1 de agosto de 2013

“As errâncias da infância”

12. “As errâncias da infância”, Revista Lilica and Tigor, São Paulo, ago. 2013 (data aproximada).

Escrevo este texto de Lisboa, e se sair à rua para tomar uma “bica”, que é um café curto, uma espécie de shot de café, tenho de pôr um chapéu, senão as ideias, quando eu voltar, estarão secas. O sol aqui não é para terráqueos, porque o ar é bem mais seco e não há, rigorosamente, chuvas nesta época do ano. Para as minhas duas piolhas, Alice e Clara (e para os piolhos e as piolhas de todo este Portugal), começam as chamadas “férias de agosto”. Vim cá para estar com elas, rever amigos, tomar uns copos no Bairro Alto e para pouco mais – em suma, não fazer quase nada, e escrever, e olhar para as coisas e ler o que der na telha. Não é muito fácil uma pessoa estar assim diante deste mar de possibilidades de prazer. Se houver no vivente algum resquício de um perfil sofredor, ter de escolher entre tantas delícias pode tornar-se uma fonte de angústia.

Não foi sem tempo que me caiu às mãos a crônica “Breve partilha da minha sorte infinita”, de um escritor português chamado José Luís Peixoto. O gajo escreve sobre um insight que teve justamente durante umas férias típicas, enquanto lia um livro, enquanto assistia aos filhos a pular como doidos na piscina ou a jogar bola, enquanto vivia um momento em que tudo soa bem e ele se dá conta, e faço aqui uma paráfrase, da noção precisa do tamanho da sua sorte.

O centro nervoso do seu texto é o seu temor, que segundo ele vem desde jovem, de passar pelas horas mais felizes de sua vida sem as reconhecer. O que o José Luís quer parece simples, mas não é: está a falar da lucidez de se estar sempre alerta para a felicidade, o que significa detectar os momentos felizes na hora exata em que acontecem.

Isto pode começar como uma brincadeira; depois passar a ser um exercício com promessa de bons resultados e terminar sendo uma forma de vida, ou, vá lá, uma espécie de sabedoria de caráter bastante prosaico, se é que não são assim as melhores ou as mais profundas sabedorias: aquelas que nos ensinam sem que percebamos que estamos a aprender coisas; aquelas que nos envolvem no dia-a-dia e se encontram tão dentro de nós que nem damos mais por elas.

E assim fiz, e assim venho fazendo quando me vejo aqui em Lisboa, a olhar para as minhas duas piolhas a correr e a andar de bicicleta e a pular na piscina feito doidas no condomínio de casas onde moram, com árvores e espaços que não acabam mais. Vejo-as a viver uma infância perfeita, rodeadas de amigos, sem preocupações quanto à segurança, a dormir umas nas casas das outras, a ficar do lado de fora, fazendo piqueniques na grama, até o momento em que o sol, por estas bandas, se decide finalmente a ir embora e acordar lá longe os chineses, o que acontece pelas nove da noite, ou ainda mais tarde.

E depois desabam nas suas camas e nem se mexem. Não sei bem o que elas sabem acerca disso tudo; não sei se percebem a infância que estão a viver. O que sabem, e disso têm a certeza, é que no dia seguinte vão acordar e bater às portas dos amigos e recomeçar este eterno retorno de água e sol e tombos e bicicletas e choros e lanches e corridas e “noitadas” na grama. Se calhar, saberão, sim, da infância que estão a viver, mas talvez mais tarde, quando já não a estarão vivendo. E então poderão viver essa infância tal como eu a vivo hoje, enquanto as vejo: de forma indireta, mas, agora, lúcida.