"Pulsões da alma sem retoques — Kazantzákis mistura prosa poética
e exercícios espirituais para falar da fé e de prisões que libertam", Caderno Idéias, Jornal
do Brasil, Rio de Janeiro, 17 de maio de 1997.
Resenha sobre o livro Ascese, de Nikos Kazantzákis, ed. Ática, introdução e
notas de José Paulo Paes.
Este é um pequeno grande livro. É um tratado filosófico e um exercício, teoria e prática; uma ficção de versículos numa prosa sem história, com personagens abstratos, metáforas e animismos; um poema em prosa poética; uma voz de mestre a suscitar em ti, leitor-discípulo, o ânimo necessário para assuntarem, juntos, graves quesitos relativos à existência de Deus, à existência da própria voz que suscita; deste que lê e mesmo deste que aqui escreve.
A narrativa de Ascese, Os salvadores de Deus, do cretense Nikos Kazantzákis (Alexis Zorba, O pobre de Assis, A última tentação), não emparelha com a dos tratados filosóficos convencionais — escritos com a temperança do pensador que se põe a salvo no conforto do método científico —, mas sim com a pujança e a exclamatividade dançante de textos como Assim falava Zaratustra e A origem da tragédia, de Nietzsche, livros que traduziu, juntamente com O riso, de Bergson; A divina comédia, de Dante; o Fausto, de Goethe; além da Ilíada e da Odisséia, de Homero, estas últimas, traduções dentro do idioma grego, do arcaico para o moderno.
A identificação do assunto-cerne desta singular “peça” literária — belamente traduzida e apresentada por José Paulo Paes — principia pelo título. “Ascese” é palavra grega que designa “exercício”. Sobreviveu à areia do tempo e ainda tange em seu sentido primeiro: conjunto de práticas que apontam para um crescimento espiritual rumo a uma espécie de libertação, cuja essência está na união indissolúvel com Deus, que é a mesma coisa que o leite, o sangue e o pus, o inseto e a mais singela idéia — “Joelhos encostados no queixo, (...) sentado de cócoras, feito uma bola, Deus está encerrado dentro de cada partícula de carne”.
Encerrado e ferido, este Deus, já desenfeitado da expressão plácida e altiva que outros tempos e outros povos Lhe atribuíram, sem as certezas e bondades que julgamos possuísse, este Deus, que tem esse nome “porque só esse nome comove, desde tempos imemoriais, nossas entranhas até o fundo”, este Deus grita por socorro, carece do homem na exata medida em que carecemos Dele. E a voz narrativa de Ascese convoca-nos a todos, seres moventes e vegetais, para uma luta inglória — contra a estagnação e o conformismo, pela libertação, terrena e divina.
Deus berra e quer brigar. Mas Sua natureza não é onipotente o bastante para que baixemos as armas e O deixemos, a Ele, ao deus-dará. Deus não dará; quer receber; “não se importa nem com seres humanos nem com animais, muito menos com virtudes ou idéias. Ama-os por um instante, esmaga-os para sempre e segue adiante”. Sua natureza não é bondosa, não é onisciente, sequer salvadora é; porém pasmada na exata medida em que pasmados estamos diante do caos. Verdadeiros salvadores de Deus seremos se cumprirmos, heroicamente, nossa missão, possivelmente impossível, de lutar e tombar; tombar e entregar a lança ao vizinho.
Propondo uma espécie de “infiltração” entre natureza humana e divina — proposta que prescinde de uma religião organizada em dogmas e pressupostos salvacionistas, protagonizada por um Deus que “concebe, fecunda e mata”, não redime, não ajuda quem cedo se levanta, não tem identidade estática e que não é nada sem a ajuda do homem —, não é estranho imaginar que Kazantzákis tenha enfrentado problemas com a Igreja Ortodoxa de Atenas. Considerado um “inimigo da fé”, recusaram-lhe enterro com direito a padre oficial. Foi sepultado onde nasceu: Heráklion, capital de Creta. Seu auto-epitáfio é um eco do que pensava e sentia acerca do sentido da vida e da falta de sentido da morte: “Não temo nada. Não espero nada. Sou livre”.
“Pegamos uma tocha e corremos. Por um instante, nosso rosto se ilumina, mas prontamente passamos a lanterna a nosso filho e em seguida sumimos no Hades.” Lá, entre rochedos, fogo e ranger de dentes, tropeçamos na pedra de Sísifo e aprendemos mais sobre a natureza intérmina das batalhas, as verdadeiramente grandes. Kazantzákis contorna, em Ascese, a silhueta do herói, o que avança descalço sobre os limites da própria humanidade, se equilibra sem medo no olho do furacão e, de pé, balança a cabeça, a dizer sim para o sofrimento do mundo e seu terrível engano. O próximo passo é a dança; e dançando Sísifo refaz seu eterno retorno ao rochedo, para, mais uma vez, e mais outra, (re)carregar ao topo sua pedra e sua danação. A pedra, ao fim e ao cabo, rola para baixo, e o castigado desce — para novamente subir. Camus, em O mito de Sísifo (o título original, Le mythe de Sisyphe, forma uma bela homofonia com O mito decisivo), considera o momento da descida crucial para o bom entendimento da natureza absurda de seu herói. É descendo que Sísifo se toca de sua desgraça. Neste sentido, a consciência de seu tormento o faz superior ao próprio destino. Tivesse ele a esperança, mesmo mínima, de que seu trabalho teria algum fim, sua condição não seria trágica por excelência.
É aqui, na consciência ardida do absurdo, que Ascese se nos apresenta como algo mais que mero exercício místico-contemplativo. O guerreiro de Kazantzákis, com sua luta incerta pela salvação de Deus, e Sísifo — “proletário dos deuses”, pedreiro dos pedreiros — adquirem uma identidade palpável e atual. Podemos estar falando da classe operária de hoje e de ontem, a entregar-se em todos os dias de sua vida a uma tarefa que não é sua nem tem sentido senão nela mesma, quando tem — absurda portanto. Podemos estar falando também de outras coisas, como deste outro grito de guerra: “Não há nada a fazer, mas nós o faremos”, que não é de Kazantzákis, nem de Deus; é de Hemingway, e bem poderia ser de todos nós.