23 de janeiro de 2011

"Almazinha brasileira: modos de ser", O Povo

“Almazinha brasileira: modos de ser”, Jornal O Povo, Fortaleza, 23 de janeiro de 2011, p. 7. [1]

É das boas ideias da literatura brasileira a criação de uma almazinha que sobrevoe as inúmeras histórias que compõem um romance e não se identifique de modo restrito com nenhum personagem; antes, de maneiras diversas, consiga ser cada um deles e ao mesmo tempo não ser nenhum, sendo essa almazinha apenas ela mesma, igual a si mesma, de algum modo única e sozinha. A almazinha que surge às primeiras páginas do romance Viva o povo brasileiro, do escritor João Ubaldo Ribeiro, que faz, neste dia 23 de janeiro, 70 anos, atravessa três séculos e algumas gerações, sempre a encarnar em pobres-diabos, índios tupinambás, negrinhas escravas maltratadas ou ainda soldados brasileiros mortos na flor da idade, como foi o caso do pescador e alferes José Francisco Brandão Galvão.

O jovem, atingido pelas balas de algumas embarcações portuguesas, cai morto no cais da Ponta das Baleias, na Baía de Todos os Santos, com um olho furado e o crânio em pedaços. Mas José Francisco, alferes menos por nomeação de patente e mais por assim o chamarem, graças às palavras de amor à pátria que teria supostamente proferido à hora da morte e que somente as gaivotas escutaram, tornou-se, da noite para o dia, um herói da independência, e seu discurso inaudito, peça fervorosamente homenageada, repetida e parodiada em versos e quadrinhas.

Neste dia de 1822, a almazinha que habitava o corpo do alferes um segundo antes do passamento afinal se despega, às carreiras, e sobe mais uma vez aos céus, aboletando-se no lugar onde se aboletam as almas enquanto esperam pelo momento de mais uma vez poderem descer e encarnar nalgum bicho ou homem ou mesmo numa planta. Permanecendo almas, as almas não aprendem nada; encarnando em bicho, homem ou planta, aprendem as razões da vida. As almas precisam ser, e cada encarnação de uma alma é um modo de ser. E é essa almazinha brasileira que acaba por ser, ao fim e ao cabo, a mais constante protagonista do caudaloso romance de João Ubaldo. Ela entra e sai das histórias mais diversas, através de encarnações e desencarnações que partem do século XVII e chegam ao XX — quatro séculos de sofrimentos, tiranias, humilhações, festas e superações —, para compor a eloquente amostra de alguns específicos modos de ser brasileiro. Quais modos de ser?

Do entrelaçamento de todas as histórias do livro e dos cruzamentos familiares verificados ao longo de tantas décadas destacam-se, do quadro ficcional, três personagens, analisados pela professora Eneida Leal Cunha, na sua tese Estampas do imaginário — literatura, cultura, história e identidade (Dep. Letras, PUC-Rio, Rio de Janeiro, 1993): um pescador, o José Francisco, que a posteridade somente reconhece como o heroico alferes Brandão Galvão; um índio, que chamam de Capiroba; e ainda uma mulher, bandida, de nome Maria da Fé. Os três personagens carregam por toda a vida, habitando-lhes as entranhas, a almazinha brasileira que constitui o ser do romance; e carregam também, agora nos ombros, a responsabilidade de constituírem, cada um à sua maneira, uma tentativa de representação da assim chamada identidade nacional.

O jovem alferes Brandão Galvão — bem menos presente na história do que os outros dois, e justamente por isso, ou seja, por sua vida curta e seu heroísmo precoce — encarnará, com o famoso discurso às gaivotas, a ideia do patriotismo vazio, e silencioso, que atravessa o imaginário brasileiro, do povo às elites. O “caboco” Capiroba, índio tupinambá, habitante da ilha de Itaparica pelos idos de 1647, canibal de gosto exigente e profundo apreciador da carne holandesa, transforma-se, com a sua eloquente presença, na possibilidade de se poder ouvir uma voz que resta sempre silenciada nos relatos da história oficial: a voz do índio em processo de catequização. E transforma-se também — porque o centro da ação, aqui, é a catequese que teve de ser levada a cabo e à força, uma vez que o índio não se submeteu à conversão — no produto, levado às últimas consequências antropofágicas, do que lhe haviam ensinado os padres jesuítas com a celebração da Eucaristia.

A terceira principal encarnação da almazinha brasileira recairá sobre uma mulher: a jovem guerrilheira Maria da Fé — personagem possuidora da mais poderosa biografia do livro, tamanha a variedade cultural e étnica de suas ascendências. Como observou Eneida Leal, ao contrário de Brandão Galvão e de Capiroba, Maria da Fé não constitui uma recriação a partir de nenhum modelo já consagrado na história oficial, tal como o são o jovem soldado herói e o selvagem canibal que precisa da catequese para encontrar a civilidade, e depois a salvação, em Deus. Maria da Fé, pura criação ficcional, parece constituir uma vontade do autor de que seja ela, das três, a mais apropriada encarnação da alma do povo brasileiro — almazinha inquieta e indecisa, é verdade, mas possuidora de um grande desejo de ser.

E é por isso, e por outras tantas razões, que o título Viva o povo brasileiro deve ser lido não como uma exclamação — que não é —, mas como a manifestação deste desejo: o desejo de que um povo viva e permaneça; ou, ainda, como uma exortação: que se viva o povo brasileiro, ou seja, que se experimentem e se conheçam este povo e os seus diversos modos de ser. Vivamos este povo brasileiro, o que não deixa de ser una forma de se viver e conhecer, também, e de forma poderosa, o escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro.


1 de janeiro de 2011

“Ensaio de uma carta a Lima Barreto”

“Ensaio de uma carta a Lima Barreto”, Navegações, Porto Alegre, v. 4, n. 1, jan. / jun. 2011, p. 115-122 (primeira página). (ISSN: 1982-8527)
Caro senhor Lima Barreto,
Fosse eu um leitor à época em que saiu em jornal a série de reportagens acerca dos mistérios subterrâneos do Morro do Castelo, local que abrigava uma igreja, o convento dos capuchinhos e o antigo colégio dos jesuítas — fosse eu um leitor, estaria confuso e desejoso de lhe pedir esclarecimentos; ao senhor, sim, que pela matéria se responsabilizou, e também ao Correio da Manhã, que o publicou por vinte e seis dias e o encarregou de tornar públicos os acontecimentos. Hoje sabemos tratar-se do senhor, graças não às reportagens em si, que não eram assinadas, mas à inserção de uma historieta supostamente acontecida dois séculos antes e ligada intimamente aos tais trevosos subterrâneos do Morro do Castelo. Como leitor nada mais que preocupado em ser informado e levemente divertido através de doses diárias de factualidades e ficcionalidades, diria ao senhor que não se pega um sujeito pela mão e depois se o abandona assim, deixando-o ao deus-dará e com uma, ou melhor, duas histórias incompletas e bruscamente interrompidas por um final súbito a lhe espetar a curiosidade. Li-o e deduzo que o senhor é melhor contador de histórias que relator de factos, embora eu já não saiba mais, a esta altura, dos limites entre uma intenção e outra.[1] Creio que também já não o saiba o senhor, tão imbricadas estão as duas narrativas em suas reportagens. Sendo ou não o caso, uma vez que já faz tanto tempo e o senhor talvez não se lembre de mais nada, vou recapitular, acreditando que, ao fazê-lo, talvez acabe eu também por organizar o que desordenado restou.

Aos vinte e oito de Abril do ano da graça de 1905 de nossa era, uma sexta-feira, o senhor abriu os trabalhos de sua série no Correio da Manhã, refrescando a memória dos leitores. Seu primeiro texto volta no tempo e relembra antigas reportagens em que a lenda dos subterrâneos foi, digamos, trazida à tona. O autor, um sujeito chamado José da Rocha Leão, vulgo Léo Junius, faz um histórico do tema, dizendo serem as tais galerias subterrâneas obra de jesuítas que lá ocultaram as riquezas da Ordem, à época ameaçadas de confisco pelo temidíssimo Marquês de Pombal, que, segundo consta, não gostava de padres. O senhor em nenhum momento toma partido da cientificidade ou não do assunto; apenas admite a sua relevância, como facto ou ficto, e atesta a sua permanência na imaginação popular ao fio de anos. O senhor ainda faz o obséquio de situar os seus leitores na linha da história, iluminando-os com factos: a Ordem dos Jesuítas foi fundada em 1539[2] por Inácio de Loyola, e desde então só fizeram os padres acumular riquezas, trazidas, sabe lá Deus como, de vários rincões do planeta. Os padres, do mesmo modo como iam chegando, também se iam expulsos — isto sem falar nos confiscos e em toda a sorte de perseguições. No ano de 1759, foram postos a chute para fora de Portugal, a mando de D. José I, que era quem mandava no Marquês, e, uma vez no Rio de Janeiro, preocupados com os haveres, esconderam, segundo as histórias, grande parte do ouro e também uma fabulosa biblioteca nos subsolos do Morro do Castelo, debaixo das fundações do convento. Isto tudo correu à boca pequena dos catadores de ruínas e à boca grande dos incipientes capitalistas, que, juntos, cavaram e cavaram, mas dali nada resultou e o assunto restou empoeirado. Tais factos o senhor gentilmente recapitula para nos deixar informados e preparados para entender e posteriormente nos deixar capturar por sua retórica convincente e seu magnético estilo, informal e conversadeiro, embora ainda bastante descuidado. E então o senhor, em sua crónica de estreia, anuncia a boa nova: no dia 27 de Abril desse ano de 1905 (na esteira do governo do prefeito Pereira Passos, o galófilo desmontador de cortiços, iluminador de cidades e aumentador de passeios públicos), portanto um dia antes da sua reportagem e em meio às obras de limpeza da área para a construção da Avenida Central, o trabalhador Nelson (até o nome dele o senhor sabe; o senhor é bom repórter, o senhor inventa bem), o tal Nelson descobriu com uma picaretada uma região oca — era uma galeria. Chamaram o doutor Dutra, um dos engenheiros responsáveis, e o profissional verificou as dimensões do achado: 1,60m de altura por 0,50m de largura. Já era alguma coisa — o suficiente para retirar de seus gabinetes o senhor ministro da Fazenda e o doutor Frontin, Paulo de Frontin, o encarregado da construção da Avenida. O senhor aproveita esta preciosíssima oportunidade para deixar nua a ganância de nossos homens públicos, agora aliás absolutamente convictos da existência de um continente de tesouros por debaixo do Morro do Castelo, e também desejar as melhores sortes ao doutor Dutra, que, afinal, passa a ter a sua missão aumentada: de engenheiro responsável para caçador de tesouros. Sua reportagem deste dia não pára aqui; pára mais além, um pouco depois de o senhor atiçar com mais lenha este fogaréu que neste dia se inicia. Não apenas este, diz o senhor, citando o doutor Rocha Leão, aquele que tem o pseudónimo de Léo Junius, mas vários subterrâneos esta cidade ainda esconde — na Chácara da Floresta, “que termina no local onde foi o Theatro Phenix; um outro que, partindo da praia de Santa Luzia, vai terminar num ângulo da sacristia da Igreja Nova. Ainda outro, partindo também da Santa Luzia, termina num pátio, em frente à cozinha da Santa Casa de Misericórdia” (Barreto, 1999: p. 22), e outros e outros, inclusive alguns que apontam para fora da cidade, para as minas de ouro e prata do Amazonas. Após tantas promessas de reportagens e pesquisas futuras o senhor simplesmente se retira e desconstrói todo este sonho com uma tirada irónica, para que afinal nós não pensemos que o jornalista que para nós escreve está simplesmente a engolir tanta fabulice sem qualquer digestão. O senhor chama todo o assunto dos tesouros subterrâneos de literatura fantástica e coisa de maluco — ou seja, o senhor, com este toque final, reforça a sua confiabilidade, deixando claro para os seus leitores que a prevalência, aqui, será a do facto, e não do ficto, embora todos saibamos que isto não será bem assim.

Sua reportagem do dia seguinte, 29 de Abril, apenas dá conta da continuação dos trabalhos, agora completamente orientados para a descoberta de mais galerias, e de alguns diálogos transcritos, com todas as letras, entre o senhor e o doutor Dutra, acerca de detalhes escavatícios. Sua imaginação, senhor Lima, esquenta quando se depara com uma outra galeria, um pouco maior que a primeira. Vou citá-lo:

“Esta é alta, de 1 metro e 90 centímetros,[3] com cerca de 80 centímetros de largura; no interior operários retiravam o barro mole e pegajoso, atolados no lameiro até o meio das canelas. Ao fundo bruxuleava uma luzinha dúbia, posta ali para facilitar a desobstrução do subterrâneo.

Um cenário tétrico de dramalhão (1999: p. 25).”

Seu texto termina com a menção à curiosidade pública, esta terrível curiosidade pública que faz com que as pessoas se avolumem à porta dos eventos e se acotovelem atrás de notícia. O senhor chama este povo todo de “a multidão sonhadora e desocupada” (1999: p. 27). Não são estes os seus leitores; os seus leitores são outros e estão ocupadíssimos na leitura dos jornais e das reportagens, bastante ricas historicamente, sobre os tesouros do Morro do Castelo. Sua reportagem deste dia ainda expõe mais um dado histórico sobre escavações malsucedidas — desta vez envolvendo a pessoa do Barão de Drummond, que não apenas inventou o chamado “Jogo do Bicho” mas tentou pagar as suas posteriores dívidas com o tesouro alheio, que supunha estar sepultado no Morro do Castelo e que não conseguiu encontrar.

Sua coluna da semana seguinte, terça-feira, 2 de Maio, é bastante animadora. E a sua animação está na fina ironia com que o senhor vai tratando não apenas do assunto em si, no qual o senhor absolutamente não acredita, mas também dos personagens envolvidos, que o seu texto pinta com as cores da caricatura e do desdém. Cito, encantado, este trecho:

“Se o ouro ainda não refulgiu ao golpe explorador da picareta, um modesto som metálico já se fez ouvir, eriçando os cabelos dos novos bandeirantes e dando-lhes à espinha o frio solene das grande ocasiões; som feio e inarmônico de ferro velho, contudo som animador que faz pregoar orquestrações de barras de ouro, cruzados do tempo de D. João VI, pedrarias policrômicas, raras baixelas de repastos régios, tudo isto desmoronando-se, rolando vertiginosamente como o cascalho humilde pelo talude escarpado da montanha predestinada (1999: p. 29).”

O senhor não brinca em serviço e aproveita para dar uma espetadela na santíssima Ordem dos discípulos de Loyola e em toda a sua tradição de pilhérias, torturas e assassinatos em nome do Altíssimo. A suspeita de haver tesouros escondidos no Morro do Castelo tornou-se uma preciosa oportunidade de o senhor, por sua vez, também levantar suspeitas sobre a Ordem e as ordens estabelecidas, como foi o caso da presença, ironicamente documentada em suas colunas, do senhor presidente da República nos subsolos jesuítas, “acompanhado da casa civil e militar, do Dr. Frontin e de outras pessoas gratas (gratas, sr. revisor!)” (1999: p. 30). Mais uma vez parabenizo-lhe por aproveitar a deixa e mencionar o que usualmente não se menciona em meio às euforias populares provocadas pelos assuntos do dia que apenas alienam — como é certamente o caso da boataria envolvendo o tesouro dos padres — as nossas crises económicas, políticas, sociais e... morais.

No dia seguinte, 3 de Maio, o senhor dá à luz mais uma descoberta. Seu estilo se vai tornando mais irónico e ferino. Já chama a nossa cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro de Sebastianópolis, sem dúvida um achado, e o Morro do Castelo o senhor já o trata por tu, recorrendo ao bom e velho animismo antropomórfico de grau escatológico. Veja-se este trecho, em que o senhor só faltou mesmo falar em intestinos:

“Na sua mudez de catacumbas seculares, os subterrâneos do Castelo bem serviriam para guardar os tesouros da Ordem mais rica do mundo e ainda os guardam certamente.

Mas agora chegou o tempo de quebrar o segredo de sua riqueza e ser espoliado de seu olímpico depósito.

O homem já se não contenta em querer escalar o céu, quer também descer ao coração da terra e não poderá o morro do Castelo embaraçar-lhe a ação.

Há de rasgar-se, há de mostrar o labirinto de suas acidentadas galerias e há de espirrar para fora os milhões que vêm pulverizando numa digestão secular.

Um dia destes foi num dos flancos que se abriu a boca silenciosa de um corredor escuro que os homens interrogam entre curiosos e assustados; hoje é a própria cripta do morro que se parte como a querer bradar para o céu o seu protesto contra a irreverência e avidez dos homens! (1999: p. 33).”

Percebi que nesta sua reportagem de quarta-feira, 3 de Maio, o senhor usou escancaradamente de um artifício típico do folhetim que o senhor está a praticar com esta série de reportagens. Começou o texto falando de mais uma descoberta, depois deu uma volta no leitor, abordou outros assuntos, tratou o Morro por tu, falou da ganância dos homens, “encheu linguiça”, em suma, e só foi retornar com o assunto principal quando a sua reportagem se aproximava do fim. E mesmo assim o senhor nem chega a desenvolver nada, mantendo tudo no mistério e transferindo o mesmo “tudo” para o dia seguinte. Releiamos o trecho final:

“Foi ontem; uma turma explorava o dorso imoto do morro; súbito a ponta da picareta de um operário bate num vazio e some-se... [O senhor já havia usado desta imagem antes...]

A boca negra de um outro subterrâneo escancarava-se.

Pensam uns que é a entrada, arteiramente disfarçada, de uma outra galeria; opinam outros que é simples ventilador dos corredores ocultos.

Seja o que for, porém, a coisa é verdadeira, lá está a 8 metros abaixo do solo emparedada a tijolo velho (1999: p. 34).”

Eu acho que nem caberá mais aqui chamar estas sua crónicas subterrâneas de reportagens, uma vez que o senhor vai ficando, a cada avanço desta novela, menos e menos objectivo.[4]

Nesta quinta-feira, 4 de Maio, o senhor tem a sua grande ideia. Reporta um encontro ao pé do Morro com um senhor rodeado de gente curiosa: “... um senhor alto de bigodes grisalhos e grandes olhos penetrantes, cuja voz pausada e forte atrai a atenção de toda a gente” (1999: p. 36). O senhor até o compara a um oráculo, tão forte a impressão que lhe deixou o homem alto. E pronto, está aqui uma descrição romanesca típica; está aqui a preparação de um personagem que deverá apresentar-se confiável e sério, e permanecer confiável e sério até ao fim, pois irá constituir a fonte a partir da qual sairá, quentinha, a sua segunda narrativa. Este senhor, de nome Coelho, relata-lhe histórias sobre o Morro, fala-lhe de mapas e documentos raríssimos que possui em casa e segreda-lhe que as buscas se orientam erradamente. Diz ele:

“— ... O verdadeiro depósito dos tesouros, onde se encontram arcas de ferro abarrotadas de ouro e pedras finas, acha-se a 430 metros do sopé do morro; aí o ar é quase irrespirável em vista das exalações sulfúricas; é mesmo de crer que o morro não seja mais que o tampo de um vulcão. De tudo isso há documentos irrefutáveis e não só referentes ao Castelo como aos demais subterrâneos, quais os da ilha do Raimundo, próxima à do Governador, e da Fazenda de Santa Cruz e tantos outros que minam a velha cidade de Mem de Sá.

— E o cavalheiro pode me dar alguns apontamentos a respeito?

— Com prazer; o meu maior desejo é elucidar todos os pontos desta interessante história para que o governo não esteja a perder tempo e dinheiro com buscas fatalmente improfícuas.

— Neste caso...

— Apareça em minha residência; mostrar-lhe-ei os documentos (1999: p. 37-38).”

Senhor Lima, o senhor não apenas foi até à casa do sujeito — “... um homem de espírito cultivado e arguto conhecedor do assunto” (1999: p. 39), que o senhor a partir deste ponto vai passar a chamar: o senhor alto de bigodes grisalhos e olhar penetrante —, o senhor não apenas foi até lá, como ouviu a sua história, leu os seus documentos e recolheu material suficiente para nos presentear com uma arrebatadora e sanguinolenta história de amor.

Vamos então aos prolegómenos: segundo o seu “homem de olhar penetrante”, os jesuítas, precavidos que eram e bastante ciosos de toda a pilhéria que empreenderam por mares e costados afora, construíram nos subsolos do Morro do Castelo galerias de esgoto e também caminhos subterrâneos para eventuais fugas — além, é claro, de gigantescas salas para o depósito de riquezas, em caso emergencial. Os padres eram donos de quase todo o Rio de Janeiro. Aos dez dias do mês de Maio de 1710, a cidade foi invadida por uma expedição pirata comandada um sujeito muito galante chamado João Francisco Duclerc, que, durante a sua permanência no Rio, morre tragicamente. Os padres, que conhecem bem os piratas, prevendo uma expedição futura destinada a vingar a horrenda morte de seu chefe, o Duclerc, escondem tudo o que possuem, utilizando para a empreitada as tais salas subterrâneas exactamente para tais casos construídas. O inventário das riquezas está numa ata jesuíta escrita em latim (1999: p. 45-46), que o senhor, generoso, traduziu para os leitores, especialmente para o Correio da Manhã. Os padres foram mais tarde, em 1759, expulsos de suas fortificações e presos, a mando do Marquês de Pombal, que não era flor que se cheirasse, e nunca tiveram a oportunidade de reaver os seus bens, que lá embaixo, segundo o seu “homem de olhar penetrante e bigodes grisalhos”, ainda devem estar, de acordo com a seguinte topografia:

“Estes, os que conduzem ao lugar do tesouro, são em número de quatro, construídos na direção dos pontos cardeais.

Vão ter a um vasto salão de forma quadrada e abobadado, que por sua vez tem comunicação com o Colégio por meio de escadas em espiral abertas no interior das paredes.

Esta sala fica inscrita a um largo fosso onde vão ter, antes de a elas chegar, as quatro galerias.

Duas grossas paredes dividem em quatro compartimentos a referida sala.

Em um deles acham-se os cofres de moedas de ouro e prata, os cofres de ouro em pó, as imagens de S. Inácio, S. Sebastião, S. José e a da Virgem, todas de ouro maciço e grande quantidade de objetos de culto católico.

Em outra divisão se encontram as arcas com diamantes e pedras preciosas e numerosas barras de ouro.

As duas restantes contêm os instrumentos de suplício, a riquíssima biblioteca dos padres, as alfaias e uma mobília completa de mármore, assim como todos os papéis referentes à Ordem no Brasil e que se acham guardados em grandes armários de ferro (1999: p. 50-51).”

Afora toda esta narrativa, que, apesar de fantástica, ainda consegue manter em seus episódios um certo ar de respeitabilidade histórica, com datas e documentos razoavelmente comprobatórios e uma certa conexão com a realidade das reportagens[5], o senhor nos atira à cara, na edição de Domingo, justamente na edição de Domingo, dia santo e de descanso, uma revelação encarnatória, segundo a qual o senhor Paulo de Frontin, que depois até virou nome de viaduto, mas isso foi bem depois, senhor Lima, o senhor já não era mais vivo... Eu não vou falar do futuro, sob o perigo de o senhor cair deprimido. Deixemos estar. O senhor Paulo de Frontin, segundo o seu homem de bigodes penetrantes e olhos grisalhos, se não estou a inverter as qualidades, tem em si encarnado o Marquês de Pombal, ou seja, baixou no senhor Paulo de Frontin o espírito do Pombal e nele ficou para sempre encarnado. Não vou deter-me nesta história, vou apenas dizer que o senhor já começa a abusar da credulidade de seus leitores.[6] O final de sua edição de Domingo é um chamamento de volta à realidade municipal, onde o senhor dá conta dos últimos acontecimentos escavatórios.

Na segunda feira, dia 8 de Maio, o senhor dá início à sua história dentro da história. Muito habilmente vai desencavá-la dos documentos mofados do seu homem de cabelos penetrantes e gestos grisalhos. Vou citá-lo:

“Entre os preciosos documentos pertencentes ao nosso precioso informante, e de cujo conteúdo temos transmitido aos leitores a parte de que ele não faz absoluto segredo, ressaltam algumas narrativas da época, sobre casos de que foram teatro os subterrâneos do morro do Castelo, narrativas estas que, pelo seu requintado sabor romântico, bem merecem a atenção do público carioca, atualmente absorvido em conhecer nos mínimos detalhes a história daquela época legendária (1999: p. 58).”

O senhor habilmente não fala em veracidade, e nem poderia, pois a sua função seria relatar os factos, e quais são os factos? O senhor descobriu em casa de um homem em quem o senhor confia um manuscrito que conta uma história. Ponto final. E quem haverá de negar? Há um escritor italiano que o senhor não conhece, chamado Umberto Eco, que fez coisa semelhante com um romance. A partir da leitura do manuscrito de um homem que conta uma história, o narrador do romance irá contar a história da história. O romance de que falo chama-se O nome da rosa e passa-se na Idade Média. Senhor Lima, o senhor deveria arranjar um meio de conseguir ler este livro, de preferência em seu original italiano, língua que o senhor parece dominar, como pude perceber por sua tradução da história manuscrita encontrada na casa de seu homem confiável, composta em italiano do séc. XVIII. Vamos, pois, a ela, resumidamente, e comecemos pelo pequeno título.


“D. Garça
ou
o que se passou em meados do séc. XVIII,
nos subterrâneos dos padres da Companhia de Jesus,
na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, a mui heroica,
por ocasião da primeira invasão dos franceses a mando de Clerc[7]

A história narra a sorte, a má sorte, de Alda de Lambertini, uma condessa italiana da família dos Médicis, raptada de um palácio em Florença para acabar num claustro jesuíta. Dá-se isto em 1709, quando o Rio não passava de uma cidadela mal iluminada por velas aqui e ali e as ruas eram corredores que davam em nada de tão escuros e tenebrosos. Poucos se aventuravam à noite, e os poucos que se atreviam estavam certamente movidos por escusos motivos. D. Alda era conhecida como D. Garça porque tinha canelas finas e era frágil, delgada, esguia, branca e bela. Transcrevo a sua muito boa descrição.

“De pé ela era como um frágil caniço. Delgada, esguia, nem a elevação dos seios lhe quebrava a unidade da linha. Por todo o seu corpo, não havia interrupções ou soldagens de partes: era feita de um só traço. Vestia de branco; e as cânulas do cabeção em leque, erguido atrás da nuca, eram como as pétalas de uma dália extravagante, sua cabeça de traços regulares figurava como um disforme pistilo imprevisto.

Movia-se lentamente, levemente como uma cegonha nos banhados.

Quer na rua, quer em casa, vestia-se com rigor.

Era sempre branco o corpete e, aberto triangularmente no colo, permitia entrever a opala de sua pele. O resto do corpo ficava-lhe envolvido no abundante panejamento do vestuário da época.

Os cabelos negros, longe de trazê-los à moda do tempo, repartia-os ao meio da testa, e empastando-os à esquerda e à direita, deixava-os cair sobre as orelhas, unindo-os nas costas em novelo... (1999: p. 67-68)[8]

Esta fantástica criatura, depois que chegou da Itália, foi casada, por conveniência, com um almoxarife do paiol da alfândega, de nome Martim Gonçalves Albernaz, que não passava de um ébrio. O facto é que D. Garça o traía com nada mais nada menos que um... jesuíta! Antes de ser jesuíta, porque nada neste seu folhetim é aquilo que aparenta, tudo tem uma segunda cara, uma segunda história, uns mistérios suspensos que o senhor vai liberando aos pouquinhos, como convém ao género — antes de ser jesuíta, então, o sujeito era o Marquês de Fressenec, vulgo Jean, que largou a sua vida devassa na França, se submeteu aos quatro votos quase impossíveis por que têm de passar aqueles que jesuítas querem vir a ser e foi admitido na Ordem de Jesus sob o nome de padre João de Jouquières. O padre João era na verdade um privilegiado, pois tinha uma permissão superior, expedida pelo padre Geral, de poder experimentar “as grosserias do mundo”, era este o termo. O antigo Marquês de Fressenec, no entanto, só veio a ser padre para estar junto de sua amada, a condessa Alda. Por ela ele de tudo abdicou, inclusive de sua nobreza, em nome de uma vida de privações e rotinas rígidas, a excepção apenas de sua singular permissão, a permissão para poder experimentar as tais grosserias do mundo — ou seja, a permissão para atravessar subterraneamente a cidade, durante a calada da noite e pelos caminhos secretos dos padres, e chegar, por uma entrada na parede, ao fundo do armário de roupas do quarto da condessa, e então, juntos, condessa e ex-marquês, entregarem-se de corpo e alma às delicadas grosserias deste mundo cão.

Tudo ia muito bem, até que dois acontecimentos abalam — porque alguma coisa afinal tem de ser abalada para que este tipo de história funcione —; dois episódios abalam a pacatíssima vida do padre João: a notícia de que o francês François Duclerc, pirata dos piores, estará comandando uma expedição com vistas a invadir a cidade e a saquear, na verdade um pretexto para encontrar D. Garça, sua antiga amada, e a ordem dirigida ao padre João de o colocar em missão de reconhecimento no interior do país, reconhecimento de riquezas, diga-se, afastando-o de seu amor em momento crítico. Duclerc e Fressenec já haviam, no passado, duelado pela condessa, e eram inimigos jurados. Para encurtar: o padre João viaja contrafeito, a cidade é invadida, mas Duclerc perde o embate e corre a procurar a condessa Alda, ou D. Garça. Quando o padre João volta de viagem, informa-se de sua amada e do pirata e à noite parte através dos subterrâneos em direcção ao quarto de dormir da mulher, para a encontrar nos braços do pirata, ambos dormindo, felizes e saciados de tantas e delicadas grosserias. O padre apunhala-os[9] e a história termina em sangue grosso.[10]

“No dia seguinte espalhava-se por todo S. Sebastião a notícia da morte misteriosa de Duclerc.

Em vão se fizeram pesquisas para a descoberta do assassino do capitão francês e da bela italiana.

Mas deu muito o que falar a estranha coincidência de ter sido encontrado no mesmo dia, no leito da sua cela do colégio, o corpo inanimado do padre João de Jouquières e junto ao seu cadáver um vidro de veneno e um punhal de sangue.[11]

Um pouco antes de o senhor, de modo rápido e previsível,[12] dar cabo da história toda e de todos os envolvidos, há o incidente do crucifixo de ouro e do candeeiro de ferro, arrebanhados ambos pelo presidente Rodrigues Alves e pelo engenheiro Frontin — razão mais que suficiente para que o senhor interrompa o melodrama e grite contra a indecência. Volta o repórter consciencioso a tomar o lugar do folhetinista que só oferece a “diversão barata”. O senhor já ensaia aqui a voz protestatória que será uma de suas características.

“Qualquer cidadão tem tanto direito ao crucifixo e ao candeeiro como os srs. Rodrigues Alves ou Frontin.

(...)

Então o Sr. Rodrigues Alves ou o Dr. Frontin, numa terra em que todos são iguais, podem se apossar de objetos encontrados em terrenos do Estado e encontrados quando se faziam escavações por conta desse mesmo Estado?

(...)

Vamos lá, Sr. Rodrigues Alves e Dr. Frontin, entreguem ao Museu Nacional o que lhes não pertence: isto aqui não é, positivamente, a casa da mãe Joana (1999: p. 122, 124).”
           
O epílogo para o arrebatador caso de amores acontece no dia 3 de Junho, dia de sua última reportagem. É esta uma história de amor e vingança habilmente inserida num redemoinho de factos históricos sobre a cidade do Rio. Lima — mudo agora o tratamento —, tu não apenas nos contas uma óptima história, recheada de todos os ingredientes de um típico dramalhão, como também a vais inserindo, à medida que contas, numa estrutura labiríntica intimamente relacionada aos factos históricos de fundo. A imagem do labirinto vem a calhar, não apenas por sua complexidade intrínseca, cuja consequência é a produção de mistério e enigma, mas também — e é esta a característica que quero ressaltar — por sua capacidade de gerar repetição e redundância.[13] Os corredores de um verdadeiro labirinto são percorridos inúmeras vezes; volta-se àquela porta ou àquele canto, repete-se o percurso esta e mais esta vez; já passamos por aqui, aqui não há nada, vamos por ali, cujo caminho ainda não trilhamos, ou já trilhamos e precisamos repetir para ver onde é que dá... Há dois modos de se sair de um labirinto (sem o fio de Ariadne à mão): ou se conhece a trilha e o labirinto não passará de um trajecto central rodeado de pequenos descaminhos cuja função é gerar confusão; ou não se conhece nada e a tarefa será exaurir o labirinto, repetindo-o, re-percorrendo-o à exaustão, até que todas as suas partes estejam mapeadas.[14]

Tuas reportagens tratam de um complexo subterrâneo que vai, a golpes de picareta, sendo desvendado, trazido à tona, para a luz do sol. A cada dia, a cada capítulo, este labirinto de galerias e mistérios se desfolha aos olhos do leitor.[15] A história de D. Garça é também estruturalmente labiríntica, os personagens têm passados que se abrem em mais passados e histórias que nascem de histórias, que por sua vez se entrecruzam produzindo dramas humanos que só eclodem no presente da narrativa. Há incontáveis elementos na história dos dois amores da condessa Alda que são apenas esboçados por ti, que não os aprofundas o suficiente, acredito que por falta de espaço, tempo e também por um respeito ao formato ao qual tu te lanças juntamente com as reportagens.[16] Se aprofundadas, estas galerias de dramas humanos encompridariam a narrativa em quase três vezes o seu tamanho. Detalhes sobre o duelo entre Fressenec e Duclerc, a infância da condessa em Florença, a descrição dos tais quatro dificílimos votos por que passa Jean de Fressenec para se tornar o padre João, as aventuras do pirata Duclerc, as aventuras do próprio padre João em sua missão forçada, a vida do padre reitor que condena o padre João à viagem pelos interiores selváticos do país, vida que é apenas referida por ti na crónica de segunda-feira, 15 de Maio. Tantas histórias apenas iniciadas,[17] tantos caminhos que partem de factos e vão dar em ficções... O padre reitor viveu vinte anos com os selvagens ao longo do rio Solimões. Só isto, por si, dava um romance. Trata-se de pedaços de histórias que são como galerias desencavadas dentro do espectro maior da trama, mas que são logo abandonadas em nome de uma outra galeria que se acha ao lado.

Na tua matéria de terça-feira, 30 de Maio, tu comunicas aos leitores que o labirinto subterrâneo se mostra cada vez mais complicado e há suspeitas de que novas e novas galerias se encontram ainda por descobrir. A história de D. Garça acaba de um só golpe, golpe de punhal, com a morte dos três principais personagens. A série de reportagens sobre os tesouros do Morro do Castelo não acaba; fica no ar, e a tua reportagem de 1º de Junho, em que se pode ler o requerimento do engenheiro Henrique G. Dab Verme,[18] solicitando ao Congresso ser ele o encarregado de descobrir os tesouros, com os seus próprios métodos e com o intuito de não destruir as galerias e o próprio Morro — este requerimento só faz complicar mais ainda o assunto, já suficientemente complicado através das tuas crónicas. Relendo esta carta que te escrevi, já não sei mais, caro Lima, se fico indignado ou agradecido por teres nos metido, a mim e a todos os leitores, neste labirinto de séculos, barro, ouro e palavras.

Juva Batella

Post-Scriptum:

Lima, caiu-me às mãos o documento histórico que faltava para que esta tua estória mudasse de ares e passasse a algo mais que uma tua tradução resumida de uns papéis encontrados na casa de teu amigo, o sr. Coelho. Trata-se de um relato, na verdade um memorial, sobre a cidade do Rio de Janeiro, intitulado “Memórias do Descobrimento e Fundação da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro”, datado de 1858. Não pude averiguar a autoria da memória, provavelmente de algum membro do exército que à época tomou parte no acontecimento que narra — qual seja, a invasão malsucedida do litoral da cidade por um cavalheiro francês de nome Francisco Duclerc, cobiçoso não apenas das riquezas da cidade como também, isto segundo as tuas reportagens do Correio da Manhã, dos favores amorosos e sexuais de uma dita dama, cujo nome já conhecemos e que também atende pela alcunha de Garça.

Deu-se o caso em 1710, quando a cidade se encontrava abarrotada de ouro, prata e demais riquezas, e a França, bastante maldisposta com Portugal e os seus domínios, por razões de tratados, posses e uniões. Invasões à cidade passaram a ser incentivadas pela alta hierarquia francesa, e uma delas se organizou sob o comando do tal Duclerc, “no fim do mez[19] de Agosto do dito anno, sendo vistas as náos, pelos moradores de Cabo Frio, fizerão logo aviso ao governador desta cidade Francisco de Castro de Moraes, o qual mandou preparar as fortalezas” (Memórias do Descobrimento...: p. 23). Foram vistos também na Ilha Grande, e já lá sofreram algumas perdas. Encaminharam-se para Guaratiba, desembarcando em número de novecentos, e prepararam-se para a marcha rumo à cidade propriamente dita. A marcha não foi curta, e “Aos 18 do mez de Setembro teve aviso [o governador Francisco de Castro de Moraes], que os inimigos tinhão chegado ao Engenho Velho, e que ali repousavão aquella noite” (p. 23). O dia seguinte foi sangrento, os franceses, que não estavam em sua melhor forma, sofreram inúmeras baixas — “já lhe faltavão mais de quatro centos homens mortos a nosso ferro, a troco de trinta, que tínhamos perdido” (p. 25) —, faltando-lhes estratégia de guerra, organização mínima e um certo furor guerreiro. Foram dar, lá pelas tantas, desesperados e feridos, a um trapiche, espécie de armazém, e lá dentro se encerraram. A clausura dos franceses, que durou três horas, só teve fim quando Duclerc percebeu que constava dos planos do governador atar fogo ao armazém, mesmo estando lá famílias inteiras de colonos e bastantes mercadorias. A Duclerc só cabia render-se.

Cito, agora, o documento:

“Ao general pozerão primeiro no collegio dos padres da companhia, depois o passarão para o Castello, e ultimamente lhe concederão faculdade para tomar huma casa, onde o assassinarão na noite de 18 de Março de 1711, sem se averiguar quem fora, nem o saberem os soldados, que o guardavão (p. 26).”

Mesmo depois de tomar contacto com este documento, a partir do qual nos sentimos mais próximos do que pode ter acontecido naqueles idos de 1710, continuamos praticamente enredados no mesmo nó, cujas pontas são a porção de ficto que há no facto e o bocado de facto que entrevemos no ficto. A história da invasão propriamente dita do comandante Duclerc a esta cidade, com detalhes que somente uma testemunha poderia juntar, não está disponível nas tuas reportagens sobre o Morro do Castelo e o seu passado de sangue e traição. Por outro lado, o caso de amor entre Garça & Duclerc e Garça & o padre João não está sequer referido neste memorial da cidade, que não consegue explicar as razões pelas quais o invasor francês foi assassinado. Os dois relatos poderiam dialogar e, dialogando, completar-se, na medida em que preenchem e dissolvem as suas respectivas lacunas e neblinas. Não se completam, porém, porque estas mesmas lacunas e neblinas poderiam ser preenchidas e dissolvidas de modo diverso, já que diversas e imprevistas serão sempre as possibilidades de leitura do facto, que, por sua vez, não deixa de ser uma das facetas do ficto.

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referências bibliográficas

BARRETO, Lima. 1999. Os subterrâneos do Morro do Castelo, 3ª ed. Rio de Janeiro, Ed. Dantes.

COCO, Pina Maria Arnoldi. 1990. O triunfo do bastardo – uma leitura dos folhetins cariocas no século XIX. Rio de Janeiro, Tese de Doutoramento, 2 v., Departamento de Letras, PUC-Rio, mimeo.

DEALTRY, Giovanna Ferreira. “Os subterrâneos de uma nação”, in Revista Escrita, ano 3, nº 4, Departamento de Letras, PUC-Rio, Ed. Papel Virtual, Jan./Jun. de 1999.

SANTIAGO, Silviano. 1989. “Fechado para balanço (sessenta anos de modernismo)”, in Nas malhas da letra. São Paulo, Companhia das Letras.

“Memórias do Descobrimento e Fundação da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro”, in Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. XXI. Rio de Janeiro, 1858.







[1] “O fascínio que este relato exerce está, justamente, em unir factos de sua época à sedução atemporal e arquetípica do ato de narrar”, escreve Giovanna Ferreira Dealtry, em seu trabalho Os subterrâneos de uma nação, publicado na Revista Escrita, nº 4, à pág. 52. A pesquisa de Giovanna Dealtry não se restringe ao conjunto, já reunido em livro, das reportagens sobre os subterrâneos do Morro do Castelo, mas às reportagens in loco, examinadas na própria página do Correio da Manhã — evidenciando-se assim a sua posição relativa frente aos outros acontecimentos do dia e, consequentemente, a sua importância relativa, portanto histórica.

[2] Há entre as duas edições da livraria e editora Dantes, uma de bolso, da colecção Babel, e outra em formato normal, alguns conflitos referentes a datas. Estamos adoptando a edição de bolso.

[3] A medida de algumas galerias também varia entre as duas edições citadas.

[4] Não se trata, na verdade, de se apresentar como mais ou menos objectivo, sob pena de simplificarmos o assunto. A série de reportagens sobre o Morro do Castelo tem um objectivo crítico, cuja eficácia não poderia resultar apenas de uma ou outra solução — jornalística ou ficcional —, mas da rocambolesca mistura entre as duas. Giovanna Dealtry disse bem: “Utilizando técnicas das reportagens tradicionais — entrevistas, investigação, testemunho —, somadas aos recursos do romance-folhetim — paixões, vingança, traição, ganchos no final de cada ‘capítulo’ que mantêm o interesse do leitor etc. —, o repórter-folhetinista instaura um terceiro espaço dentro do jornal. Deslocado do rodapé, espaço reservado aos folhetins, a série SMC [O subterrâneo do Morro do Castelo] prende a atenção mais pela própria construção narrativa do que pela descoberta da galeria em si” (Dealtry, 1999: 55).

[5] “... a inserção de dados da realidade tem dupla função: estimular uma maior identificação com o narrador e fazê-lo passar por ‘real’. Com frequência veremos o romance-folhetim preso entre a ficção derramada e inverossímil, por um lado, e o fato real, por outro” (Coco, 1990: 211).

[6] Lima Barreto explora até ao limite da própria credibilidade a dupla condição em que se encontra, como repórter e folhetinista. Em melhores palavras: “... o escritor dispõe de uma liberdade que inicialmente o jornalista não teria e, por outro lado, o repórter empresta ao folhetinista a credibilidade de um profissional que está nas ruas testemunhando as últimas novidades” (Dealtry, 1999: 56).

[7] “O título, seja de um livro, de um folhetim, ou de um artigo, é fundamental, primeiro chamariz da curiosidade do leitor. Quando não repetem a receita de sucesso do dia (...), ou se reduzem ao nome do personagem central (...), sugerem os títulos o conteúdo. (...) Uma característica do título folhetinesco é sua reduplicação, através do conectivo ‘ou’. Não se trata, na verdade, de indecisão, mas de uma das formas da redundância, chave estética da narrativa popular” (Coco, 1990: 94).

[8] “Como na (...) Comédia dell’Arte, onde se impõe uma leitura imediata do personagem e de suas intenções e função, feita através de máscaras, roupagens e gestos codificados, também devem os personagens folhetinescos ser rapidamente identificados pelo leitor. Neste sentido de transparência da leitura, o físico torna-se fundamental para definir a conduta. Na chave do excesso, tende-se a um paroxismo que pode atingir as raias de um esquema simplificador e involuntariamente caricatural (...). (...) Se o físico reflete estereótipos culturais, o personagem em seu todo é caracterizado pelo exterior: gestos, roupas, atitudes, e sempre em termos de acúmulo, concentrando em uma só pessoa vários fragmentos definidores de protótipos modelares” (Coco, 1990: 290).

[9] “... o prisma do folhetim não comporta meias medidas; a verossimilhança é sacrificada em favor da lente de aumento do exagero, das últimas consequências. Se se trata de dar um exemplo, a punição será a morte, qualquer que seja o peso da falta. O que conta é o princípio da transgressão, e esse não tem perdão. (...) No universo do folhetim raramente há uma segunda oportunidade” (Coco, 1990: 101).

[10] “Cabe ressaltar a recorrência à romântica associação amor e morte. O amor folhetinesco é quase sempre ‘fatal’ nas duas acepções, inexorável e mortal, encarado como desvario, fator de perturbação de uma dada ordem” (Coco, 1990: 93).

[11] “A morte pode ser a punição que se abate sobre os culpados, ou a saída voluntária para a desonra; sem intervenção de terceiros, o ‘culpado’ pode reconhecer seu erro e autopunir-se” (Coco, 1990:102), e também: “Para que se reinstaure o equilíbrio social (...), e que se retorne ao pólo da ordem, o culpado é eliminado” (Coco, 1990: 105).

[12] “Embora saiba-se muito bem que, ao final, os maus serão punidos e os bons recompensados, o que interessa não é o desfecho em si, mas sim como isso irá suceder. (...) Um bom folhetim é uma máquina de narração, pronta a funcionar, uma vez acionadas as peças-chave. Falamos em apelo a mecanismos psíquicos profundos e arcaicos; da mesma forma opera o conto infantil: para a criança, a mesma história, repetida à exaustão (e assim deve ser), jamais perde o interesse” (Coco, 1990: 96).

[13] “Tudo se passa como se tivéssemos pequenos (...) núcleos mínimos situacionais que se repetem, por alternância ou simples acumulação, de forma a tornar o inesperado familiar ao leitor, e para que se opere uma identificação deste com o narrado” (Coco, 1990: 115).

[14] O modo como Lima Barreto dá andamento às reportagens sobre os tesouros do Morro e, depois, à historieta de amor e morte de D. Garça confirma o que diz Silviano Santiago em seu texto “Fechado para balanço”, onde ensaia uma retrospecção de sessenta anos do modernismo no Brasil e caracteriza o traço estilístico do pré-modernismo de Lima Barreto como esteticamente redundante. É com o recurso da redundância, ou seja, a potência do texto de se explicar a si mesmo na medida em que avança e ao mesmo tempo se repete, dando, assim, dois passos para a frente e um para trás, que Barreto conseguirá tornar palatável e percorrível o labirinto de histórias presentes no folhetim de D. Garça. Este um passo para trás, que Silviano Santiago vai chamar “núcleo repetitivo”, é que fará toda a diferença. “O leitor comum tem o seu interesse aguçado pela redundância que explicita, na repetição de uma cena ou de um diálogo, o que muitas vezes não ficou claro na dramatização. (...) O artista da forma popular e seriada (...), trabalhando com uma linguagem polissêmica como é a da dramatização, necessita diminuir o hermetismo do enigma narrativo para o leitor comum, valendo-se de sucessivas e parciais interpretações do drama, que são pequenos núcleos repetitivos...” (Santiago, 1989: 90).

[15] Giovanna Dealtry regista três planos temporais a dar conta das duas narrativas de Lima Barreto: “O plano do tempo presente, representado aqui por um quase fait divers, o desmonte do Morro do Castelo e os acontecimentos diretamente ligados a ele; o memorial, vinculado às atividades exploratórias do morro, remete o leitor às origens da cidade de São Sebastião; e o folhetinesco, que, no caso do SMC, é a inserção das aventuras de D. Garça em meio à série de reportagens. (...) Note-se que o folhetim propriamente dito aparece como ponte entre os planos dos relatos cotidianos e o passado da cidade. Se um fato ‘real’, o descobrimento da galeria, é o deflagrador para que se apresente a história da condessa florentina Aída [Alda, na nossa edição], o folhetim será o veículo pelo qual o repórter Lima Barreto encontra sustentação para as parcas novidades relativas às escavações no Castelo” (Dealtry, 1999: 56).

[16] “O folhetim, em grande ou reduzida extensão, em vários meses ou dois capítulos, opera pela síntese, pelo encurtamento, pela tipificação. (...) Sofisticados interesses sóciopolíticos, desvãos psicológicos a mover personagens são ignorados, a hipertrofia reduz as eventuais motivações a ações ‘excepcionais’, e são elas as molas propulsoras da narrativa” (Coco, 1990: 104).

[17] Ver o estudo de Umberto Eco, citado por Pina Coco, sobre as duas possibilidades de estruturação da narrativa, presentes em Eugène Sue: a “curva constante”, que reúne dados da história e os acumula com o objectivo de criar tensão, e a “curva sinusoidal”, que alterna “tensão/distensão, podendo conter uma verdadeira ‘árvore’ de intrigas paralelas, anexas, parcialmente resolvidas ou abandonadas” (Coco, 1990: 114).

[18] Henrique G. Dab Verme pode ser mais um elemento a intermediar o facto e o ficto do complexo narrativo do Morro do Castelo, e neste sentido a pergunta de Giovanna Dealtry é pertinente e curiosa: “[O engenheiro Henrique G. Dab Verme], personagem real? fictício? O verme, como o coelho, outro personagem da trama, não vive embaixo da terra?” (Dealtry, 1999: 61).

[19] Ficam mantidas a ortografia e a pontuação do texto original.