"Eu tive medo de Campos de Carvalho"
Minha mãe um dia atirou-me ao colo a obra reunida de Campos de Carvalho e disse: “Leia isto”. Estava disposto a obedecer, mas antes perguntei a ela se já tinha lido. “Até onde me foi possível.” “Foi possível o quê?” “Até onde me foi possível ler e não enlouquecer”, disse ela. Aquilo me animou.
Tempos depois candidatei-me para o curso de mestrado na PUC-Rio. Feitas as provas, tive de submeter-me à entrevista, à qual me dirigi sem um objetivo concreto de estudo. Às tantas quiseram saber dos meus propósitos — quem, ou o quê, eu iria estudar. Ainda não me tinha feito eu mesmo essa pergunta, e nem achei que deveria, mas, não sei por quê, ali, àquela hora, diante daqueles professores que me entrevistavam, a resposta veio à minha cabeça e prontamente se expressou, com uma convicção e uma segurança que até a mim me impressionaram. “Vou estudar o Campos de Carvalho”, disse, e quando vi já havia dito o que nem eu mesmo sabia que sabia até o momento. A reação não poderia ter sido melhor. Parabenizaram-me sorrindo, e eu quase posso apostar que por baixo dos sorrisos estavam dizendo, animados, algo como um “até que enfim apareceu um maluco disposto”.
Dado o primeiro passo por acaso, dei, também por acaso, o segundo: arranjei um colega de mestrado, Mauro Gaspar, que se tornou companheiro, cúmplice, confidente e irmão — o segundo maluco disposto. Campos de Carvalho tornou-se, de uma hora para outra e ao mesmo tempo, tema de trabalho de dois malucos dispostos. As coincidências envolvendo o meu tema estavam apenas começando a me impressionar.
Em uma belíssima noite, conversei por telefone com uma ex-chefe muito amiga, Fernanda Gurjan, e falei-lhe acerca do mestrado. “E a dissertação?”, perguntou. “Ah, vai ser sobre um escritor mineiro.” “Quem?” “Você não conhece. Aliás, ninguém conhece.” “Você não conhece tanta gente assim, para estar tão convicto de que ninguém o conheça. E então, quem é o seu autor?” “O Campos de Carvalho.” “Campos de Carvalho?” “Não falei que você não conhecia...” “O Walter?” “Walter?!” “O Walter é meu primo!”, disse ela, tentando não gritar. “Ah”, disse eu, e pensei: “Nunca estive tão perto do homem”. Eu estaria mais ainda.
A partir daí, o Campos de Carvalho passou a ser “o Walter”. “Estou tentando encontrar a Lygia Rosa, mulher dele, mas não acho”, disse-me Fernanda, excitadíssima, pelo telefone. “Ela está em algum lugar de São Paulo, e sei que vai se mudar para o Rio. Quero organizar um jantar aqui em casa com você, Lygia e Maria Amélia Mello, gerente editorial da José Olympio.” Eu só sorria.
Enquanto isso eu começava a tentar sair do lugar. Consegui o e-mail de outro primo do Walter, o escritor Mario Prata, que gentilmente me telefonou e se colocou à disposição para tudo o que eu quisesse. Mario Prata publicou alguns artigos nO Estado de S. Paulo: “O brado retumbante do Ipiranga” (8 set. 1993) e “Onde andará o primo Campos de Carvalho” (30 nov. 1994) foram responsáveis por tudo o mais que se seguiu; foram a pedra de toque para que hoje estejamos a falar de Campos de Carvalho. Devo mencionar, neste sentido, o Antonio Prata, filho do Mario, o Pedro Bial e também o Paulo Roberto Pires — entrevistadores corajosos que, através de seu trabalho, lograram arrancar de um Campos de Carvalho pouco eloqüente, cansado e triste as poucas palavras que, mesmo assim, conseguiram aproximá-lo de seus antigos e novíssimos leitores.
Meti-me, em seguida, na internet, e de lá saí com o nome de mais um maluco disposto, um título e um lugar: Alfeu Sparemberger, Campos de Carvalho: a subjetividade condicional, dissertação de mestrado apresentada à Universidade de Santa Catarina, mas disponível em cópia na Faculdade de Letras da UFRJ, na Ilha do Fundão. Lá fui. Cheguei animado e sorridente à moça da biblioteca e lhe disse: “Estou procurando isto”, e lhe entreguei o papelzinho com o nome do Sparemberger, seguido do título. Ela sorriu de volta, consultou um terminal de computador e, apontando para uma enorme sala entupida de pastas encadernadas, disse: “A dissertação que você procura está nesta sala, sob o número tal”. Sorri de volta e comecei a consultar a primeira das doze fileiras de estantes. Cada fileira tinha aproximadamente dez metros de comprimento e quatro andares de prateleiras. Identifiquei um número qualquer em um dos andares e disse-lhe: “Acho que dei sorte. Acabei encontrando um número próximo ao do Sparemberger. Deve ser um pouco mais para cá”, e continuei. “Não, não”, ela me interrompeu, e o seu sorriso foi minguando: “Não está na ordem”. “Ah”, disse eu, e, sentando no chão, diante do primeiro andar de prateleiras, arregacei as mangas. Hora e meia depois saí, sujinho e empoeirado, com uma cópia da dissertação de mestrado do Alfeu Sparemberger, levemente suspeitoso de que Campos de Carvalho, onde quer que se achasse, estava disposto a dificultar qualquer tentativa minha de encontrar, por minha própria conta, algo a seu respeito.
O jantar com Lygia e Maria Amélia Mello saiu afinal do papel, e para lá nos dirigimos eu e Mauro, a encontrar uma Fernanda Gurjan animadíssima diante de sua mesa de jantar literariamente caracterizada com tudo o que havia na casa sobre Campos de Carvalho. Foi um jantar literário. Lemos trechos dA lua vem da Ásia, da Vaca de nariz sutil, dO púcaro búlgaro, e, não sei bem como ou por quê, coube a mim ler Fernando Pessoa. Alguém me disse: “Escolha um número e abra a página correspondente”. Eu escolhi o treze, dia do meu aniversário e, por coincidência, do de Fernando Pessoa. Abri a página treze daquela edição e dei com um verso cujas palavras principais eu procurava há algum tempo e não encontrava. Trata-se de uma expressão utilizada por Carlos Felipe Moisés em seus comentários à Vaca de nariz sutil. Diz ele, à página 18 da Obra reunida:[1] “... de um lado, o binômio morte-cemitério, de outro, a sugestão — já agora pessoana, ‘cadáver adiado que procria’ — de que há mais mortos fora do que dentro”. E isto está no décimo e último verso da Quinta Quina, homenagem a D. Sebastião, rei de Portugal, da primeira parte de Mensagem, de Fernando Pessoa. E este “cadáver adiado que procria” fui encontrá-lo justamente ali naquele jantar, naquela página treze, sem o menor esforço, sem a menor pesquisa, apenas abrindo numa página cujo número, o treze, nas palavras de uma atentíssima Lygia, bem ao meu lado na mesa, era o número preferido do seu marido, Walter Campos de Carvalho, “o Walter”. Comecei a montar o que eu chamei de a minha insólita suspeita: ele, onde quer que se achasse, estava disposto a ajudar-me em tudo o que se relacionasse com o seu trabalho e com o meu — desde que fosse ele a decidir o quê, quando e como eu deveria encontrar.
Ilustra esta idéia o que me aconteceu na Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Eu estava lá, na seção de periódicos microfilmados, à cata de um importantíssimo artigo de Sérgio Milliet acerca dA lua vem da Ásia. A simpática moça encarregada entregou-me um rolo contendo os microfilmes dO Estado de S. Paulo, do dia 1º ao dia 15 de fevereiro de 1957. Eu precisava muito daquela crítica, e por isso permaneci obsedado diante daquela tela verde-musgo, a rodar as manivelas e a ver passarem diante de mim todas aquelas minúsculas páginas, pensando no tamanho da lupa que teria de arranjar para conseguir ler as letrinhas que me esperavam. Já estava no final da edição do dia 3 de fevereiro, ansioso pela edição do dia 4 e, portanto, ansioso para chegar ao caderno cultural onde certamente estava o artigo do Sérgio Milliet, quando me dei conta de que, dentro daquele rolinho de filmes, o dia seguinte ao 3 de fevereiro de 1957 era, inexplicavelmente, o dia 5... A microfilmagem havia pulado, por razões incognoscíveis, a edição do dia 4... Perguntei à moça encarregada se aquilo era possível e mesmo permitido, e ela disse: “Sim. Erro de microfilmagem. Nada a fazer”.[2] Mas eu já estava com a cabeça longe, a pensar que a minha insólita suspeita afinal se revelava certa.
A última e mais importante coincidência a contribuir para a construção deste trabalho aconteceu alguns meses depois daquele jantar, quando eu e Mauro fomos convidados por Lygia para um vinho em sua casa. “Onde ela mora?”, perguntei a ele, que me foi apanhar de carro e já havia ido lá uma vez. “Em Copacabana”, disse. Entramos em uma rua e eu quis saber se era aquela a rua da Lygia. “É. Por quê?” “Porque é mais uma coincidência que me aparece.” “Qual?” Mas eu não cheguei a responder. Quando paramos em frente ao prédio, resmunguei: “É aqui, Mauro? Não pode ser...”. “Por que não?” E eu: “Qual o andar da Lygia?”. Mas ele estava ocupado em nos identificar junto ao porteiro. “Diga que é Juva e Mauro.” Mas o porteiro, cumprimentando-me com simpatia, dispensou com a mão as identificações e pediu que subíssemos. “Você o conhece?”, perguntou o Mauro, já no elevador. Mas eu queria era saber o andar da Lygia. Paramos logo no primeiro. “É aqui”, disse ele. “Ah...”, disse eu. “Ah, o quê?” “Você não vai acreditar, Mauro. A coincidência de que lhe havia falado quando entramos nesta rua é maior do que eu imaginava.” “Diga.” E antes que tocássemos a campainha eu disse a ele; disse que Lygia Rosa, mulher de Campos de Carvalho, era vizinha de porta de minha mãe, Telma, que um dia me atirou ao colo a Obra reunida e disse: “Leia isto”.
O leitor não imagina a minha felicidade ao perceber que ainda o tenho aqui, leitor, em minha companhia, passadas estas tantas linhas de uma história que, afinal, conseguiu contar-se a si mesma. Agora, confiante em que não seguirei desacompanhado, passo ao segundo e último ponto, dividindo-o em três partes.
A primeira: o principal problema que Campos de Carvalho assunta e cutuca é o desajuste, cada vez mais evidente, entre o homem e os seus diferentes semelhantes. O desenho que pus na capa de minha dissertação — A corda de quatro pontas: a hipótese do narrador único na obra de Campos de Carvalho[3] — é um auto-retrato, tendo por baixo a designação: o cenobita Campos de Carvalho, ou seja, “indivíduo que leva vida retirada, mas em comum com outros que têm seus mesmos interesses, princípios ou prerrogativas”, diz o Aurélio.[4] Campos de Carvalho sentia-se um cenobita. Seu narrador sentia-se um cenobita e dá provas disso. Esse desajuste entre homem e homens radicaliza-se e amplia-se para dentro, de modo a tornar-se um desajuste entre o homem e seus inúmeros hóspedes de si mesmo — partes desse mesmo homem em conflito incessante. O personagem de Campos de Carvalho, o principal, o único, está em pé de guerra consigo próprio. Seu narrador é, como já escreveu Affonso Romano de Sant’Anna acerca desse tipo de personagem, “uma anomalia como Macunaíma, Don Quijote e Finnegans Wake; um anti-herói, um ex-cêntrico, um displaced, um gauche”.[5]
Passo à segunda parte. Logo ao início, a informação principal que eu tinha acerca de Campos de Carvalho era a seguinte: Campos de Carvalho é um escritor surrealista. Eu não sei por quê, mas isso me incomodava — talvez porque eu soubesse muito pouco sobre o surrealismo, e com certeza porque eu não sabia nada acerca de Campos de Carvalho, nem mesmo que sua mulher Lygia era a simpática vizinha de minha mãe... Fui aos poucos compreendendo que aquela definição, como quase toda definição, constituía um ponto de partida, e não de chegada. A chegada é uma das poucas oportunidades que temos de poder falar com alguma autoridade sobre a partida. Borges disse que só podemos definir algo quando nada soubermos a respeito desse algo. Eu nada sabia acerca de Campos de Carvalho, e tudo o que me aparecia à frente me dizia que ele era um escritor surrealista.
Ser surrealista foi a sua maneira de manter acesa uma crítica constante sobre a sociedade. Campos de Carvalho sempre se definiu um autor surrealista. Há duas maneiras de se entender isso: a primeira, compreendendo-se o surrealismo em seu sentido mais corriqueiro, como um conjunto de atos, palavras e/ou idéias que dêem conta de algo que está de certo modo deslocado, fora do real, do comum, do razoável, do verossímil e do sensato. O efeito produzido por tudo o que esteja ligado a este sentido tem o humor como fator constituinte. O tipo de surrealismo que lemos em O púcaro búlgaro e as situações mais corriqueiras de A lua vem da Ásia são ótimos exemplos.
"— Ah, o senhor tem um banheiro dentro de casa... Mas isto é magnífico!
— Não apenas um mas dois (...).
— Ótimo! Assim pode-se tomar dois banhos ao mesmo tempo — e pôs-se a examinar o teto com ar entendido. — O sr. nunca andou no teto?
E diante da minha surpresa relativa, dado que eu mesmo não me lembrava se havia andado ou não:
— Pergunto porque não se notam marcas de pés, ou pegadas como se diz lá em Quixeramobim. (...).
De fato não havia marca nenhuma, e isso me deixou um pouco encabulado.[6]
Rosa:
— Está aí fora um sujeito que diz que não existe.
— Mande entrar assim mesmo.
Era um sujeito franzino, raquítico, como se de fato não existisse; mas ainda assim dava para enxergar.
— Chamo-me (...) Fulano C. Meireles. Esse C. até hoje não consegui descobrir o que seja.
— Sente-se.
(...)
— Não sei se o sr. sabe, mas em 1585 o papa Gregório XIII decidiu que o dia seguinte a 4 de outubro de 1582 passaria a ser 15 de outubro de 1582 — parece que para acertar um calendário qualquer. (...) Pois bem, os avós dos meus avós (...) nasceram exatamente entre 5 e 14 daquele ano (...). Eu até que, antes de descobrir esse fato, era um halterofilista razoável, com várias medalhas no peito (...). Quando descobri que não existia, perdi todo interesse de existir (...).
— Lamento muito a sua inexistência.[7]"
E há ainda o caso do Ivo que viu a uva, bastante idoso — “... o que leva a crer que já tenha visto toda espécie de uva que há no mundo e só lhe reste agora conhecer as famosas uvas búlgaras”[8] —, e alegando descender de um hindu cujo grande feito foi a invenção do zero, o que lhe dá direito a royalties sobre zeros utilizados, e não são poucos. Os exemplos demonstram a exploração de uma espécie de absurdo qualquer. Campos de Carvalho leva o absurdo às últimas conseqüências. Um outro exemplo, este tirado dA lua vem da Ásia, certamente o exemplo mais citado e o mais sintomático de Campos de Carvalho:
"Aos dezesseis anos matei meu professor de lógica. Invocando a legítima defesa — e qual defesa seria mais legítima? — logrei ser absolvido por cinco votos contra dois, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris. Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos.[9]"
A segunda maneira de se entender a intimidade de Campos de Carvalho com o surrealismo vai levar-nos ao surrealismo como uma atitude diante da existência. Neste segundo sentido, o que é ser surrealista? É, antes de tudo, não conceber uma arte que esteja apartada da vida e uma vida que não tenha em si, do começo ao fim, um projeto artístico. Campos de Carvalho é surrealista porque teve consciência de que seu trabalho circulava em meio a uma sociedade mediocrizada, atomizada e afundada em seu amor ao dinheiro. Ser surrealista é trabalhar com a palavra do modo com Campos de Carvalho trabalhava: dando a palavra aos loucos, às crianças e aos poetas, exatamente como ele fez quando pôs para falar seus personagens — todos loucos, crianças e poetas. Falar, por fim, de Campos de Carvalho como autor surrealista é falar de sua relação de essencialidade com a linguagem. Para ele, surrealista que é, o homem — e essas palavras não são de um surrealista, mas do semiólogo Roland Barthes, que talvez fosse surrealista lá a seu modo... —, o “homem não existe antes da linguagem enquanto espécie ou enquanto indivíduo. Jamais encontraremos um estágio em que o homem esteja separado da linguagem, que ele então cria para ‘expressar’ o que ocorre dentro dele; é a linguagem que dá a definição do homem, não o inverso”.[10]
A terceira parte: minha hipótese principal na dissertação é a de que os quatro livros de Campos de Carvalho — A lua vem da Ásia (1956), Vaca de nariz sutil (1961), A chuva imóvel (1963) e O púcaro búlgaro (1964) — contam uma única história, e seus quatro narradores, todos a narrar na primeira pessoa do singular, constituem as quatro arestas de uma única face. O meu desejo secreto era reescrever cada livro de Campo de Carvalho através de minha análise particular — de, na verdade, criar para A lua vem da Ásia, para a Vaca de nariz sutil, para A chuva imóvel e para O púcaro búlgaro os seus respectivos duplos, que são os capítulos que escrevi para cada um deles. O narrador de Campos de Carvalho é pura fala. Seus quatro romances expõem uma criatura em estado limite de confissão. O narrador, sempre na primeira pessoa narrativa, é o dono de uma voz que não permite a si mesma interromper-se, exceto diante de seu momento final — o momento em que a voz se cala. O narrador só existe enquanto fala. Percebi que todos os quatro livros se orquestravam no sentido de que se estabelecesse entre eles uma coerência: uma literatura de desabafo, crítica e inquieta, tendo por porta-voz um narrador que permanece teimosamente o mesmo, sob diversos disfarces.
Eu uni os pontos à minha maneira e dei a eles a coerência que me interessava; eu, de certo modo, construí eu mesmo o meu objeto de estudo. Onde não havia sentido algum, há agora os meus sentidos. E cada um poderá construir quantos objetos de estudo quiser, ou seja, haverá tantas luas que vêm da Ásia quantos trabalhos houver acerca daquela lua que vem da Ásia original; aquela que na verdade não existe como um objeto fechado, mas que começará a existir quando começar a ser empreendido um trabalho de interpretação sobre ela. Eu usei os livros de Campos de Carvalho para servir aos meus propósitos.
Em seguida, lendo as entrevistas de Campos de Carvalho, conversando com pessoas que o entrevistaram, e especulando bastante, fui percebendo, ao longo da feitura do trabalho, que Campos de Carvalho não poderia ter criado uma espécie diferente de narrador. Ele próprio muitas vezes agia verbalmente como seus personagens, e sua indignação tinha quase sempre os mesmos alvos. Ele cruzava as vozes, e vivia sob a pele de seus personagens. Olha o surrealismo aí: o surrealismo presente nas atitudes e idéias de seus personagens invadiu a sua própria vida, provocando um transbordamento de sua ficção no seu comportamento como autor empírico. Sua literatura é pessoalizada demais para que ele não tivesse nada a ver com aquilo tudo. Falar claramente das intenções de Campos de Carvalho é um risco muito grande, é verdade. Mas não é tão grande quanto falar das intenções autorais de Guimarães Rosa no Grande Sertão: veredas, por exemplo. Entre o narrador Riobaldo e o Rosa há uma distância muito maior do que entre o narrador de Campos de Carvalho e o próprio Campos de Carvalho. E são ambas narrativas em primeira pessoa, monologais e confessionais. Ninguém sabe das intenções de ninguém, o que vale é o que se escreveu. Mas há as pistas. E Campos de Carvalho, mesmo em silêncio, foi generoso com as pistas. Diante dessas duas intenções, a da obra e do autor, descobrir a minha intenção como leitor foi fácil: reforçar esses laços e interpretar os quatro livros de Campos de Carvalho de modo a que fossem um só. Campos de Carvalho escreveu um único romance ao longo de oito anos, e continua desgraçadamente atual e incômodo.
A situação de Campos de Carvalho e de seu narrador pode ser muito bem ilustrada com o seguinte pensamento: é um pensamento que resume um modo de vida específico de uma sociedade africana, chamada os Dogon. Os Dogon acreditam no seguinte e pautam toda a sua existência a partir dessa crença: a de que a pessoa nasce com um punhado de palavras dentro da barriga e, ao longo da vida, vai falando e vai gastando as palavras que tem lá dentro de sua barriga. Quando todas as palavras acabam, a pessoa então morre. E é por isso, dizem os Dogon, que os mortos não falam. É por isso que os Dogon se reúnem à volta dos velhinhos que estão para morrer, na esperança, às vezes correspondida, às vezes não, de que os velhinhos tenham deixado para o final as suas mais importantes palavras, aquelas que, por serem as esclarecedoras do mistério ou dos mistérios da existência, ficaram por último. Às vezes nem a própria pessoa as conhece, a essas últimas. Às vezes não é nada senão um suspiro, ou um muxoxo, ou um espirro. Campos de Carvalho falou, na verdade escreveu, todas as palavras que tinha em si. E sabiamente percebeu o momento em que suas palavras acabaram, e por isso parou de escrever, e por isso morreu em sua condição de autor. Agora, o único modo de fazê-lo falar novamente é lê-lo e, assim, reinventá-lo. Isto é um convite.
* * *
[1] Campos de Carvalho, Obra reunida — A lua vem da Ásia, Vaca de nariz sutil, A chuva imóvel, O púcaro búlgaro, Rio de Janeiro, José Olympio, 1995.
[2] E, de fato, quanto a isso nada fiz. Bem mais tarde, por ocasião de minha defesa, a professora Regina Salgado Campos, da USP — Universidade de São Paulo —, convidada para a minha banca, sentiu-se estimulada pela história, fez lá suas pesquisas e gentilmente me presenteou com o referido artigo.
[3] Dissertação muitíssimo bem orientada pela minha querida amiga, a professora Pina Coco, do Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2001 — a quem muito devo, agradeço e admiro.
[4] Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Dicionário Aurélio Eletrônico, v. 2.0, baseado no Novo Dicionário da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1996, verbete cenobita.
[5] “A narrativa de estrutura simples e a narrativa de estrutura complexa”, in Affonso Romano de Sant’Anna, Análise Estrutural de Romances Brasileiros, Petrópolis, Vozes, 1973, p. 27.
[6] Campos de Carvalho, Obra reunida, ob. cit., p. 333-334.
[8] O púcaro búlgaro, in Campos de Carvalho, Obra reunida, ob. cit., p. 331.
[9] A lua vem da Ásia, in Campos de Carvalho, Obra reunida, ob. cit., p. 36.
[10] Roland Barthes, “Escrever: verbo intransitivo?” (palestra de Roland Barthes proferida no Simpósio Internacional “Les Langages Critiques et les Sciences de l’Homme”, no John Hopkins Humanities Center, entre 18 e 21 de outubro de 1966), in Richard Macksey & Eugenio Donato (orgs.), A controvérsia estruturalista: as linguagens da crítica e as ciências do homem, trad. Carlos Alberto Vogt e Clarice Sabóia Madureira, São Paulo, Cultrix, 1970, p. 149.Eu tive medo de Campos de Carvalho