“Todos os nomes”, de José Saramago) ed. Companhia das Letras.
Está
a criança ainda a berrar da palmada que lhe deram e já há um nome criado e
registrado a invadir os competentes arquivos para nunca mais deles sair. A isto
se chama registro civil de nascimento — pomposa maneira de dizer que estamos
apenas, e pela primeira vez, a ligar o nome à pessoa. O mais comum é primeiro
aparecerem ao mundo os nomes e só depois as pessoas que os carregarão às costas
vida adentro, ou os levarão à testa vida afora se for a vida pública e notória.
Chama-se a este último caso posteridade. Ao fim e ao cabo, pública ou privada a
vida, o que acontece é irem-se as pessoas e ficarem-se os nomes, em jornais, em
livros, ao pé das estátuas ou apenas in
memoriam.
Dos
nomes famosos está a ocupar-se há muito tempo este pacato auxiliar de escrita,
o Sr. José, que é José porque foi assim registrado e como José vem vivendo há
cinqüenta anos na monótona paz de Deus. Habituou-se este senhor a recortar de
jornais e revistas, a catalogar e arquivar segundo inflexíveis e precisos
métodos taxionômicos toda notícia que encontra sobre gente famosa nos
inclassificáveis terrenos da arte, do conhecimento, da política e da moda. A
estes arquivos pessoais vai juntando as novidades, atualizando-os se a pessoa
que traz o famoso nome se casa ou separa, ou dá à luz um novo nome, ou escreve
um livro ou faz um filme ou simplesmente morre — hipótese somente válida se a
pessoa em questão estiver antes viva.
Infinitamente
maior que o Sr. José e todo o arquivo do Sr. José é o lugar onde trabalha o Sr.
José — a Conservatória Geral do Registro Civil. Lá estão os registros de todos
os nomes de todas as pessoas que do lado de fora estão a nascer e também a
morrer. Logo à entrada percebe-se que a disposição das mesas onde trabalham os
funcionários segue a hierárquica forma de um triângulo. À base e paralelos ao balcão de atendimento, os oito
auxiliares de escrita, olha lá o Sr. José; imediatamente após, os quatro
oficiais; a seguir, os sub-chefes, que são dois; e ao vértice, encimando a
horizontal pirâmide, o conservador, a quem a prudência e a tradição aconselham
o tratamento de “chefe”. Ao fundo, longe das vistas e dividido segundo a mais básica
das leis do mundo, a que distingue o ser do não-ser, o complexo arquivístico —
uma parte para os vivos, essa é a parte que nos cabe; e outra parte para os
mortos, a que nos caberá a todos.
Para
entrar na parte reservada aos mortos — ou melhor, aos nomes que tiveram em vida
— sem o risco de lá ficar perdido ao deus-dará, para sempre e esquecido, está o
funcionário da Conservatória obrigado ao uso da lanterna e do fio de Ariadne,
firmemente amarrado ao pé da mesa do chefe. Minotáurico labirinto de ruelas
ladeadas por estantes entupidas de papel, amontoado babélico de processos de
nascimento, casamento, divórcio e óbito, assustador, autoritário e mal
iluminado, o arquivo dos mortos — cuja descrição constitui uma das mais
violentas e eloqüentes imagens deste livro — não é para qualquer um, muito
menos para o Sr. José, que possui os nervos fracos e tem medo de altura.
Fossem
os domínios da ficção e da realidade menos fugidios e tivéssemos nós a
curiosidade e a abstração necessárias ao absurdo de uma pesquisa impossível,
encontraríamos, entre os nomes que integram o não menos monumental arquivo dos
vivos da Conservatória Geral do Registo Civil, um outro José, de sobrenome
Saramago e nascido na aldeia ribatejana de Azinhaga, no concelho de Golegã, em
18 novembro de 1922. Se, na busca obsessiva por mais detalhadas informações,
nos dirigíssemos às ocultas ao pequeno arquivo de nomes famosos da coleção
particular do Sr. José, nosso auxiliar de escrita, e começássemos a
bisbilhotar, descobriríamos que Saramago não nasceu no dia 18, como quer o
registro civil, mas no dia 16; que fez estudos secundários que não conseguiu
terminar por falta de dinheiro; que já trabalhou como serralheiro mecânico, foi
desenhista, funcionário da saúde e da previdência social, editor, tradutor,
jornalista e comentarista político; que publicou seu primeiro livro (que saiu
como Terra do pecado, embora o título
fosse A viúva) em 1947, aos 25 anos;
que trabalhou por doze anos numa editora e que é autor de vários romances,
entre eles Memorial do convento, O ano da
morte de Ricardo Reis, O evangelho segundo Jesus Cristo, Ensaio sobre a
cegueira e também este: Todos os
nomes.
Todos
os nomes
é a história de uma idéia que cresce alimentada por um grão de acaso e engorda
até ganhar a forma de uma pequena obsessão. É a idéia que tem o Sr. José de
enriquecer o seu particular acervo de biografias famosas com as informações
oficiais contidas nos registros de nascimento da Conservatória Geral. E porque
mora no prédio mesmo onde trabalha, numa espécie de alojamento contíguo para
funcionários, e porque percebe que tem à sua disposição, à distância de apenas
uma porta, todos os dados de que necessita, anda o Sr. José a violar seriamente
o regulamento interno, perambulando pelos corredores da Conservatória durante
as madrugadas, realizando pesquisas clandestinas na calada da noite e copiando
nomes, locais e datas de nascimento. Quando está para completar, enfim, a sua
pequena coleção de pessoas célebres, o acaso lhe aparece sob a forma de uma
ficha, saída por engano do arquivo dos vivos.
Todos
os nomes
é o acaso a gerar mais acaso e a produzir a ilusão de que não mais de acaso se
está a falar, porém de destino. Todos os
nomes é o eco do grito cego que se escuta no Ensaio sobre a cegueira. Cegos sem nome a querer enxergar destino
onde não há nada senão o mesmo acaso de sempre, a querer ver sentido onde não
há outra coisa a não ser a mesma falta de sentido a nos arrancar fora a razão e
o sono. Em ambos os livros a mesma idéia, o mesmo diálogo de cegos onde cada palavra
tem a sina de ser a única possível. Em
Todos os nomes: o nome que nos deram não é aquele que na verdade temos. No Ensaio: o nome que na verdade temos, em
verdade vos digo, não existe, porque o que somos não tem nome. Todos os nomes é uma resposta ao que diz
o único fragmento restante do inexistente Livro dos Conselhos, especialmente
inventado para servir de epígrafe ao Ensaio
sobre a cegueira: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. E o que vemos
é aquilo que somos: o inominável a gritar por um nome.
1ª
sugestão de trecho
“Cresceu com este episódio o
desleixo, prosperou o abandono, multiplicou-se a incerteza, a ponto de um dia
se ter perdido nas labirínticas catacumbas do arquivo dos mortos um
investigador que (...) se apresentou na Conservatória Geral para efectuar umas
pesquisas heráldicas que lhe haviam sido encomendadas. Foi descoberto, quase
por milagre, ao cabo de uma semana, faminto, sedento, exausto, delirante, só
sobrevivo graças ao desesperado recurso de ingerir enormes quantidades de
papéis velhos que, não precisando de ser mastigados porque se desfaziam na
boca, não duravam no estômago nem alimentavam.”
2ª
sugestão de trecho
“Além do nome próprio de José, o Sr.
José também tem apelidos, dos mais correntes, sem extravagâncias onomásticas,
um do lado do pai, outro do lado da mãe, segundo o normal, legitimamente
transmitidos, como poderíamos comprovar no registo de nascimento existente na
Conservatória se a substância do caso justificasse o interesse e se o resultado
da averiguação pagasse o trabalho de confirmar o que já se sabe. No entanto,
por algum desconhecido motivo, se é que não decorre simplesmente da
insignificância da personagem, quando ao Sr. José se lhe pergunta como se
chama, ou quando as circunstâncias lhe exigem que se apresente, Sou Fulano de
Tal, nunca lhe serviu de nada pronunciar o nome completo, uma vez que os
interlocutores só retêm na memória a primeira palavra dele, José...”
3ª
sugestão de trecho
“É bem possível que uma consciência
subitamente mais inquieta da presença da Conservatória Geral do outro lado da
grossa parede, aquelas enormes prateleiras carregadas de vivos e de mortos, a
pequena e pálida lâmpada suspensa do tecto por cima da mesa do conservador,
acesa todo o dia e toda a noite, as trevas espessas que tapavam os corredores
entre as estantes, a escuridão abissal que reinava ao fundo da nave, a solidão,
o silêncio, é possível que tudo isto, num instante, (...) o tivesse feito
perceber que algo de fundamental estava a faltar às suas colecções, isto é, a
origem, a raiz, a procedência, por outras palavras, o simples registo de
nascimento das pessoas famosas cujas notícias de vida pública se dedicara a
compilar.”
4ª
sugestão de trecho
“A meio do caminho, de súbito,
parou, É curioso, não me lembro se é de homem ou de mulher o verbete que veio
pegado. (...) O verbete é de uma mulher de trinta e seis anos, nascida naquela
mesma cidade, e dele constam dois averbamentos, um de casamento, outro de
divórcio. Como este verbete há de certeza centenas no ficheiro, senão milhares,
portanto não se compreende por que estará o Sr. José a olhar para ele com uma
expressão tão estranha, que à primeira vista parece atenta, mas que é também
vaga e inquieta, possivelmente é este o modo de olhar de quem, aos poucos, sem
desejo nem recusa, se vai desprendendo de algo e ainda não vê aonde poderá
deitar a mão para tornar a segurar-se.”