"Correntes d'Escritas"
Dia 24: “A minha arte é uma espécie de pacto”.
"A escrita corrente de Póvoa - Parte 1 (Lourdes Castro)"
23 a 26 de Fevereiro de 2011, Póvoa de Varzim.
Dia 24: “A minha arte é uma espécie de pacto”.
Moderador: Rui Zink.
Com: David Toscana, Juva Batella, Luís Represas, Manuel Jorge Marmelo, Mário Lúcio Sousa e Ricardo Romero.
Dia 25: "Procuro a palavra" (Escola Secundária Rocha Peixoto, Póvoa de Varzim).
Dia 25: "Procuro a palavra" (Escola Secundária Rocha Peixoto, Póvoa de Varzim).
"A escrita corrente de Póvoa - Parte 1 (Lourdes Castro)"
Lourdes Castro, Rua da Olaria
O pardal do campo descobre muitos
lugares para uma casa
a poucos metros de mim
mundos sobrepostos transitam,
preenchem o silêncio
e para o ânimo deles
quem não se levantaria?
A minha arte é uma espécie de pacto:
não distingo as áreas selvagens das
cultivadas
e elas não distinguem a minha sombra
da minha luz
(José Tolentino Mendonça)
"A
escrita corrente de Póvoa - Parte 2"
- Mas não é a linha 3?
- Mudou.
- Mas está lá no quadro…
- Mudou, e se o senhor não correr vai
perder o comboio.
Só me faltava esta agora, pensei,
pensando que, pelo menos, vou ter um bom início de registo da minha não-ida a
Póvoa de Varzim. “Escritor de primeira viagem perde o comboio e não vai às
Correntes de Escrita. Esses brasileiros…” Parei de me meter em questionamentos
como um escritor existencialista faria, respirei fundo como um escritor de
suspense respiraria e corri como um escritor de livros de acção correria para
chegar enfim ao carro número 1 da linha 1 do comboio para o Porto. E vi com
prazer que se tratava de um vagão de primeira classe, com jornais e bebidas.
Tive direito, como todo vagão de primeira classe que se preze, de ser
acompanhado por um distinto senhor a ler um livro em francês. E dormi, embalado
pelos sacolejos ferroviários.
Ainda observei com atenção os demais
passageiros para ver se algum tinha cara de escritor, ou conversa de escritor,
mas não reconheci ninguém. Este – ter ou não uma cara de escritor - é um
assunto longo e polémico. Nenhum tinha cara de escritor ou mesmo conversa de
escritor, mas eu sabia que uma boa parte era formada por escritores.
Em Campanhã, já estava uma simpática
senhora a esperar os convidados.
- Juva Batella?
- Como é que a senhora sabe?
- o Juva não se parece com ninguém, e
eu tenho aqui todas as fotos.
E eu pensei: deve ser o chapéu.
Acompanhei-a, acompanhado dos demais, e entrámos num autocarro, e ganhámos as
auto-estradas. A meio do caminho, a simpática senhora sentou-se ao meu lado e
me contou todas as suas viagens pelo mundo. Ficámos nisso um bom tempo, rimos
muito e ela me perguntou se eu iria a alguma escola falar aos jovens, e eu
disse que sim, e que o tema era este:
Procuro a palavra,
a de sílabas de luz,
que inteira nos revelaria.
Impossivelmente, busco
a nunca encontrada.
Embrionária e prisioneira,
dorme para todo o sempre
no seu ovo de silêncio.
("Busca", do livro A maresia
e o sargaço dos dias, p. 71, de Luísa Dacosta)
Depois eu lhe disse que contaria aos
jovens a história e a maneira de viver do povo Dogon (este assunto me
persegue). Contei-lhe uma das crenças dos Dogon, e ela abriu os olhos,
brilhando-os, e me disse que nunca mais na vida iria esquecer-se disso. Como eu
poderia ficar mais feliz?
Depois do banho sentei-me à mesa para
jantar, e na minha mesa estavam o Manuel Rui, que me disse ser veterano de
todas as Correntes, a Alice, mulher do Manuel, a Raquel Ochoa, escritora
portuguesa, e o Ricardo Romero, escritor argentino. Conversámos sem parar, e eu
aos poucos vou me lembrando do que é que falámos, ou melhor, do que é que não
falámos, porque de tudo se falou. Depois do jantar, de muito vinho e de muitas
Imperiais, declamei, na chamada Sessão Declamatória, uns poemas de improviso
numa mesa de poetas, e aqui estou, no quarto do hotel, a escrever isto e a
tentar conviver bem com a sensação persistente de que há muito mais o que
dizer, mas o sono chegou.
"A
escrita corrente de Póvoa - Parte 3: a minha arte (não) é uma espécie de
pacto"
Convidaram-me, há alguns anos, para
participar de uma mesa-redonda cujo tema era “O autor inédito”. Como havia
outros participantes que, pela idade e pelo currículo, estavam bastante longe
da condição de jovens escritores, ainda por cima inéditos; eram antes
intelectuais de peso, nome e renome, deduzi sem esforço que o papel de autor
inédito, naquela mesa, não cabia a mais ninguém, senão ao pobre de mim. Comecei
a ficar nervoso uns dias antes, mas pensava, para a minha tranquilidade, que a
presença do Juva Batella, 30 e poucos anos, ali, seria praticamente
ilustrativa, tal como se eu fosse um espécime colhido ao acaso em meio a um
cardume de seres semelhantes ao pobre de mim: os jovens escritores brasileiros
em início de ofício. Todos na mesa usarão da palavra, debaterão com paixão e
lucidez o tema proposto, mas ali, naquele debatedouro, apenas eu não teria esse
encargo. Sou, afinal, como se fosse o autor inédito, pensei; aquele de quem se
falará. E me preparei para não falar nada, no máximo uma ou outra expressão de
aturdimento, às vezes de desamparo.
É verdade que eu disse imediatamente
às simpáticas senhoras que me convidaram para a mesa-redonda que eu não era
mais um autor inédito, tendo publicado, na época, alguns livros e alguns
artigos, nenhum poema de amor ainda, mas nunca se sabe, mas as simpáticas
senhoras me bateram às costas: “Mas já foi autor inédito! E, além do mais, é um
jovem autor! É de coisas assim que precisamos!”. Eu gostei mais daquele “jovem
autor” do que do “coisas assim”, e passei o dia todo vendo a mim mesmo não mais
que uma “coisa assim”, ansiosa e atordoada. No dia marcado, entretanto, e como
sou cumpridor dos meus compromissos, me enchi de brios e fui. Cheguei a sonhar,
um dia antes, que o meu lugar não seria à mesa, mas na mesa mesmo, e dentro de
um aquário ovalado e transparente, por onde me veriam, não falando, que uma
“coisa assim” não fala, mas a soltar lá as minhas bolhas: o autor inédito.
E por que é que eu estou a falar em
autor inédito se o meu desafio hoje, aqui, é “A minha arte é uma espécie de
pacto”? O que faço com isso? Então, entregam-nos um verso e dizem: é este o seu
tema. Vire-se. E passamos agora eu, o David, o Luís, o Manuel, o Mário, o
Ricardo e, de certa forma, também o Rui a ser este verso? O que faço com isso? Perguntas.
Quem diz isso é o poeta, ou a voz
poética do poema? Há ali um eu, já que há ali um possessivo. Quando o poeta
diz: a minha arte, está a referir-se à sua arte, dele mesmo, José Tolentino
Mendonça, ou a referir-se à arte poética, ou ainda a todas as artes? Ele está a
falar em nome de quem? Está a falar em nome de alguém? Em seguida temos: a
minha arte é. É o quê? É possível ou produtivo dizermos o que uma arte é o que
quer que seja? Uma arte pode ser alguma coisa de modo tão categórico? Ou uma arte
não são muitas coisas? E, com o complemento “uma espécie de”, este modo
categórico não perderia a força? Uma “espécie de pacto”? O que é uma “espécie
de pacto”? É um pacto? É um quase-pacto? Ou seja, é às vezes um pacto, e às
vezes não? Ou é um pacto, sim, mas um tipo específico de pacto? E o que é um
pacto? É um contrato? Um acordo? E, se é um acordo, quais são as partes
envolvidas nesse acordo?
Nem todos os pactos são o mesmo pacto.
“A minha arte é uma espécie de pacto.” Qual espécie de pacto? Dentro de um
estudo de uma jurista brasileira chamada Judith Martins-Costa, peguei o
seguinte: os tipos de pacto na história do contrato. Temos o pacto-obediência,
quase um pacto-lei, entre Deus, Adão e Eva, pelo qual se ajustou a obediência à
regra da insciência em troca do bem-viver no Paraíso. Em seguida iniciou-se a
fértil dinastia dos pactos-aliança, como entre Eva e a Serpente, entre Noé e
Deus. Há, ainda, o pacto instituinte, como o ajustado entre Deus e Moisés,
resultando nas Tábuas da Lei. Há ainda um pacto de alienação, nos Faustos
anteriores ao de Goethe, e o pacto de liberação, na obra goetheana. Temos ainda
o pacto de união, que precede o pacto de sujeição, consistindo numa espécie de
condição preliminar para se obter a paz entre os homens graças à entrada do
Estado e do Direito como um terceiro elemento regulador. Temos ainda o pacto de
associação, que levará ao moderno contratualismo. Qual dessas espécies de pacto
será “a minha arte”?
E, se quisermos continuar, agora por
outra via, devemos recorrer a pedaços do poema? Temos, é claro, o resto do
poema, sempre teremos o resto do poema. Posso usá-lo? Será isto fazer batota?
Aqui, pelo que já percebi, eu posso tudo. Só não posso ficar em silêncio.
“A minha arte é uma espécie de pacto /
não distingo as áreas selvagens das cultivadas / e elas não distinguem a minha
sombra / da minha luz”. O que são as áreas selvagens? São o incognoscível,
aquilo que é bruto e não foi ainda manipulado, a possibilidade da originalidade
radical? O que são as áreas cultivadas? São os campos iluminados onde a
possibilidade artística surge de modo previsível, esteticamente previsível? São
as citações, as intertextualidades, são o que foi feito e em cima do qual muito
pode ser feito e tem sido feito? É a História da Arte e o que pode ser feito,
artisticamente, a partir dela? Agora, do outro lado do espectro, ou seja, se
estávamos a falar do mundo fora de mim — as áreas cultivadas e as selvagens —,
falemos agora do mundo dentro de mim, ou do poeta: a minha sombra e a minha
luz. Os lados obscuros e luminosos do meu escorregadio eu? É da relação entre
esses quatro elementos — zonas cultivadas e selvagens, minha sombra e minha luz
— que nasce a minha arte, que é a minha espécie de pacto?
O que tem a artista Lourdes Castro a
ver com isso? A Lourdes Castro, que, nas suas próprias palavras, tirou “as
sombras da sombra”; a Lourdes Castro, que pintou sombras, retratou sombras,
contornou sombras, sempre em contraste com a luz, com o branco e com as cores.
Vemos ali na pintura da Lourdes Castro as luzes e as sombras. Ambas estão
desenhadas e têm os seus limites. Estão ao alcance do olhar. A Lourdes Castro
fazia, sim, uma distinção entre luz e sombras, e sem esta distinção a sua arte
não teria sentido, e só funcionou por causa desta distinção, claríssima, por
causa deste pacto entre luz e sombra. Isto, sim, um pacto. Quando o poeta diz
que não faz uma distinção entre as zonas cultivadas e as zonas selvagens, o que
ele quer dizer? Se não há distinção, não há pacto, muito menos “uma espécie de
pacto”. Para que haja pacto, são necessárias duas ou mais partes, distintas.
Mas o poeta faz uma distinção, sim, na medida em que as nomeia, chamando-as
pelos seus nomes.
Mas a Lourdes Castro, aqui, é um
detalhe, ela não está no verso; ela está no título. A única coisa que temos é a
assertiva “a minha arte é uma espécie de pacto”. Mais nada. Mas para quem? Para
o José, o Tolentino Mendonça? Ou para mim, que aqui estou tendo de lidar com
este verso-tema. O José sentou-se e escreveu o seu verso, e se lhe pedissem que
fizesse uma digressão acerca deste verso, ele sensatamente responderia: tudo o
que eu precisava dizer e queria dizer está lá, no poema. O poema diz tudo; eu
não digo nada, ou melhor, eu digo o poema, eu sou o poema, e teríamos de nos
dar por satisfeitos.
Mas, aqui, em Póvoa de Varzim, onde a
escrita povoa Póvoa, temos um encontro entre escritores e poetas. Será então
que se espera de um escritor ou de um poeta que fale de si? Será que tive,
então, a sorte de pegar um verso, como tema, que esteja na primeira pessoa, não
direi narrativa, que isto não é narrativa, mas na primeira pessoa poética, de
modo que possa ser eu a dizer, em uníssono com o poeta, que “a minha arte é uma
espécie de pacto”? A minha arte, a arte do Juva Batella? Então, o que poderei dizer
acerca disso?
Digo que a minha arte não é uma
espécie de pacto — nem goetheano, nem hobbesiano, nem jurídico, nem poético —,
e muito menos um pacto simplesmente, mas uma guerrinha ridícula e espezinhante,
entre dois seres que não existem mas eu sei que existem, e se vocês não os veem
é porque não os podem ver e é também porque vocês todos são criaturas de sorte
que têm mais o que fazer. Tenho aqui aos meus lados, o lado de cá e o lado de
cá, o grande Juva e o pequeno Juva, ou Juvão e o Juvinha, como queiram.
O grande Juva, ou Juvão, aqui à minha
esquerda (os lados esquerda e direita são aleatórios, e não políticos), é uma
cara-metade bonachona, brincalhona, tolerante, benévola e filosoficamente
preguiçosa (eu diria pseudo-filosoficamente preguiçosa), que gosta de mim, me
admira e já está bastante satisfeito com o facto de eu ter publicado nove
livros, ter um romance no prelo, estar a fazer um pós-doutoramento, ter escrito
uma meia dúzia de contos, uma meia dúzia de artigos académicos e ser ainda um
gajo simpático, de boa índole, generoso e modesto (a modéstia é uma das minhas
inúmeras qualidades, e o grande Juva sabe disso).
O pequeno Juva, ou Juvinha, não gosta
de mim, é mal-humorado, acha que eu trabalho pouco e me divirto mais do que
recomendariam a prudência e a sensatez e acredita firmemente que eu só escrevi
nove livros porque calhou, porque no fundo ele acha que eu ainda não escrevi
nenhum de verdade, um romance como deve ser.
O pequeno Juva tem lá as suas teorias
sobre a arte, a literatura, os pactos que se estabelecem entre o autor e si
mesmo, ou entre o autor e as suas zonas de sombra e luz. O pequeno Juva
acredita, por exemplo, que todo autor e todo poeta, por mais livros que tenham
publicado, serão sempre autores inéditos. O autor está sempre escrevendo como
se fosse a primeira vez, e sempre sozinho, e não há pacto algum entre as
possíveis partes de si mesmo. Há apenas briga. Se há acordo, há concessão. Se
há concessão, não há arte.
Podemos pensar, por exemplo, na
condição do autor inédito, como eu falei no início — no sentido comum, um
sujeito que nunca publicou nada e se senta para tentar escrever uma coisa que
quer que seja publicada. Ele quer, portanto, deixar de ser o que se chama de
“autor inédito” e passar a ser o que se chama de “autor publicado”. Quando
enfim consegue publicar o que escreveu, ou seja, dar a cara a tapa, joga-se no
mundo e se transforma em coisa pública, e este sujeito deixa então de ser o que
se chama de “autor inédito” e passa a ser o que se chama de “autor publicado”.
Para o pequeno Juva, não. O conceito
de autor já contém implícito o qualificativo de inédito. O termo “autor
inédito” é, portanto, uma redundância. Se é autor, é inédito, porque a condição
de ser inédito é intrínseca ao ato de escrever. No ato da escrita, todo autor é
inédito, porque se sentirá inédito, e se sentará para escrever, sempre, como se
fosse aquela a primeira vez.
É bem verdade que, quando eu era
inédito mesmo, no sentido vulgar da palavra, tentei deixar de ser inédito. E
deixei de frescuras e me sentei para escrever. E então escrevi, assim, como
quem não quer nada. Escrevi para saber o que é que escreveria caso escrevesse.
E, como quem não quer nada, publiquei. “Não sou mais autor inédito”, pensei.
Depois, quando já não era autor inédito, no sentido comum que temos da palavra,
sentei para escrever o meu segundo livro acreditando que era, então, um autor
publicado, e não mais um autor inédito. (Mas eu era, pior dos piores, “autor de
um livro só”, o que era ainda bem pior do que ser autor inédito.)
Para o pequeno Juva aqui ao meu lado
(o Grande Juva já pegou no sono com todo esse meu blá-blá-blá); para o pequeno
Juva eu sou e sempre serei um autor inédito, apesar de ter publicado livros.
Sou um autor inédito porque sempre que me sento para escrever algo de novo é
como se nunca tivesse publicado nada na vida, como se fosse um aventureiro. Eu
usei a palavra “aventureiro” de propósito, pensando nos sentidos potentes da
palavra. Se a literatura é uma aventura, quem escreve se debruça, antes de
tudo, sobre uma aventura, ou seja, sobre um risco, sobre uma situação onde não
há possibilidade alguma de pacto nem de acerto. Uma pessoa que nunca tenha
publicado um livro, que não seja, portanto, o que se chama de “autor
publicado”, talvez viva essa aventura de um modo mais intenso e livre, porque
não carregará às costas qualquer título ou passado literário público, por menor
e irrelevante que seja. Um autor que acredita na condição de autor publicado,
infelizmente e em muitos casos, mete na cabeça um série de minigâncias idiotas,
compromissos literários inexistentes e responsabilidades para com algum tipo de
expectativa cuja origem está na figura abstrata de um leitor ou de um
“mercado”, e pronto: está montado o quadro para esse sujeito meter os pés pelas
mãos, sentar-se, ficar hora e meia pensando na Literatura com Maiúsculas e sair
da cadeira com nada mais que a cicatriz de uma picada.
Talvez seja o caso de fazermos sempre
como a Marguerite Duras, como eu disse há pouco: “Escrever para saber o que
escreveríamos se escrevêssemos...” — uma forma de se evitar que caiamos na
armadilha do conceito de “autor publicado”, que é um conceito vazio. Se o autor
publicado acredita nessa sua condição de autor publicado, sempre que se sentar
para escrever o segundo livro estará diante da seguinte situação dramática e
patética: sentirá que o seu segundo livro está sendo escrito por um autor que
não é o mesmo que escreveu o primeiro livro. São escritos, nesta encenação, por
autores diferentes (quem escreve o segundo livro é o “autor publicado” que se
sente como tal e sofre, não raro, da moléstia da dupla personalidade, uma vez
que ele pode ser também o amofinado “autor de um livro só”, ao passo que quem
escreve o primeiro livro é simplesmente, e nada mais, o “autor inédito”, ou
seja, o sujeito em risco, o verdadeiro aventureiro, aquele que não pactua com
nada e com ninguém, aquele que não tem nada a perder). Só que o autor publicado
não sabe que no fundo ele é, e sempre será, o autor inédito. Se não viver a sua
eterna condição de autor inédito, não escreve mais nada.
De minha parte, na hora em que me
sento para escrever, faço de tudo para me sentir, o mais verdadeiramente
possível, um autor inédito, sempre; um autor inédito que não tem a menor chance
de pactuar com nada, porque é um aventureiro dedicado a descobrir, com espanto
e delícia, qual a travessura que faria, caso a fizesse.
A minha arte torna-se então uma
espécie de pacto que não acontece, como o pacto que não acontece entre o Burro
e a Flauta que protagonizam a fábula do guatemalteco Augusto Monterroso, e que
eu vou contar a vocês agora.
“Tirada en el campo estaba desde hacía
tiempo una Flauta que ya nadie tocaba, hasta que un día un Burro que paseaba
por ahí resopló fuerte sobre ella haciéndola producir el sonido más dulce de su
vida, es decir, de la vida del Burro y de la Flauta.
Incapaces de comprender lo que había
pasado, pues la racionalidad no era su fuerte y ambos creían en la
racionalidad, se separaron presurosos, avergonzados de lo mejor que el uno y el
otro habían hecho durante su triste existencia.”
Cada coisa escrita que acontece será
sempre o som mais belo e mais doce. E, como todo som que se preza, ele soa e
acaba; acontece, e depois morre, e teremos de tentar produzi-lo novamente,
sempre, como se nunca antes o tivéssemos feito, como se fosse, sempre, a
primeira vez. Não há pacto, meus amigos.
Obrigado.
"A
escrita corrente de Póvoa - Parte 4: onde estamos"
Hoje o dia foi cheio. Puseram-nos para
trabalhar de verdade. Às 11h houve a sessão oficial de abertura do encontro, e
isso deveria ter vindo em maiúsculas. Não vou falar dos discursos de que não
gostei porque senão não paro, mas falarei, sim, do cativante discurso do
Eduardo Lourenço, que começou por dizer que mal consegue representar a si
próprio, quanto mais representar um movimento como este das Correntes
d´Escritas, e ele foi longe, como sempre, e também do magnífico discurso do sr.
Álvaro Laborinho Lúcio, às 15h30m, no Auditório Municipal, que acabei por
aplaudir de pé e comovido. Ali não havia ressentimentos, não havia simplismos,
não havia generalizações. Foi um discurso em homenagem à tolerância e à poesia.
Eu gostaria de comentar, mas não vou, e por outra razão: porque foi bom demais.
E não há, diante de discursos assim, qualquer possibilidade de resumo ou breve
exposição. Foi um momento especial destas Correntes d´Escritas.
Já percebi que este pequeno projecto
de fazer um diariozinho desta experiência em Póvoa só pode funcionar a
posteriori, porque durante todo o dia passamos de um lado para o outro a
debater coisas e a comentar coisas e a declamar coisas, e, quando chegamos ao
quarto do hotel, já não há forças. No mais, a malta diverte-se, e, quando
chegamos ao hotel, à noite, depois do jantar, começamos, no bar, a beber e a
falar de sexo e álcool, fingindo que estamos a falar de literatura, e de vez em
quando, para disfarçar, atiramos para a mesa um Henry Miller ou um Bocage.
Embora muito, muito cansados, estamos,
nas palavras do Manuel Rui, melhores do que Deus, porque ninguém nunca sabe
onde Deus está, já que ele está em todos os lugares, e nós, escritores das
Correntes d´Escritas, sabemos muito bem onde estamos: estamos em Póvoa de
Varzim.