meio do inferno. Sobre sua cabeça, obuses, projéteis, granadas e balas; sob seus pés, um gigantesco e profundo labirinto de túneis por cujos estreitos corredores se arrastam os corajosos escavadores britânicos encarregados de plantar minas sob as linhas alemãs. São os chamados sapadores, ou ratos. Alguns abriram o caminho da linha central do metrô de Londres. Outros, mineiros desempregados e desiludidos, partiram para a guerra atrás de dinheiro ou mesmo uma razão para viver, o que para muitos não passava de uma boa razão para morrer. E todos, sem exceção, um bocado esquisitos — homens capazes de permanecer debaixo da terra, cavando à meia luz e respirando em tubos, por oito ou dez horas seguidas.

Em sua maior parte, seguramente a melhor, O canto do pássaro (Birdsong), quarto romance do inglês Sebastian Faulks, é isto: a guerra vista por dentro e por baixo, no mínimo quinze metros abaixo — viés original em meio a tantos romances sobre o assunto. O manuseio de explosivos no subterrâneo, o pavor de ser enterrado vivo sob toneladas de solo francês no caso de uma detonação inimiga e o silêncio opressivo no interior dos túmulos, quero dizer, dos túneis, compõem momentos de absoluta competência narrativa. O mesmo vale para a descrição dos combates ao ar livre. A movimentação das tropas, o corpo-a-corpo com o inimigo e o fogo cruzado na terra de ninguém que são os campos de batalha não ficam devendo nada às melhores passagens de Guerra e Paz. A guerra era outra, sim, e a paz também — os homens é que são os mesmos. O bom e velho Tolstói, mais comedido, tomava distância antes de recriar a agonia e a morte de seus personagens. Faulks, estomacalmente detalhista, arrasta-se na lama da terra desolada e chega bem perto para ver melhor e depois contar: o dia-a-dia no front, as conversas entre soldados durante as noites sem bombardeio, o desespero dos homens diante da dor, o medo da morte, a horrível visão do corpo alheio morto e despedaçado, as pequenas euforias, as razões para se continuar guerreando, a desrazão da guerra. Entre um combate e outro, Stephen topa com Isabelle na mesma Amiens, agora destruída pelas bombas e tomada pelos alemães. Corta.

Inglaterra, 1978. O amor, a guerra, agora a lembrança. Faulks dá um grande salto para a frente e nos encaixa no frívolo cotidiano de Elizabeth Benson, neta de Stephen e Isabelle. Não se trata aqui da mera evocação do passado através de um personagem contemporâneo. Faulks quer chegar ao momento em que as lembranças falham e de lá puxar um fio que dê continuidade e principalmente sentido ao que veio antes. Mas Elizabeth, 38 anos, desenhista de moda, solteira, sem filhos, tola e alienada, não corresponde à tarefa. Seu desempenho é um pouco melhor que o de uma pá. Remexendo em velhos baús de sótão, encontra os diários de Stephen e desenterra algumas histórias. Mais tarde, bem mais tarde, o personagem dirá a que veio. Seu tributo à ascendência será de outra natureza e constituirá uma das mais potentes passagens do livro.

As três histórias vêm cronologicamente embaralhadas e desenrolam-se nas mesmas regiões de França e Inglaterra. Não há nada que as separe, diz o próprio Faulks, exceto a passagem do tempo. Mas entre Stephen e a neta, Elizabeth, há muito mais que o tempo. Há três gerações que não conseguem, prospectiva ou retrospectivamente, enxergar-se. São como os escuros e úmidos túneis da guerra — todos sob a mesma e única terra, mas todos paralelos e cada qual em sua própria profundidade.

Trecho 1:

“— Está bem. Vou lhe contar uma coisa. — Stephen soltou uma baforada de seu cigarro. — Estou curioso para saber o que vai acontecer. Há os ratos de seu esgoto nos buracos de um metro de largura, rastejando sob a terra. Há os meus homens enlouquecendo sob os bombardeios. (...) Sento-me aqui, falo com os homens, faço a ronda e me deito na lama com os disparos de metralhadoras raspando meu pescoço. Ninguém na Inglaterra sabe como é isso. (...) Isto não é uma guerra, é a exploração de até onde os homens podem se degradar. (...) Não há abismo a que não possam ser lançados. Vemos seus rostos ao terem uma folga e pensamos que não suportarão mais, que alguma coisa neles dirá basta, ninguém agüenta isso. Mas basta um dia de sono, comida quente e um vinho em suas barrigas e farão ainda mais. (...) Se eu não tivesse essa curiosidade, caminharia para a linha inimiga e deixaria que me matassem. Explodiria minha própria cabeça com uma dessas granadas.

— Você está louco — disse Weir.” (pp. 170-171)

Trecho 2:

“Havia o som de gemidos. Os padioleiros tentavam desobstruir o caminho para transportar os feridos. Stephen pegou uma ferramenta de abrir valas e começou a cavar. Puxaram um homem pelos ombros. Era Reeves. Sua expressão estava mais apática que o usual. Faltava um lado de sua caixa torácica, onde um grande pedaço de cápsula de granada se projetava do esterno. Alguns metros adiante, desenterraram Wilkinson. Seu perfil enegrecido parecia promissoriamente composto quando Stephen se aproximou. Tentou lembrar detalhes de Wilkinson. Lembrou. Tinha acabado de se casar. Trabalhava como bookmaker. Havia um bebê a caminho. Stephen ensaiou palavras de encorajamento. Mas, quando os padioleiros o levantaram e viraram seu corpo, Stephen viu que sua cabeça havia sido secionada de tal modo que a pele macia e o belo rosto permaneciam de um lado, e do outro, as pontas recortadas do crânio, do qual restos do cérebro caíam no uniforme chamuscado.” (p. 175)

Trecho 3:

“Jack Firebrace estava a treze metro sob a terra, com milhares de toneladas de França acima de seu rosto. Podia ouvir o chiado do mecanismo que bombeava o ar através do túnel. Quando o alcança, o ar já estava praticamente exaurido. Suas costas eram sustentadas por uma cruz de madeira, os pés contra o barro, de frente para o inimigo. (...)

O suor escorria em seus olhos, que ardiam, o que o fazia balançar a cabeça de um lado para o outro. Nesse ponto, o túnel media cerca de um metro e trinta de largura e um metro e meio de altura. Jack continuou fincando a pá na terra à sua frente, cavando-a como se a odiasse. Perdera a noção de quanto tempo estava sob a superfície. (...) Já deviam ter se passado seis horas ou mais desde que vira a luz do dia, e ainda assim, não muito, mas apenas uma cerração verde, fina, atravessando a baixada da fronteira franco-belga, iluminada pela explosão espasmódica das granadas.” (p. 137)

Trecho 4:

“Stephen Wraysford voltou a ocupar seu corpo, célula por célula, cada polegada provocando nova dor e um pouco da antiga sensação do que significava estar vivo. Não havia lençol na cama, embora sentisse contra a pele do rosto o conforto áspero da atadura, lavada e desinfetada.

À noitinha, a dor no braço e no pescoço se agravou, apesar de ser suportável e mais branda que a do homem na cama ao lado, que aparentemente podia visualizá-la: podia vê-la pairando sobre ele. Todo dia removiam uma parte do corpo do homem. Quando retiraram os curativos, um líquido jorrou de sua pele, como um espírito vitorioso que o tivesse possuído. Seu corpo se decompunha enquanto jazia ali, como os que pendiam no arame farpado, indo do vermelho ao preto antes de se esfacelarem na terra, deixando apenas esporos sépticos.

Certa manhã, um rapaz de mais ou menos dezenove anos apareceu no final da enfermaria. Seus olhos estavam cobertos por pedaços de papel marrom. Em volta do pescoço, havia um tíquete, que o oficial médico, um homem irritadiço com um jaleco branco, inspecionava para se informar. Pediu uma enfermeira, e uma jovem inglesa, que também não passava dos vinte anos, veio ajudá-lo.

Começaram a despir o rapaz, que nitidamente não tomava banho há meses. As botas pareciam coladas aos seus pés. Stephen observou, se perguntando por que não se davam ao trabalho de sequer colocar um biombo. Quando ele mesmo tinha chegado, calculou que não tirava as meias há vinte e dois dias.

Quando finalmente arrancaram fora as botas do garoto, o cheiro que invadiu a ala fez com que a enfermeira vomitasse na pia de pedra ao lado.” (pp. 209-210)