22 de fevereiro de 2008

"Todos os nomes - Parte II" (resenha enviada para o JB)

“Todos os nomes”, de José Saramago) ed. Companhia das Letras.

Está a criança ainda a berrar da palmada que lhe deram e já há um nome criado e registrado a invadir os competentes arquivos para nunca mais deles sair. A isto se chama registro civil de nascimento — pomposa maneira de dizer que estamos apenas, e pela primeira vez, a ligar o nome à pessoa. O mais comum é primeiro aparecerem ao mundo os nomes e só depois as pessoas que os carregarão às costas vida adentro, ou os levarão à testa vida afora se for a vida pública e notória. Chama-se a este último caso posteridade. Ao fim e ao cabo, pública ou privada a vida, o que acontece é irem-se as pessoas e ficarem-se os nomes, em jornais, em livros, ao pé das estátuas ou apenas in memoriam.

Dos nomes famosos está a ocupar-se há muito tempo este pacato auxiliar de escrita, o Sr. José, que é José porque foi assim registrado e como José vem vivendo há cinqüenta anos na monótona paz de Deus. Habituou-se este senhor a recortar de jornais e revistas, a catalogar e arquivar segundo inflexíveis e precisos métodos taxionômicos toda notícia que encontra sobre gente famosa nos inclassificáveis terrenos da arte, do conhecimento, da política e da moda. A estes arquivos pessoais vai juntando as novidades, atualizando-os se a pessoa que traz o famoso nome se casa ou separa, ou dá à luz um novo nome, ou escreve um livro ou faz um filme ou simplesmente morre — hipótese somente válida se a pessoa em questão estiver antes viva.

Infinitamente maior que o Sr. José e todo o arquivo do Sr. José é o lugar onde trabalha o Sr. José — a Conservatória Geral do Registro Civil. Lá estão os registros de todos os nomes de todas as pessoas que do lado de fora estão a nascer e também a morrer. Logo à entrada percebe-se que a disposição das mesas onde trabalham os funcionários segue a hierárquica forma de um triângulo. À base e paralelos ao balcão de atendimento, os oito auxiliares de escrita, olha lá o Sr. José; imediatamente após, os quatro oficiais; a seguir, os sub-chefes, que são dois; e ao vértice, encimando a horizontal pirâmide, o conservador, a quem a prudência e a tradição aconselham o tratamento de “chefe”. Ao fundo, longe das vistas e dividido segundo a mais básica das leis do mundo, a que distingue o ser do não-ser, o complexo arquivístico — uma parte para os vivos, essa é a parte que nos cabe; e outra parte para os mortos, a que nos caberá a todos.

Para entrar na parte reservada aos mortos — ou melhor, aos nomes que tiveram em vida — sem o risco de lá ficar perdido ao deus-dará, para sempre e esquecido, está o funcionário da Conservatória obrigado ao uso da lanterna e do fio de Ariadne, firmemente amarrado ao pé da mesa do chefe. Minotáurico labirinto de ruelas ladeadas por estantes entupidas de papel, amontoado babélico de processos de nascimento, casamento, divórcio e óbito, assustador, autoritário e mal iluminado, o arquivo dos mortos — cuja descrição constitui uma das mais violentas e eloqüentes imagens deste livro — não é para qualquer um, muito menos para o Sr. José, que possui os nervos fracos e tem medo de altura.

Fossem os domínios da ficção e da realidade menos fugidios e tivéssemos nós a curiosidade e a abstração necessárias ao absurdo de uma pesquisa impossível, encontraríamos, entre os nomes que integram o não menos monumental arquivo dos vivos da Conservatória Geral do Registo Civil, um outro José, de sobrenome Saramago e nascido na aldeia ribatejana de Azinhaga, no concelho de Golegã, em 18 novembro de 1922. Se, na busca obsessiva por mais detalhadas informações, nos dirigíssemos às ocultas ao pequeno arquivo de nomes famosos da coleção particular do Sr. José, nosso auxiliar de escrita, e começássemos a bisbilhotar, descobriríamos que Saramago não nasceu no dia 18, como quer o registro civil, mas no dia 16; que fez estudos secundários que não conseguiu terminar por falta de dinheiro; que já trabalhou como serralheiro mecânico, foi desenhista, funcionário da saúde e da previdência social, editor, tradutor, jornalista e comentarista político; que publicou seu primeiro livro (que saiu como Terra do pecado, embora o título fosse A viúva) em 1947, aos 25 anos; que trabalhou por doze anos numa editora e que é autor de vários romances, entre eles Memorial do convento, O ano da morte de Ricardo Reis, O evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a cegueira e também este: Todos os nomes.

Todos os nomes é a história de uma idéia que cresce alimentada por um grão de acaso e engorda até ganhar a forma de uma pequena obsessão. É a idéia que tem o Sr. José de enriquecer o seu particular acervo de biografias famosas com as informações oficiais contidas nos registros de nascimento da Conservatória Geral. E porque mora no prédio mesmo onde trabalha, numa espécie de alojamento contíguo para funcionários, e porque percebe que tem à sua disposição, à distância de apenas uma porta, todos os dados de que necessita, anda o Sr. José a violar seriamente o regulamento interno, perambulando pelos corredores da Conservatória durante as madrugadas, realizando pesquisas clandestinas na calada da noite e copiando nomes, locais e datas de nascimento. Quando está para completar, enfim, a sua pequena coleção de pessoas célebres, o acaso lhe aparece sob a forma de uma ficha, saída por engano do arquivo dos vivos.

Todos os nomes é o acaso a gerar mais acaso e a produzir a ilusão de que não mais de acaso se está a falar, porém de destino. Todos os nomes é o eco do grito cego que se escuta no Ensaio sobre a cegueira. Cegos sem nome a querer enxergar destino onde não há nada senão o mesmo acaso de sempre, a querer ver sentido onde não há outra coisa a não ser a mesma falta de sentido a nos arrancar fora a razão e o sono. Em ambos os livros a mesma idéia, o mesmo diálogo de cegos onde cada palavra tem a sina de ser a única possível. Em Todos os nomes: o nome que nos deram não é aquele que na verdade temos. No Ensaio: o nome que na verdade temos, em verdade vos digo, não existe, porque o que somos não tem nome. Todos os nomes é uma resposta ao que diz o único fragmento restante do inexistente Livro dos Conselhos, especialmente inventado para servir de epígrafe ao Ensaio sobre a cegueira: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. E o que vemos é aquilo que somos: o inominável a gritar por um nome.

1ª sugestão de trecho

“Cresceu com este episódio o desleixo, prosperou o abandono, multiplicou-se a incerteza, a ponto de um dia se ter perdido nas labirínticas catacumbas do arquivo dos mortos um investigador que (...) se apresentou na Conservatória Geral para efectuar umas pesquisas heráldicas que lhe haviam sido encomendadas. Foi descoberto, quase por milagre, ao cabo de uma semana, faminto, sedento, exausto, delirante, só sobrevivo graças ao desesperado recurso de ingerir enormes quantidades de papéis velhos que, não precisando de ser mastigados porque se desfaziam na boca, não duravam no estômago nem alimentavam.”

2ª sugestão de trecho

“Além do nome próprio de José, o Sr. José também tem apelidos, dos mais correntes, sem extravagâncias onomásticas, um do lado do pai, outro do lado da mãe, segundo o normal, legitimamente transmitidos, como poderíamos comprovar no registo de nascimento existente na Conservatória se a substância do caso justificasse o interesse e se o resultado da averiguação pagasse o trabalho de confirmar o que já se sabe. No entanto, por algum desconhecido motivo, se é que não decorre simplesmente da insignificância da personagem, quando ao Sr. José se lhe pergunta como se chama, ou quando as circunstâncias lhe exigem que se apresente, Sou Fulano de Tal, nunca lhe serviu de nada pronunciar o nome completo, uma vez que os interlocutores só retêm na memória a primeira palavra dele, José...”


3ª sugestão de trecho

“É bem possível que uma consciência subitamente mais inquieta da presença da Conservatória Geral do outro lado da grossa parede, aquelas enormes prateleiras carregadas de vivos e de mortos, a pequena e pálida lâmpada suspensa do tecto por cima da mesa do conservador, acesa todo o dia e toda a noite, as trevas espessas que tapavam os corredores entre as estantes, a escuridão abissal que reinava ao fundo da nave, a solidão, o silêncio, é possível que tudo isto, num instante, (...) o tivesse feito perceber que algo de fundamental estava a faltar às suas colecções, isto é, a origem, a raiz, a procedência, por outras palavras, o simples registo de nascimento das pessoas famosas cujas notícias de vida pública se dedicara a compilar.”

4ª sugestão de trecho

“A meio do caminho, de súbito, parou, É curioso, não me lembro se é de homem ou de mulher o verbete que veio pegado. (...) O verbete é de uma mulher de trinta e seis anos, nascida naquela mesma cidade, e dele constam dois averbamentos, um de casamento, outro de divórcio. Como este verbete há de certeza centenas no ficheiro, senão milhares, portanto não se compreende por que estará o Sr. José a olhar para ele com uma expressão tão estranha, que à primeira vista parece atenta, mas que é também vaga e inquieta, possivelmente é este o modo de olhar de quem, aos poucos, sem desejo nem recusa, se vai desprendendo de algo e ainda não vê aonde poderá deitar a mão para tornar a segurar-se.”

15 de fevereiro de 2008

"Todos os nomes - Parte I"

Os romances do sr. Saramago e as caretas dos portugueses; a metáfora da morte do autor e o crime perfeito; o sr. Saramago como o insistente ressuscitador; o sr. Saramago fantasiando-se de crítico literário; o sr. Saramago-ele-mesmo; o estilo do sr. Saramago; o que fazer com o sr. Saramago?

Descobri o sr. Saramago e a prosa típica do sr. Saramago somente muitos anos depois de vir à tona o Memorial do Convento, publicado em 1982. Ainda hoje, também muitos anos depois de o ter lido, lembro-me da história da pequena Blimunda, que não deve ficar em jejum porque em jejum consegue pressentir o interior das pessoas e descobrir quem são, realmente. O Memorial do Convento é uma musiquinha que a gente vai lendo, vai lendo, e de repente levamos um susto, porque descobrimos que penetramos no compasso final e só falta uma página para o desfecho, e aí ficamos tristes, tristes, com o final da musiquinha. Mas a tristeza dura pouco, o tempo de se pegar noutro livro do sr. Saramago e continuar com a festança literária.

E com o sr. Saramago fiz então aquele caminho clássico: li em seguida O ano da morte de Ricardo Reis, de 1984, não sei por que razão acabei não lendo A jangada de pedra, de 1986, talvez porque a idéia de uma Península Ibérica que se despregue da Europa e siga navegando por mares nunca dantes navegados tenha me parecido de uma absurdidade por demais gráfica, mas li A história do cerco de Lisboa, de 1989, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, de 1991, o Ensaio sobre a cegueira, de 1995, e acabei parando no Todos os Nomes, publicado em 1997, não me animando mais a ler o Saramago dA caverna (2001), dO Homem duplicado (2002), do Ensaio sobre a lucidez (2004) e dAs intermitências da morte (2005). Ainda tive paixão suficiente pelo sr. Saramago-ele-mesmo para ler o Saramago dentro do Saramago, ou seja, as suas ousadas investidas autobiográficas e diarísticas, e por isso encarei o grosso volume dos Cadernos de Lanzarote (cujo último tomo saiu em 1997) e ainda o delicioso exemplo de autoficção que é o Manual de Pintura e Caligrafia (de 1977).

Quando soube que o sr. Saramago havia ganho o Nobel, e seguramente graças à contundência do Ensaio sobre a cegueira, fiquei exultante, porque esse livro me impressionou como poucos livros me impressionaram na vida. Um português com quem jantei, muito culto, me disse, fazendo uma careta, que aquilo não passava dA peste, do Camus, reelaborada. Eu não li A peste, e até deveria ter lido essa Peste antes de escrever este textinho, mas prometo que vou ler e depois comento o comentário do amigo português. De todo modo, o sr. Saramago conseguiu fazer com que nós víssemos, ali dentro do seu Ensaio sobre a cegueira, o inferno apenas pressentido e tateado por uma humanidade toda ela cega — cega de dar dó. Como dizem os portugueses, aquilo foi um livro muito bem conseguido, ou seja, muito bem feito.

Os portugueses dizem assim, de modo geral, mas não estou muito certo de que acreditem muito nisso e que apliquem essa expressão às coisas que o sr. Saramago diz. E digo isso baseado numa estatisticazinha muito pessoal, muito circunscrita às minhas rodas de conversa literária. Desde que me mudei para Portugal, num ensolarado dia de setembro, que vejo os portugueses com quem converso torcerem a boca, numa careta medonha, quando se referem ao sr. Saramago. Sinto-os, e sempre os senti, um bocado fartos do sr. Saramago, das coisas que diz o sr. Saramago e das coisas que fez o sr. Saramago quando ocupou o cargo de diretor-adjunto do jornal Diário de Notícias, entre abril e novembro de 1975, época em que, segundo me disseram muitos portugueses com quem conversei, o sr. Saramago não se mostrou profissionalmente simpático com aqueles que não simpatizavam com as suas idéias políticas.

Até se poderia alegar, num rebate a essa minha sensação e também às caretas e histórias portuguesas, que uma coisa é o sr. Saramago, outra coisa são os livros que o sr. Saramago escreve. Isto é verdade em relação a muitos autores, já que é sempre prudente, do ponto de vista teórico e analítico, que se faça uma distinção entre a pessoa do autor e a sua “pessoa literária” — ou seja, o narrador que, nas frinchas de um romance, está ali, sempre, mas muitas vezes bastante escondido. No caso do sr. Saramago, essa distinção morre, e foi o próprio sr. Saramago o autor desse crime de assassinato.

Outro senhor, o sr. Roland Barthes, notável teórico e crítico francês, celebrizou-se, entre outras belas e produtivas idéias, com aquela bela e produtiva metáfora da “morte do autor”. Disse ele, em palavras poeticamente acadêmicas, que “a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo de onde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem a se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (“A morte do autor”, in O rumor da língua, tradução de Mario Laranjeira, São Paulo, ed. Brasiliense, 1988, p. 65). Em outras palavras, menos poéticas e menos acadêmicas, a personalidade do autor pode vir a se apagar diante de uma voz mais forte e bem mais autorizada, qual seja, a do narrador. O sr. Barthes ainda produz algumas gradações dentro da categoria do “autor”, mas elas não nos interessam aqui. O que interessa é a celebração da voz narrativa como uma importante voz a ser levada em conta para uma produtiva e feliz análise textual, patati-patatá.

Depois do crime perfeito do sr. Barthes, em que ele praticamente matou o autor com belas e brilhantes facadas teóricas, vai o sr. Saramago, por sua própria conta e risco, imbuir-se de uma espécie de missão ressuscitadora, reanimando o bom e velho autor e recolocando-o no centro do cenário narrativo, e em posição protagonista. Em seu artigo “O autor como narrador”, que começa com um encenado e bobamente irônico pedido de desculpas por estar ele, “um simples prático da literatura”, a aventurar-se nas estranhas terras da teoria literária; terras onde se falam línguas que apenas “vagas semelhanças guardam ainda com a linguagem comum”, o sr. Saramago aponta o dedo para a idéia da “morte do autor” e a chama de absurda e perigosa, e questiona a importância atribuída à figura do narrador, para ele uma escorregadia entidade, “propiciadora (...) de suculentas e gratificantes especulações teóricas”. E vê ainda com temor a conseqüência imediata dessa preferência: o descomprometimento compulsório do autor e seu pensamento, reduzidos a “um papel de perigosa secundaridade na compreensão complexiva da obra” (“O autor como narrador”, Revista Cult, São Paulo, ano II, nº 17, p. 25-29).

É bem verdade que o sr. Saramago não nega o que ele chama de “o instável equilíbrio do fingimento”, mas também não acredita em fingimentos puros, falsidades puras que, assim como as verdades ditas puras, não existem, senão bastante misturadas nos caldos da ficção. Sua maior preocupação não é tanto com a promoção do narrador à esfera da paternidade, mas com o espaço supostamente vazio deixado pelo desaparecimento do autor. O sr. Saramago, além de obcecado por si mesmo, é também a tal ponto obcecado pela necessidade de permanecer o autor em condição de proeminência em qualquer análise que se faça de uma obra literária, que chega ao ponto de se perguntar se o que move o leitor não será o desejo de encontrar dentro do livro, mais do que a história em si, “a pessoa invisível mas onipresente do seu autor”.

Para ele, não há espaços vazios. Quando se põe a refletir sobre a sua própria obra, coloca-se a si mesmo, sem a menor cerimônia, no centro narrativo de tudo o que escreve, o que vale dizer: não há uma única linha escrita, um único pensamento formulado por seus narradores, que não esteja de acordo com as idéias do próprio cidadão português José Saramago. Isto, se por um lado contribui, e muito, para a formação de uma identidade, uma homogeneidade e uma coerência ideológica a envolver os narradores do sr. Saramago, os livros do sr. Saramago e o próprio sr. Saramago, por outro lado diminuiu enormemente as suas, podemos assim dizer, alternativas de fingimento literário. Tenho a certeza de que ele não concordaria com isso.

Então, se o sr. Barthes minimizou e reduziu a uma espécie de desfunção o papel do autor no manejo com o texto literário, o sr. Saramago, em sua amadora e simplista incursão pela “terra estranha” da teoria literária, dimensionou a sua importância ao ponto de eleger a si próprio o centro nervoso de seus romances, desconsiderando radicalmente a mera hipótese de um narrador. E talvez esteja aí uma das razões pelas quais os portugueses torçam tanto a boca quando o assunto calha de ser o sr. Saramago. Eu bem sei que a minha estatisticazinha não é significativa, mas quatro em cada cinco portugueses a quem pergunto pelo premiado escritor dizem que já não agüentam mais o seu egocentrismo e as suas verdades. Quem narra a história, seja qual for o romance do sr. Saramago que se tenha à mão, não é o narrador (ai dele!), mas ele próprio, o sr. Saramago, e quem emite todos os juízos estéticos e morais acerca dos personagens e da trama não é tampouco um narrador (ai dele!), mas também ele próprio, o sr. Saramago, que sequer se dá ao trabalho de se esconder por detrás de um estilo que seja específico para cada livro.

O estilo é sempre o mesmo. O estilo é o próprio homem, o sr. Saramago — um estilo, diga-se, extremamente bem cuidado, inteligente e marcado por uma inegável fluidez narrativa; um estilo que já se tornou a sua marca. E esse estilo não se caracteriza, como muito já se escreveu, por qualquer subversão da linguagem, ou mais especificamente da pontuação. Não. A pontuação do sr. Saramago, salvo um pequeno detalhe acelerador de leitura, é das mais ortodoxas e certinhas. O que faz o sr. Saramago é simplesmente limitar-se ao uso de vírgulas e pontos, nunca pontos de exclamação, nunca pontos-e-vírgulas, nunca travessões, nunca reticências e raramente pontos de interrogação. O detalhe acelerador a que me referi resume-se a marcar as alternâncias de um diálogo com uma vírgula e, em seguida, com uma letra maiúscula a estabelecer o início da fala do outro interlocutor. Isto não é nada diante das estupendas maluquices gráficas que se lêem por aí.

Esse estilo saramágico foi seguramente uma das três principais razões pelas quais o sr. Saramago ganhou leitores e prêmios. A segunda razão deve-se às suas idéias, ou seja, aos argumentos centrais de seus romances, os chamados plots — engenhosíssimos argumentos que podem ser expostos, sem exceção, em no máximo três ou mesmo duas linhas. A terceira razão alimenta-se da potência filosófica e humanística das suas histórias e dos seus personagens. O sr. Saramago-ele-mesmo (ai dele!) não constitui, por si, embora ele insista em acreditar nessa possibilidade, razão alguma para que nós nos apaixonemos pela sua obra. É por isso que talvez não devamos exigir deste senhor mais nada, a não ser que continue (e se limite...) a escrever mais e mais obras-primas.

PS. Eu tencionava falar um pouquinho do último Saramago que li, o romance Todos os nomes, mas acabei espichando este preâmbulo. Para a próxima.