"Perdidos no labirinto da ficção", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29 de novembro de 1997.
Resenha sobre o
livro O fosso de Babel, de Jacyntho Lins Brandão, ed. Nova Fronteira.
O autor é antes de mais nada um autêntico fingidor. Mas não neste romance, cujo segundo capítulo configura uma espécie de mea culpa. O autor revela a própria identidade, revela que os nomes dos personagens serão inventados e revela que será ele mesmo, em terceira pessoa, a contar a história. “Aqui, o autor sou eu — e é desnecessário repetir meu nome que o amigo poderá, muito simplesmente, descobrir na capa do livro. O professor J... é minha personagem e não será ele mesmo quem contará sua história, pois lhe pouparei esse trabalho.” Poderia o autor ter poupado a si próprio o trabalho desta explicação. Poderia ter poupado também o leitor, nesta e em outras passagens, de esclarecimentos excessivos que ao fim e ao cabo só fazem eliminar da leitura a sua necessária e fértil dificuldade.
Trata-se da história de um professor de grego que recebe em casa um estranho pacote cheio de papéis, entre eles os originais de um romance. O professor de grego chama-se José Leme, o pacote foi enviado por uma tal de Ana e o romance que lá está tem como autor um outro José Leme, que não é professor de grego mas gostaria muito, isto sim, de ser “um novo Xenofonte de Éfeso” — e é dessa maneira que inicia o seu romance. Como Xenofonte não veio de Éfeso, mas de Atenas, o professor de grego José Leme fica intrigado e parte por conta própria para uma investigação cujo ponto final estaria repousado no doce colo de Ana, para ele uma antiqüíssima ex-aluna, muito inteligente, muito bonita e muito aplicada. A investigação particular do professor conduz a aventuras e mal-entendidos. José Leme acaba seqüestrado por engano, termina preso por tráfico de cocaína, muda de identidade e transforma-se sucessivamente, e às vezes simultaneamente, em outros dois personagens: Antônio Costa, professor de literatura comparada; e Carlos Lima, investigador de polícia. O problema é que cada um deles, em si, não dá mostras de acreditar na própria história que vive. Com exceção de algumas pequenas manias e alguns modos de falar — insuficientes para que permaneçam por muito tempo na cabeça do leitor —, Antônio Costa e Carlos Lima constituem uma espécie de peso morto dentro da história.
“Não estranhe, meu leitor, que eu escreva J..., A... e não os nomes inteiros de cada um. É que, nesse caso, qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas não pretende ser mera coincidência.” Pudera. As iniciais de José Leme, J. L., são as mesmas de Jacyntho Lins Brandão — mineiro de Rio Espera e nascido em 1952. Assim como José Leme, Brandão é também professor de grego. É doutor em Letras Clássicas pela USP e atualmente vice-reitor da UFMG. Publicou o livro didático Língua grega: leituras e exercícios e o romance Relicário (de 1982), além da peça Que venha a senhora dona, premiada no concurso de textos teatrais da Fundação Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Há aqui uma intenção autobiográfica qualquer, sugerida pelas iniciais J. L. e pela advertência do autor. Mas isto não tem muita importância, mesmo não sendo o autor um autêntico fingidor. O importante é que O fosso de Babel parece não ter fim. A narrativa, em sua rapidez estonteante, abre muitas frentes na história — seja através do surgimento de novos personagens e, a reboque, novas situações a complicar ainda mais a vida de nosso herói, seja graças às originais e constantes referências à cultura grega, sua mitologia e sua língua. As referências estão presentes no nome de alguns capítulos, em citações explícitas e implícitas ao longo do texto e em metáforas e analogias, a maioria relacionada às viagens pós-guerra de um Ulisses cansado de Tróia, cantadas por Homero na Odisséia. Mas tantos caminhos parecem não conduzir a nada senão a novos caminhos que se desfazem, e os acontecimentos vão aos poucos perdendo o sentido e dando a impressão de que estão ali apenas para acelerar e preencher uma trama que afinal não está tecida. O texto é formalmente pouco original e há uma névoa de infantilidade que não o abandona. Mesmo assim, é correto, culto e extremamente engraçado.
Há quem faça aproximações entre a narrativa de Jacyntho Lins Brandão e a de Machado de Assis. A semelhança, contudo, acontece apenas às vezes. Machado divertia-se com a idéia de trazer para si a presença do leitor, invocando-o a cada novo passo da história, lembrando-lhe que entre ambos há um texto constantemente atando e desatando um diálogo que é antes de tudo monólogo. Jacyntho Lins faz do mesmo modo, com simpatia, leveza e bom humor, mas no lugar de um leitor o professor não resistiu à tentação de colocar um aluno.