14 de dezembro de 2002

“O limite da humanidade"

“O limite da humanidade — romance de Philip Roth discute a identidade e o politicamente correto”, Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 2002.

Resenha sobre o livro A marca humana, de Philip Roth, ed. Companhia das Letras.

Entende-se por estampagem o fenômeno através do qual alguns animais se vêem afastados de sua própria espécie, não se reconhecem a si próprios como parte dessa espécie e não se comportam como tal, mal falando a mesma língua de seus pares. Pense-se em um bicho, enfim, que não sabe ser o bicho que é. Imagine-se em seguida o mesmo caso a passar-se com outra espécie — a nossa —, e se estará diante do centro nervoso de um dos grandes romances de Philip Roth, A marca humana (The Humain Stain), publicado nos Estados Unidos em 2000. Na tradução portuguesa, A mancha humana.

Roth, hoje um dos mais produtivos e ao mesmo tempo engenhosos escritores norte-americanos, chegou a ser considerado um dos mais escandalosos e polêmicos de sua geração. O já clássico Complexo de Portnoy (Portnoy's Complaint), com seu enredo totalmente estruturado à volta das aventuras catártico-masturbatórias de um homem — Alexander Portnoy —, causou rebuliço em 1969 e gerou toda a sorte de péssimas interpretações a defender com ingenuidade o caráter supostamente autobiográfico do romance. O poeta pode ser — e em geral é — um autêntico fingidor, mas a opinião pública americana e boa parte da crítica não entenderam nada disso à época.

Philip Milton Roth nasceu em 1933, em New Jersey, formou-se na Universidade de Bucknell, pós-graduou-se em literatura inglesa na Universidade de Chicago, deu aulas de “criação literária” nas universidades de Iowa e Princeton e já ganhou uma boa dúzia de prêmios ao longo de mais de vinte romances. O National Book foi para o seu primeiro livro de histórias, Goodbye, Columbus, and Five Short Stories, de 1959, e, anos mais tarde, em 1995, para o tórrido-cômico O Teatro de Sabbath (Sabbath's Theater). Por The Counterlife, de 1986, e o belo e lacrimoso Patrimônio (Patrimony), de 1991, um acerto de contas com a memória do pai, Roth recebeu o National Book Critics Circle. Acabou ganhando nada menos que o Pulitzer com Pastoral Americana (American Pastoral), de 1997, e o PEN/Faulkner com dois livros: Operação Shylock (Operation Shylock), eleito pela Time Magazine o melhor romance americano de 1993, e este A mancha humana, ou A marca humana.

A tradução direta da palavra stain é "mancha" ou "nódoa". Traduzir The Humain Stain como A marca humana, caso da opção brasileira, revelou-se um toque de elegância; aproveitou-se a multiplicidade de significados da palavra "marca" e aliou-se à idéia original de "mácula" ou "difamação" o sentido de "sinal", "impressão", "selo" ou "característica". A marca humana terá então essa ambivalência: tudo o que é humano por natureza e tem o humano como característica e constituição e, ao mesmo tempo, tudo o que não é originalmente humano mas foi então manchado ou maculado pela presença humana, adquirindo então a sua marca.

Animais criados por muito tempo em cativeiro sofrem a tal estampagem: ganham uma marca humana e deixam que se vá a original. É o caso do Príncipe, um corvo que perdeu a capacidade de reconhecer-se como um corvo, a capacidade de reconhecer outros corvos e a capacidade de falar, limitando-se a imitar os sons que as crianças produzem quando o imitam. Um corvo que não sabe ser um corvo; uma mulher que não sabe ser uma mulher. É o caso da estranha e magnética Faunia Farley, de 34 anos, faxineira da agência dos correios da pacata cidade americana de Berkshire, na região de Nova Inglaterra. Completamente analfabeta e maltratada não só pela vida mas pelos punhos de seu marido, um perturbado veterano da Guerra do Vietnã, violentada pelo padrasto quando miúda, acostumada a viver à parte de tudo, próxima dos animais, especialmente os corvos, afogada em sua imensa solidão, Faunia desaprendeu os jogos da sociabilidade, perdeu uma certa parte de sua humanidade e tornou-se — pese-se a palavra — básica.

A outra ponta dessa corda estica-se na figura de Coleman Silk, de 71 anos, um erudito professor de letras clássicas da pequena Athena University, também em Berkshire. A distância social e intelectual entre Coleman e Faunia é o inverso proporcional da atração um tanto selvagem que sentem um pelo outro quando afinal se esbarram casualmente na agência postal e encetam um caso, não propriamente de amor, muito propriamente de sexo. Coleman a chama Voluptas, a filha de Psique e, para os romanos, o prazer sensual corporificado. Conta-nos tudo isso o escritor Nathan Zuckerman, personagem-narrador de outros livros de Roth e, segundo ele próprio, não o seu alter ego mas o seu alter brain. Toda a história de A marca humana é a história que Nathan Zuckerman acaba escrevendo da vida de Coleman Silk, seu vizinho, amigo e confessor — uma história nada banal que começa a revelar-se a partir do instante em que o angustiado Coleman lhe bate à porta, lhe invade a casa e lhe conta, aos berros e prantos e despejando sobre a mesa uma ruma de documentos, como foi que uma espúria acusação de racismo destroçou a sua carreira, a sua família, as suas amizades, as suas emoções e, de modo fulminante, a vida de sua mulher, Iris.

“Alguém conhece essas pessoas? Elas existem mesmo ou será que são spooks?”, perguntou à sua turma o professor Silk, referindo-se a dois alunos que ele não conhecia e que, já na quinta semana do semestre, ainda não tinham aparecido em sala. Silk usou a palavra spook (“Do they exist or are they spooks?”), certamente em sua primeira acepção — "assombração", "fantasma". Mas foi esta palavra em seu segundo sentido — termo pejorativo atribuído aos negros —, mal escolhida, mal dita e mal compreendida, que acabou por formalizar a acusação de racismo, sensibilizar simploriamente os espíritos politicamente corretos da pequena Berkshire e colocar toda a comunidade universitária contra aquele homem, dando início ao que seria o seu mais longo exílio — o último.

É de exílio que se estará a tratar nesta longa e bela história de vidas. Coleman e Faunia, cada qual em seu exílio, têm, cada um, o seu segredo cuidadosamente guardado e lentamente destilado — o de Faunia morre com ela, escrito em seu diário, o diário de uma analfabeta; o de Coleman está inscrito em sua pele, a sua branca pele negra, a sua marca humana, à qual renunciou por toda a vida, e com êxito: Coleman Silk nasceu negro, em uma família negra, em meio a uma infância negra, mas viveu como um branco, renegando seus parentes negros, casando-se com uma judia e finalmente morrendo e sendo enterrado como um autêntico judeu.

A crise de identidade dos judeus, a intolerância da América macarthista e a atitude politicamente correta do academicismo norte-americano em seu recente surto de santimônia — parecem ser estes os assuntos prediletos de Roth em seus três romances, Pastoral Americana, Casei com um comunista (I Married a Communist), de 1998, e este A marca humana, considerado a parte final da monumental trilogia. Também se pode dizer que a insólita condição de Coleman, sendo negro e judeu e, ao mesmo tempo, não sendo uma coisa nem outra, representa, sim, com precisão, a esquizofrenia racial em que vivem os norte-americanos — divididos entre uma realidade etnicamente cindida e uma linguagem que não deve de modo algum sê-lo, e para tanto precisa policiar-se a si mesma, às vezes ao cúmulo do ridículo. O grande tema deste livro, no entanto, é a liberdade — uma liberdade tal que somente uma insólita condição como a de Coleman poderia proporcionar: a liberdade de reinventar o próprio passado, ou seja, o futuro.

Trechos da edição brasileira (referente a Coleman Silk):

“Devo toda essa turbulência e felicidade ao Viagra. Sem o Viagra, nada disso estaria acontecendo. Sem o Viagra, eu teria do mundo uma imagem adequada à minha idade e objetivos completamente distintos. Sem o Viagra, eu teria a dignidade de um cavalheiro idoso, livre do desejo, que se comporta de maneira correta. (...) Sem o Viagra, eu poderia continuar, em meus anos de declínio, a desenvolver a perspectiva ampla e impessoal de um homem instruído, experiente, honestamente aposentado, que desde muitos anos renunciou à fruição sensual da vida. Eu poderia continuar a extrair profundas conclusões filosóficas e exercer uma sólida influência moral sobre a juventude, em vez de me pôr de volta no estado de emergência perpétua que é o arrebatamento sexual. Graças ao Viagra, entendi as transformações amorosas de Zeus. É assim que deviam ter chamado o Viagra. Deviam ter chamado de Zeus.” (p. 50)

1º trecho referente a Faunia Farley:

“E Faunia lembrava quanta força tinha feito para morrer. (...) No mês seguinte à morte dos filhos, duas vezes tentei me matar naquele quarto. Para todos os efeitos, consegui na primeira vez. (...) E eu tentei com tanta força. Lembro-me de ter tomado banho de chuveiro, raspado as pernas, vestido a minha melhor saia, a saia comprida de brim. A túnica. A blusa comprada em Brattleboro naquela vez, naquele verão, a blusa bordada. Eu me lembro do gim e do Valium, e lembro vagamente daquele pó. (...) Um tipo de raticida, amargo, e eu o misturei no pudim de caramelo. Será que abri o gás do forno? Será que esqueci? Será que fiquei azul? Por quanto tempo dormi? Quando resolveram arrombar a porta? (...) Para mim, foi um êxtase me preparar. Tem ocasiões na vida em que vale a pena a gente celebrar. (...) Ocasiões feitas para a gente se vestir com todo o capricho. Ah, como eu me arrumei. Pus fitas no cabelo. Pintei os olhos. Até minha mãe teria ficado orgulhosa de mim (...). Telefonei para ela uma semana antes para contar que as crianças tinham morrido. O primeiro telefonema em vinte anos. ‘Aqui é Faunia, mãe.’ ‘Não conheço ninguém com esse nome. Desculpe’, e desligou. A sacana.” (p. 327)

2º trecho referente a Faunia Farley:

“— É nisso que dá ser criado em cativeiro — disse Faunia. É nisso que dá ficar a vida toda metido com gente feito nós. A marca humana — disse ela, e sem repulsa, desprezo ou condenação. Nem sequer com tristeza. É assim que são as coisas. (...), deixamos uma marca, deixamos um vestígio, deixamos um sinal. Impureza, crueldade, ofensa, engano, excremento, sêmen: não existe outro modo de viver aqui. Não tem nada a ver com desobediência. Nada a ver com graça, salvação ou redenção. Está em todos. Residente. Inerente. Característico. (...) A marca tão intrínseca que não requer um sinal. A marca que precede a desobediência, que abarca a desobediência e desnorteia toda explicação e qualquer entendimento. É por isso que toda purificação é uma piada. Uma piada de bárbaros, aliás. A fantasia da pureza é aterradora. É demente. O que significa a busca da pureza, senão mais impureza? A conclusão de Faunia seria naturalmente esta: somos criaturas inevitavelmente marcadas. Reconciliadas com a horrenda imperfeição original. Ela é como os gregos (...) de Coleman. Como os deuses deles. São mesquinhos. Discutem. Brigam. Odeiam. Matam. Trepam. O tal do Zeus deles só quer saber de trepar — deusas, mulheres, mortais, novilhas, ursas — e não só na sua aparência genuína mas, o que é ainda mais excitante, metamorfoseado numa fera. Montar sobre uma mulher na forma de um touro imenso. Penetrá-la, com extravagância, na forma de um cisne branco que bate as asas. Nunca havia carne o suficiente para o rei dos deuses, nem perversidade bastante. (...) Não o deus hebraico, infinitamente só, infinitamente obscuro. Monomaniacamente o único deus que existe, existiu e sempre existirá, sem nada melhor para fazer do que cuidar dos judeus. E em vez de tudo isso, o Zeus grego, (...) caprichoso, sensual, exuberantemente unido à sua própria e notável existência, tudo menos sozinho, tudo menos oculto. Em vez de tudo isso, a marca divina. (...) Deus da libertinagem. Deus da corrupção. Um deus de vida, como nunca houve outro. Deus à imagem do homem.” (p. 323-324)

7 de dezembro de 2002