30 de dezembro de 1999

"Dialoguinho"

— Onde é que você vai passar o ano-novo?

— Ainda não pensei nisso.

— Você não pensou? Como pode isso? Você não sabe onde vai passar o ano-novo, justamente esse ano-novo?

— O que é que tem esse ano-novo de especial?

— É o ano-novo do ano dois mil, uai... A gente tem que descolar uma festa, alguma coisa, assim, mais... chique, sofisticada, sei lá...

— Todo ano você diz isso, e a gente sempre acaba de lado, esquecidas... Por que é que você acha, querida, que esse ano vai ser diferente?

— Ah, sei lá... Apenas sinto que dessa vez vai ser diferente.

— Diferente, como?

— Quer saber? Acho que nesse ano a gente vai explodir a boca do gargalo.

— Você vive sentindo coisas... Acho que você sentiu a mesma coisa ano passado, e você viu onde foi que nós passamos a meia-noite... Naquele lugar horroroso, escuro, quente e cheirando a queijo e salaminho, e ainda por cima de pé a noite toda, horrorosas...

— A gente TEM QUE arranjar uma festa! Eu não quero ficar na mão de qualquer um no meio da rua. Isso não!

— Não se preocupe, tonta. Tenho uma surpresa para você.

— Qual?

— Temos, sim, uma festa...

— Jura? Onde? Por que é que você não falou logo? Por que é que me deixou na agonia? Por que é que ficou fazendo charminho? Sinto que sou capaz de transpirar de emoção... Você acredita nisso?

— De você eu espero tudo...

— E de quem é a festa?

— É de uma moça muito simpática e de um moço muito simpático.

— Você não precisava me dar tantos detalhes assim...

— Não me aporrinhe a paciência, senão você fica de fora...

— Você não seria capaz de tamanha torpeza... Não se esqueça de que nós duas nascemos praticamente no mesmo dia... Quem são eles?

— O nome dela é Roberta e o dele é Luís Henrique. São muito simpáticos.

— E você os conheceu onde?

— Ela é a mãe da Lili.

— Que Lili?

— A Lili, ora! A namorada daquele menino engraçado, o Byron.

— O lorde?

— Não, o Sousa.

— ...

— Ó, doce flor, inculta e bela, por que é que você quer saber de tantos detalhes assim? Até parece que você vai ficar a noite toda conversando com eles. Nosso lugar você bem sabe onde é...

— Onde?

— Na cozinha, sua tonta...

— Isso depende muito do tipo de festa, você sabe. É festa chique, com garçons, essas coisas? É casa ou apartamento? É grande ou pequena? Muita ou pouca gente? Vai ter empadinha ou não vai ter empadinha? Vai ter...

— Chega!! Pare de ser curiosa! Devia dar-se é por satisfeita de ter sido convidada. Eles foram muito carinhosos em nos convidar. Não se esqueça disso.

— É na Avenida Atlântica?

— Claro!

— Valha-me, Nossa Senhora da Boa Vista e do Bom Lugar à Janela, valha-me!! Isso é bom demais! Eu não estou satisfeita; eu estou des-bun-dan-do de satisfação!! Você acha que nós vamos encalhar mais uma vez, você acha? Ou dessa vez vai?

— Estou achando que dessa vez vai. Nessa festa vai.

— Logo você, que é tão pessimista... Por que o otimismo?

— Porque o povo parece que vai beber bastante.

— Será?

— Oxalá!

— Hum...

— O que foi, maluca?

— Maluca é você! Eu estou aqui pensando...

— No quê?

— Esta festa, assim, em pleno ano-novo do ano dois mil, assim, numa bela casa, com gente simpática e bonita, belas bocas e belas mãos, na Avenida Atlântica, com empada e tudo... Não está bom demais para ser verdade? E se acabar em pizza?

— Não vai acabar nada em pizza, tonta! Tenho até um convite para dois...

— Um convite, é? Que chique!! E o que é que diz?

— Diz que temos que confirmar nossa presença até o dia 3 de dezembro e levar...

— Aha!! Eu sabia que tinha que levar alguma coisa! Estava bom demais para ser verdade... O que é que tem que levar?

— Fique calminha, não é nada demais... Diz aqui que tem que levar uma pessoa por garrafa. É só.

— Uma pessoa por garrafa? Hum... E você conhece alguém?

— Tem aí um casal que parece disponível...

— Prazo de validade?

— Acho que estão dentro.

— Franceses?

— Não.

— Hum... Quem são?

— O Juva e a mulher dele.

24 de março de 1999

“João Ubaldo Ribeiro — O feitiço da escrita”

1999-03-24
VASCONCELOS, José Carlos de, “João Ubaldo Ribeiro — O feitiço da escrita”, Entrevista, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Ano XIX, nº 743, Portugal, 24 mar. a 6 abr. 1999, p. 9-12. 

JCV: “...será que cada vez te interessa menos, como escritor, essa (esta) realidade e os aspectos sociais que lhe estão ligados?”

JUR: “Não sei se concordo com as premissas da pergunta. Fico curioso em saber o que foi que o levou a essa percepção. Talvez nosso quadros de referência sejam mais diversos entre si do que pensamos. (...) E os tipos, personagens e situações [de O feitiço da ilha do Pavão] me parecem — e foi você quem puxou o assunto — metáforas do Brasil, e do Brasil de hoje. Portanto, não me creio tão alheado assim. Mas fiquei preocupado agora. Acho que gostaria de conversar com você mais extensamente sobre isso, estou me sentindo um pouco frustrado. Você não viu, através do ‘quilombo ao contrário’, o problema racial passado através do prisma económico/tecnológico e com suas bases na ‘realidade’ ridicularizadas? A corrupção, a advocacia administrativa, a hipocrisia, a desmitificação do indiozinho inocente e assim por diante? Só pra chatear, mostrar a Inquisição a pleno vapor na Alemanha, em vez de na Ibéria, entre nossos sebentos torquemadas? E mais outras tantas brincadeiras sérias? Eu sou mau carpinteiro” (p. 9-10).

“João Ubaldo Ribeiro — O feitiço da escrita”

1999-03-24
VASCONCELOS, José Carlos de, “João Ubaldo Ribeiro — O feitiço da escrita”, Entrevista, JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Ano XIX, nº 743, Lisboa, Portugal, 24 mar. a 6 abr. 1999, p. 9-12.

JCV: “Sempre disseste que O feitiço da ilha do Pavão era uma simples história divertida, às vezes brejeira, sem nenhum outro significado. Não admites que ele também é uma metáfora (...)?.

JUR: “... prefiro que o leitor veja por si mesmo as metáforas. Se precisar explicá-las, serão más metáforas. Acho que, com o tempo, fui inventando (...) uma série de resposta um tanto cínicas para perguntas muito repetidas, tais como ‘pode dizer-nos alguma coisa sobre o seu livro?’. Aí eu digo a primeira besteira que me ocorre e, de tanto repetir essa besteira, ela se torna automática. Para ser perfeitamente honesto há uma vasta falsa modéstia no que eu falo a respeito de meu trabalho, mas tenho boas razões para isso: não é decoroso o sujeito sair por aí, rasgando-se em elogios a si próprio ou impondo visões sobre o que faz. Eu gosto do que faço e tenho lá minhas pretensões (esse ‘lá’ aí já é a falsa modéstia em operação (...)). Minha acção, pois, é devolver a peteca ao freguês. Ele que ache alguma coisa mais no Feitiço do que uma simples história divertida. Se não achar nada, terá sido, das duas, uma: ou é mau achador ele, ou sou eu mau carpinteiro. Ou ambas as coisas; nada impede que o leitor tenha um nível de incompetência comensurável com o do escritor” (p. 9).

20 de março de 1999

"No oeste só o forte sobrevive"

"No oeste só o forte sobrevive — Novo livro de Cormac McCarthy retoma o universo violento da fronteira dos Estados Unidos com o México em narrativa impiedosa e veloz", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 20 de março de 1999.

Resenha sobre o livro A travessia, de Cormac McCarthy, ed. Companhia das Letras.

Existem dois tipos de narrador, já dizia o filósofo Walter Benjamin num ensaio sobre o escritor russo Nikolai Leskov: aquele que viaja e traz do mundo o muito que conta e aquele que, vivendo e morrendo onde nasceu, conhece e transmite suas histórias e tradições. Podemos cobri-los com as roupas do marinheiro comerciante e do camponês sedentário e teremos então dois arquétipos, modelos de seres, representantes arcaicos da grande família dos narradores. Mas a real extensão do universo narrativo somente será bem compreendida se apresentarmos o marinheiro ao camponês e misturarmos as conversas. A troca de experiências fará circularem os saberes — o de longe e o de antes —, e da travessia das histórias pelo espaço e pelo tempo nascerá a narrativa.

Coloque-se em lugar de marinheiros e camponeses um jovem vaqueiro americano e muitos velhos de beira de estrada ansiosos para contar-lhe suas histórias; e coloque-se como espaço e tempo o ancestral chão mexicano nos anos imediatamente anteriores à Segunda Guerra — e teremos assim um dos grandes romances já escritos neste século. “A travessia” (The Crossing), de Cormac McCarthy, forma o segundo volume de uma trilogia (The Border Trilogy), da qual o primeiro, “Todos os belos cavalos” (All the Pretty Horses), também publicado pela Companhia das Letras, ganhou os prêmios National Book Critics Circle e National Book for Fiction, em 1992. Fechando a trinca, Cities of the Plain, que reúne os protagonistas dos dois primeiros livros: John Grady Cole e Billy Parham.

Billy é um menino de dezesseis anos que cruza por três vezes a fronteira com o México, atravessa desertos, montanhas e povoados, aprende com o que descobre pelo caminho e cresce — e o que descobre pelo caminho condensa tudo o que pode haver de essencial no campo da experiência humana. McCarthy apresenta o mundo como se fosse ele mesmo um personagem, recupera motivos e temas presentes nas formas narrativas ligadas à tradição oral e consegue assim pôr os pés naquela universalidade que dá a uma história um pouco de todas as outras já escritas e por escrever. Lá estão as forças da natureza, com as estrelas a servir de guia, as tempestades a conduzir o viajante à procura do abrigo, a neve, os rios e o pôr do sol a dar corda à melancolia. Lá estão os personagens, encarnados no homem justo, no ancião quase santo e cheio de conselhos a oferecer, no bêbado que puxa a faca, na jovem mulher calada e virgem e em mais um sem-número de figuras típicas. Lá estão as crendices, os receituários, os presságios, a força da memória como condição para qualquer narrativa, a maldade. Lá está, antes e depois de tudo, o espetáculo público da morte — em todos os povoados por onde vaga o menino, em todas as casas e acampamentos e praças, haverá sempre um morto sendo velado e ensinando, com seu silêncio, o principal da vida. E o narrador, seguindo o exemplo dos clássicos narradores da tradição oral, não se detém em ponderações psicológicas; sua única preocupação é dar conta do insondável rio de acontecimentos presente em toda história.

Billy é quase um Quixote — andrajoso, profundamente só e obstinado: “Um ser saído de um tempo antigo de quem tinham apenas ouvido falar. Um ser sobre o qual tinham lido” (p. 326). Teve três boas razões para não atravessar a fronteira em direção ao México, e no entanto foi exatamente o que fez, em três viagens fadadas ao desastre. A primeira razão tem a forma de uma loba prenhe que avança a fronteira, desce pelas encostas da Sierra de la Madera e desata a matar os novilhos do rancho dos Parham, no vale do Novo México. O pai e seus dois filhos, Billy e Boyd, plantam armadilhas por toda a região, espalham líquidos pelos caminhos, na verdade odores enfrascados, distribuem iscas, lançam mão, enfim, de toda uma espécie de epistemologia da caça, acumulada e transmitida por décadas e gerações, mas não pegam a loba — que não é boba e aprendeu a desenterrar armadilhas, reconhecer emboscadas e classificar cheiros. Após muitos dias e alguns bezerros, Billy consegue, sozinho, capturá-la. Ao invés de puxar o gatilho, decide, num acesso de desrazão, devolvê-la às montanhas do México. Ata-lhe à boca aberta um pedaço de pau, improvisa uma focinheira, faz coleira e guia, encabresta a loba e parte a cavalo rumo à fronteira.

A partir daí “A travessia” esquenta e o leitor passa a sentir-se cúmplice da péssima idéia de Billy — estamos na estrada e sentimos frio e fome e medo. A narrativa não usa meias palavras e a relativa ausência de vírgulas na enumeração das ações dá à leitura um encadeamento urgente: “Ouviu os limitados movimentos do cavalo maneado e ouviu a erva se quebrar maciamente na boca do cavalo e o ouviu respirar e abanar a cauda e viu no longe ao sul bem além das Hatchet Mountains o clarão dos relâmpagos sobre o México e entendeu que não seria sepultado naquele vale mas em algum lugar remoto entre estranhos e olhou para a direção na qual o vento impelia as ervas sob o frio céu estrelado como se a própria terra estivesse sendo arremessada ruidosamente e disse com voz branda antes de tornar a pegar no sono que a única coisa que sabia entre todas as outras que se acreditava saber era que...” (p. 338). As duas outras viagens de Billy são a conseqüência inevitável do horror e do absurdo que o esperam em seu primeiro retorno à casa paterna.

Cormac McCarthy é um sujeito arredio e avesso a teorismos, prefere não dar entrevistas mas gosta de conversar sobre tudo o que existe no mundo — menos literatura. Antes de sua Border Trilogy, publicou, em 1965, The Orchard Keeper, ganhador do Prêmio Faulkner; Outer Dark em 1968, seguido por Child of God (1973), Suttree (1969) e, em 1985, “Meridiano sangrento” (Blood Meridian), editado pela Nova Fronteira em 1991. McCarthy, 65 anos, nasceu em Rhode Island, criou-se nos arredores de Knoxville, no Tenessee, serviu na Força Aérea Americana em 1953, entrou e abandonou a universidade por duas vezes, mudou-se em 1976 para El Paso, no Texas, e lá vive até hoje. O nome Cormac é um velho apelido de família e equivale a Charles em gaélico — subdivisão do grupo das línguas celtas, formado pelo irlandês e pelo escocês. Charles faz o tipo rústico errante e dizem que escreve numa velha Olivetti. Seus ambientes são vastos, arenosos e despovoados, minúsculas vilas pregadas no deserto, estradas de terra batida e encruzilhadas. Seus personagens não têm a vida fácil, são os párias, os bêbados, os miseráveis, os dementes, os que não possuem nada e quase nada podem perder, viúvas, padres sem Deus, meninos sem pai: “Mundeiros. (...) Não tinham qualquer relação de posse com nada, dificilmente com o espaço que ocupavam. (...) Esse movimento é em si mesmo uma forma de prosperidade” (p. 398). Seus temas não são propriamente domésticos ou datados; mas os mesmos temas que animaram a prosa de escritores considerados grandes, como Faulkner, Dostoievsky, Hemingway e Melville: a aspereza da vida, o crescimento às turras, o assombro diante da morte, o tenso arco de bondade e crueldade presente no coração dos homens, a procura do bom e velho e necessário sentido para a existência, a opção entre Deus ou a liberdade.

Trecho nº 1

“Os rebeldes capturados foram postos nas ruas encadeados um ao outro com fios de cerca (...) e esse homem se acercou e se pôs a examinar cada um deles (...). O homem falava bom espanhol, ainda que com sotaque alemão, e disse ao artillero que apenas o mais patético dos tolos morreria por uma causa que era não só errada como também estava condenada e o prisioneiro cuspiu em seu rosto. O alemão fez então algo bastante estranho. Sorriu e lambeu a saliva do homem em torno da boca. Era um homem corpulento de mãos enormes e as estendeu e com ambas segurou a cabeça do prisioneiro e se inclinou como se fosse beijá-lo. Mas beijo não era. Segurava-lhe o rosto e (...) o que ele fez, encovando profundamente as bochechas, foi sugar cada um dos olhos do homem e depois cuspi-los de novo, deixando-os pender, úmidos e estranhos e balançando sobre as faces.

“E desse modo ele ficou. Sua dor era grande mas maior era sua agonia pelo mundo em desordem que ele agora contemplava e que jamais poderia ordenar. Muito menos conseguia se decidir a tocar os olhos. Urrava com grande desespero e agitava as mãos diante de si. Não podia ver o rosto do inimigo. O arquiteto de sua treva, o ladrão de sua luz. Via a terra pisada na estrada abaixo dele. Uma confusão de botas. Via a própria boca. (...) Ninguém jamais testemunhara tal coisa. Todos estavam estupefatos. Os buracos rubros em seu crânio luziam como lampiões. Como se neles houvesse um fogo mais profundo que o demônio trouxera à superfície.”

Trecho nº 2

“Os fazendeiros contavam que os lobos brutalizavam as reses de um modo que não brutalizavam os animais selvagens. Como se as vacas provocassem neles alguma cólera. Como se eles estivesse ofendidos com alguma violação de uma antiga ordem. Antigas cerimônias. Antigos protocolos.

“Ela atravessou o Bavispe River e seguiu rumo ao norte. Carregava a primeira barrigada e não tinha como saber que estava numa enrascada. (...) Quando matou o novilho na neve na nascente do Foster Draw nas Peloncillo Mountains do Novo México, não comera mais do que carniça por duas semanas e tinha um olhar de acossada e não encontrava nem um rastro sequer de lobos. Comeu e descansou e comeu de novo. Comeu até a barriga arrastar no chão e não voltou. Não retornou para um chacina. Não atravessou uma estrada ou uma via férrea à luz do dia. Não passou debaixo de uma cerca de arame duas vezes num mesmo lugar. Esses eram os novos protocolos. Restrições que antes não existiam. Agora existiam.”

20 de fevereiro de 1999

"Um sinistro mistério literário"

"Um sinistro mistério literário — A estranha relação entre a arte e a vida é explorada no romance de Carol Schields, no qual uma dona-de-casa comum, após ser assassinada, se revela uma poetisa fascinante e um enigma que desafia a argúcia de biógrafos e de críticos", Jornal do Brasil, Caderno Idéias, Rio de Janeiro, 20 de fevereiro de 1999.

Resenha sobre o livro Swann, de Carol Schields, ed. Record.

Quinze anos antes de tornar-se famosa, ter seus poemas reconhecidos, ser amplamente comentada, elogiada e afinal biografada, Mary Moffat Swann, então com cinqüenta anos, saiu de sua casa, na minúscula cidade rural de Nadeau, ao norte de Ontário, Canadá, na escura tarde de 15 de dezembro de 1965, e foi para Kingston, cidadela vizinha, bater à porta de Frederic Cruzzi, que ela sabia vir dedicando-se a encontrar e publicar novos talentos literários através de sua doméstica editora, a Peregrine Press. Durante a visita, que tomou pouco mais de uma hora, Cruzzi, entre encantado e aturdido, leu os 125 pedacinhos de papel amassado com os poemas que a sra. Swann havia trazido para ele numa sacola de mão e decidiu publicá-los, pedindo-lhe apenas que lá deixasse os originais até o dia seguinte, quando lhe daria então uma resposta. Horas depois, provavelmente ao mesmo tempo em que contava à mulher, Hildë, da inusitada visita e lhe mostrava a imensa poesia circulando pela aparente rusticidade daqueles versos, Mary Swann era brutalmente assassinada por seu truculento marido, que lhe deu um tiro na cabeça, esmagou seu rosto com um martelo, desmembrou seu corpo com um machado, escondeu as partes no silo da pequena fazenda e depois matou-se — não deixando atrás de si senão um rastro de desrazão e falta de sentido.

O relato do crime saiu em maiúsculas nos jornais locais, os poemas foram afinal publicados numa modesta tiragem e sob o título de A Canção de Swann — e de Swann nada mais se ouviu falar até o dia em que um livro seu acabou descoberto na prateleira de uma cabana no lago de Wisconsin, quinze anos depois. A descoberta inspirou artigos que motivaram pesquisas que fizeram de Swann — que significa cisne e também poeta, solitários ambos, cada qual em seu canto — não apenas um fenômeno, mas principalmente um mistério literário. Infância descolorida, adolescência insossa, escolaridade medíocre, experiência profissional de um ano numa padaria, fastio, maturidade inaugurada com um casamento enjoado, existência vazia, mudança para uma fazendinha improdutiva na cidade de Nadeau, neve na porta, nascimento da filha Frances, mais neve na porta, o enfado firme do dia-a-dia — toda a vida besta de Mary Swann afinal não casa nem com a dramaticidade de sua morte, nem com a profundidade de seus versos.

Este não é o primeiro e nem o último livro de Carol Shields, que já escreveu quinze — entre eles Larry’s Party e, também publicado pela Record, The Stone Diaries (Os diários de pedra), premiado com o Pulitzer em 1995, o Governor-General’s e o National Book Critics Circle. Shields, americana mas naturalizada canadense, publicou Swann: a Mystery em 1987. Os quatro capítulos do romance têm os nomes dos quatro personagens principais, e o quinto, escrito sob a forma de um roteiro para cinema, é um simpósio cujo tema é a própria Swann, que já não existe há quinze anos e pouco deixou além dos poemas, duas fotografias, um diário idiota e uma caneta Parker 51, com a qual escrevia — objetos que vão misteriosamente desaparecendo, bem como os originais manuscritos e os poucos exemplares publicados por Cruzzi.

Abre o romance a incansável Sarah Maloney. Pesquisadora de sucesso aos 28 anos, brilhante, feminista convicta, independente, falante e solitária, Sarah descobriu o livro de Swann e desencadeou a construção do mito. No seu encalço, Morton Jimroy, famoso biógrafo de famosos poetas, céptico com relação à supervalorização da infância pela teoria biográfica, detalhista, misógino e desconfiado. Morton, bem como Sarah, não consegue encaixar a vida de Mary Swann na obra de Mary Swann, embora tenha de fazê-lo para poder viabilizar a biografia que tem em curso. Ambos perdem-se. Sarah, em especulações acadêmicas; Morton, na busca desmesurada por qualquer pequeno acontecimento que ilumine aquela estúpida existência em Nadeau.

Como contraponto ao teorismo de Sarah e ao azedume de Morton estão Rose Hindmarch e Frederic Cruzzi. Rose é funcionária da prefeitura de Nadeau, já entrou na menopausa há onze meses mas o fluxo, para seu desespero, resolvera voltar, é bibliotecária e curadora do museu local, gosta de um bom romance de suspense, é do conselho da escola dominical, é virgem e também conselheira da cidade, não sabe nada de poesia, muito menos o que pode significar, conheceu Swann na biblioteca, mora sozinha, está com um pelinho nascendo no queixo e tem uma memória de elefante. Cruzzi é o mais velho e o menos neurótico dos quatro — bondoso, sincero e simples, um humanista educado em todas as artes e todas as línguas, um solitário após a morte da mulher, Hildë, sua definitiva paixão. Diz Cruzzi, numa carta para Sarah Maloney: “...algumas vezes é melhor olhar o universo com olhos estrábicos, para sujeitar a si mesmo a uma deliberada distorção e esperar que, da visão confusa, (...) surja o acidente que representa a verdade”.

Mas a verdade é numerosa. A vida íntima de quatro solitários incuráveis em busca da familiaridade perdida em Swann e na biografia que ela não deixou registrada é o barro a partir do qual Shields vai desenvolver velhos assuntos. A solidão, hoje sob a forma de modus vivendi em cidades ricas e industrializadas — como Chicago, onde mora Sarah —, e seu efeito devastador sobre a personalidade humana. A dificuldade de se chegar ao âmago de uma existência, onde só caminharemos às apalpadelas e rodeados por sombras — donde o malogro de toda e qualquer biografia, donde o complicado relacionamento entre a vida e a arte, que nem sempre se tocam, quase nunca se imitam e em geral não se explicam.

Dois poemas de Mary Swann:

1 

Os rios desta terra 
Repuxam, rompem e matam 
E as águas do meu corpo 
Correm invisíveis. 

2 

Coisas Perdidas 

Acontece vez por outra, quando procuramos 
Objetos perdidos, um livro uma foto ou 
Uma moeda ou uma colher, 
Alguma coisa atravessa nossa mente... 
Não realmente uma sombra mas o que uma sombra viria a ser 
Num lugar em que faltava luz. 

Como se as coisas perdidas desaparecessem 
Dentro delas mesmas, os livros retornam 
Ao papel ou à madeira ou ao pensamento, 
Moedas e colheres ao simples mineral, 
Sem brilho nem história, 
Esperando fora de vista 

E tornando-se parte de uma perda maior 
Sem um nome 
Nem definição ou forma, 
Parecido com o que nos toca 
Nos momentos de humilhação.

Opções de trechos representativos dos quatro personagens principais que dão nome aos capítulos

Sarah Maloney:

“...como Swann conseguiu fazer tudo isso? Onde lhe foi possível encontrar a centelha para converter substância emblemática em ressonante poesia, naqueles desolados acres de terra em Ontário, em meio à desordem da fazenda? (...) As mulheres tricotam meias há séculos, e provavelmente constroem em suas cabeças versos que nunca chegaram a escrever. Aconteceu de Mary Swann dispor de uma caneta, aliás, uma Parker 51, e de olhos capazes de transpor a superfície das coisas. Além de uma espécie de persistência de um coração dilacerado, que a levava a sentar-se, após um dia fatigante de trabalho, e encaixar seus pensamentos em ambíguos lotes de versos rimados.”

“Minha boa amiga e mentora Peggy O’Reggis vive num universo em que os homens são apenas marginalmente visíveis. Idem para minha advogada, (...) confiável cidadã de Lesbos. Metade das minhas alunas na graduação prefere carregar os seus próprios pinos de barraca. Que se dane a estrutura do poder machista, e que se dane a penetração como expressão sexual. Elas pularam fora. Todas essas mulheres me fazem convites, literais ou subliminares. Mas algo em mim resiste.”

“De uma maneira semelhante, (...) Mary Swann inventou a poesia moderna. (...) Sem ter conhecimento da poesia de Pound ou Eliot, sem nem mesmo conhecer esses nomes, ela realizou o seu trabalho. Seus versos possuem todos os impulsos rudimentares e todas as recentes abrasões sintáticas que marcam o protótipo. Não se pode ler seus poemas sem perceber que existe uma forma em processo de criação.”

Morton Jimroy:

“Como acontece a muitos introvertidos, Jimroy desconfia dos caprichos do mundo interior da psique, mas nutre uma fé enorme no mecanismo do mundo exterior, que diz respeito a governo, maquinaria, arquitetura e ciência — que entende como sendo presidido por autoridades, anônimas mas confiáveis, capazes e, o mais importante, imbuídas de boas intenções. (...) Uma raça de homens e mulheres incompreensíveis (para ele) assumiram a responsabilidade pela sua segurança, estão desejosos de criar regulamentos, de estabelecer padrões, e de gerar um sistema inteiro de checagens e contraprovas. Quando ele gira o botão do forno de microondas (...), tem como certo que os minúsculos raios penetrem no alimento e não nele...”

“Jimroy detesta a falácia popular de que o biógrafo cai de amores por seus biografados. (...) Tão fácil, tão aprazível, este romance entre o escritor e o biografado; tão estimulante, tão querido, (...) tal convite ao sentimentalismo. E é, em certo sentido, irmão de uma outra concepção equivocada, que as pessoas alimentam sobre quem escreve romances: de que, a partir de um certo ponto, o livro adquire vida autônoma e começa, como adoram dizer, a escrever-se por si próprio. (...) Jimroy sabe muito bem que escrever uma biografia é o trabalho mais árduo do mundo, e que tem iguais chances de constituir-se ou não um ato de desprezo. Basta pensar em Sartre escrevendo sobre Flaubert. Ah, Deus. E — para não ir tão longe — quem conseguiria amar Erza Pound? Não ele, com certeza, não Morton Jimroy, um moralista manqué.”

“...chegou a se perguntar se era a própria poesia que começara a desprezar. Sem dúvida, vinha nutrindo desconfianças sobre seu sintetismo e sua forma hermética. Era tão fácil um poema ser nada mais que uma fraude — qual a diferença real entre uma elipse e um vácuo? (...) Sempre lhe parecera uma espécie de milagre que a poesia, realmente, em certas ocasiões, falasse. (...) não podia enxergar nada mais admirável do que o desejo impertinentemente humano de dominar o mar da linguagem comum e extrair dele palavras dotadas de riqueza, de beleza oculta, arranjando-as de tal maneira que o indizível pudesse ser dito.”

Rose Hindmarch:

“Rose é uma mulher feliz; sua rotina torna-a feliz. Bem cedo, pela manhã, (...) enche-se de expectativas a respeito do dia que tem pela frente. (...) E, nas noites de sexta-feira, logo cedo mergulha em seu pijama e enfia-se na cama, para ler. São apenas sete e meia, ainda está claro lá fora. (...) Pode ser que não pare de ler antes da meia-noite, ou até mais tarde. Amanhã será sábado; poderá dormir até a hora que quiser.”

“No entanto, a poesia apresenta um problema para Rose. À exceção do livro de Mary Swann, ela sente dificuldades em entender do que falam, e mesmo com a sra. Swann não é sempre que isso acontece. ‘Os aposentos em minha cabeça estão despidos / O trovão escova meu cabelo.’ Mas, o que ela está querendo dizer com este poema? Certamente, aposentos simboliza alguma coisa, mas trovão? ‘O outro lado do espelho / Abre-se para o lugar onde me escondo.’ Sem pé nem cabeça. Quem pode entender isso?”

Frederic Cruzzi:

“Os poema de A Canção de Swann foram desdenhados pela maioria dos críticos como mera curiosidade com bom acabamento, e os 250 exemplares que a editora imprimiu venderam muito mal. No final, ele e Hildë acabaram distribuindo-os, guardando apenas quatro. Eram justamente este quatro exemplares que estavam faltando. Contemplando a estante, Cruzzi sentiu-se atingido pela idade avançada, pelo seu desespero, e por saber que um ato de represália, há muito adiado, acabara de ocorrer. (...) Sentiu a vista turvar-se ao dirigir-se para o pequeno quarto de dormir nos fundos (...). Abriu a porta. (...) As gavetas do arquivo estavam abertas, e o conteúdo havia sido espalhado pelo quarto todo. (...) Supôs que devia ficar agradecido, mas em vez disso seu rosto conturbou-se de lágrimas.” 

1 de fevereiro de 1999

"A cabine"

“A cabine”, Ficções, Rio de Janeiro, ed. 7Letras, 1999, v. 3, p. 54-63. (ISSN: 1415-9775).

2002: O conto “A cabine” foi roteirizado por Rosane Lima para o episódio de estreia do programa “Brava Gente”, da TV Globo, veiculado no dia 9 de abril de 2002, com Marília Pêra e Antônio Fagundes nos papéis principais.

Dona Amélia chegou à sua casa, como de costume, às sete e meia da noite. Está com alguns embrulhos na mão e mais uma vassoura nova, porque aquela, realmente. Encosta tudo ao pé da porta, cata a chave na bolsa e pensa no jantar. Entra, põe os embrulhos no chão e acende as luzes. Tudo para o armário, rápido, a vassoura a um canto, direto para o banho, já pode o bife ficar de fora para adiantar. Pendura a bolsa no cabide da sala, vai para o quarto, que não é quarto, é sala, é tudo a mesma peça, tira o colar, o relógio e os brincos, senta-se no sofá, que é também uma cama, tira os sapatos e as meias, tira também a blusa e se levanta, para tirar o resto. Quatro passos e está no banheiro.

Entra no box, passa a mão pela barriga enquanto espera a água esquentar, passa a mão pelos peitos e pela bunda e dá um suspiro. Já saiu do banho mas decide não pôr camisola porque terá de ir à rua para telefonar, e a fila em frente à cabine. Nem cinco minutos e estará pronta. É cedo para ligar a televisão, a cena em que eles finalmente se encontram e descobrem quem são de fato deve ser só no fim. Onde está a revista? O arroz. Vai para a beira do fogo, mete numa panela o purê e o arroz e o bife na frigideira. Senta-se no sofá, relaxa os ombros e abre lentamente as mãos, deixando as palmas estendidas para o teto da sala, que é também o da cozinha. O do banheiro era diferente, azulejo, azulejo porque era azul, azulejo clarinho. Suspira longamente e lembra-se do bife. Arruma a mesa num instante e se senta. Pensa na fila em frente à cabine, engole em dez ou doze garfadas o arroz e o purê, em sete pedaços o bocado de bife, engole em seco, para adiantar, meia pastilha de sal de fruta e vai.

Chovia quando chegou à rua, e havia também um homem ocupando o telefone. Mas o homem não falava com ninguém e apenas fazia a cabine de abrigo. Dona Amélia corre para ele, bate no vidro e grita. “O senhor não está usando!” “Mas estou seco”, disse ele, abrindo a porta. “E eu, molhada.” “A senhora me perdoe. Eu espero lá fora.” “Obrigada.” Dona Amélia toma posse da cabine e liga para o filho. Ocupado. Tenta de novo. Ocupado. Vira-se dona Amélia para trás e procura pelo homem, que ocupa um canto da calçada, próximo ao meio-fio, já encharcado. Volta-se dona Amélia para o telefone, tenta de novo, ocupado. Vira-se rapidamente, a chuva aumentou e lá estava o sujeito. Dona Amélia abre a porta. “O senhor não quer tentar agora? O meu número está ocupado!” “Não, obrigado! A senhora fique à vontade!” “Mas o senhor não vai ligar para ninguém?” “Não, obrigado”, e ele se aproximou. “Quem eu procuro não está em casa. Liguei pela primeira vez tem um minuto, e a pessoa não está em casa.” “E o senhor está esperando o quê?” “Que a senhora termine de falar e eu possa voltar para o meu abrigo.” “E o senhor vai passar a noite inteira aqui?” O homem não respondeu.

Paciência, mas o pior era a novela. Não pusera o relógio e era preciso controlar o tempo. Abriu a porta e gritou. “O senhor tem horas?” “Não, mas daqui a pouco sei que vai começar a novela!” “Ah, obrigada!” Pelo menos o homem sabia da novela. Dona Amélia voltou-se lentamente, bem mais calma, e recomeçou a discar. A responsabilidade pelo horário da novela estava agora nas mãos dele. Não iria preocupar-se à toa. Sempre ocupado. “Diabo.” E foi só dizer diabo para arrepender-se. Ergueu os olhos, o teto da cabine era de fibra, e meteu a cabeça para fora. “O senhor tem algum pedaço de madeira aí à mão?” O homem tirou as mãos do paletó, mirou as palmas como para confirmar que estavam vazias e levantou os ombros. Mas teve o impulso de olhar em volta e assim descobriu, perto do ralo, um pedaço de pau, que pegou, sacudiu de leve e foi entregar à dona Amélia. “Obrigada. Não, não, não. O senhor segure, mas segure firme.” E ela deu três batidinhas na madeira e com isso acordou os deuses, o deus, que no caso de dona Amélia era um só, o que havia sobrado. E repreendeu-se, não tanto por invocar o diabo, mas por ter acordado aquele que nunca dorme e, talvez por isso, também nunca acorde. Abriu os olhos e reparou que o sujeito ainda estava lá, plantado na chuva e com o pedaço de pau à mão.

“O senhor quer tentar?” O homem baixou a cabeça, olhou para a madeira e depois para dona Amélia e disse que não, que não acreditava nessas coisas. Dona Amélia sorriu e virou-se. Partia para mais uma tentativa quando sentiu a tempestade bem em cima da cabeça e a cabine a vibrar com as bagas que caíam. Teve uma idéia. Olhou para trás e viu que o homem já se tinha afastado. “O senhor pode voltar aqui, por favor?”, gritou. E olhou-o bem de perto. “O senhor está encharcado. Eu estava pensando, o senhor poderia ficar aqui dentro comigo até eu falar com meu filho, se o senhor não se importar, é claro. Ainda está ocupado. Quando desocupar, o senhor volta para a chuva. O senhor sabe, a privacidade. É uma situação de emergência esta.” “Muito obrigado. Então eu vou virar de costas e assim a senhora fica mais à vontade.”

Apertaram-se como puderam, dona Amélia tentou três vezes e desistiu. Olhou então para o vidro embaçado e depois para os números do teclado, desatarraxou o boca do telefone, leu e releu as instruções no painel, ia vendo, enfim, se matava o tempo, quando sentiu por trás uma encostadela. Era improvável não se encostarem, o espaço era para dois pés. Dona Amélia achou melhor falar. “Com licença”, e encararam-se. “Talvez o senhor devesse ligar mais uma vez. A pessoa pode ter chegado. Com uma chuva dessas, só mesmo alguém muito esquisito para sair por aí. Não me refiro ao senhor, é claro, que deve ter lá suas razões para estar na rua com um dilúvio desses, mas.” O homem sorriu. “Nem sei se tenho.”

Dona Amélia baixou a cabeça e espremeu os dedos do pé, involuntário gesto de defesa em momentos de grande embaraço. Só faltava o sujeito começar um chororô ali dentro da cabine. O que deveria ela dizer agora? “Bom, se o senhor não sabe”, foi o que disse. “Talvez eu venha a saber, mas só depois.” “Depois do quê?” “De falar com ela.” Dona Amélia, que não tinha mais nada a declarar, virou-se. Virou-se ele também. Um minuto depois o homem sentiu uma coisa dura a bater em suas costas, era dona Amélia estendendo-lhe o fone. “O senhor só vai saber se falar com ela, e só vai falar com ela se tentar.” E revezaram-se. Dona Amélia olhou para a calçada, depois para cima, para a chuva, depois para as poças no chão, para o ralo, para o pedaço de pau, lembrou-se do diabo, do filho e também das horas. Voltou-se ansiosa e viu que o sujeito ainda estava discando, talvez o último número. Não, havia mais um. O disco girava lentamente na volta, tempo bastante para que o homem checasse no pedacinho de papel de pão o número rabiscado, pouco discado, provavelmente nunca usado. Mais um número, este era pequeno, deve ser o um ou o dois. Era o um. Agora mais um, era o um de novo. A cabine que ficava três quadras adiante era mais moderna, com telefone de teclas.

“Como eu disse, ninguém atende.” Dona Amélia assustou-se com a voz do homem. Estava longe, no seu próprio telefone, que não ligava, só recebia, e tentava lembrar-se de que tipo era, se de teclas ou de disco, provavelmente de teclas. “O senhor tentou quantas vezes?” “Duas.” “Não quer tentar mais?” “Não. Já são horas.” “Isso. Eu estava para perguntar alguma coisa para o senhor e não me lembrava. Agora lembrei. A novela.” “Que é que tem a novela?” “Já começou?” “Vai começar agora.” “Hoje é a cena em que eles finalmente se encontram e descobrem quem são de fato.” “A senhora tem razão.” “O senhor mora por aqui perto?” “Não. Moro em outra cidade.” “Mas está decerto nalgum hotel.” “Também não. Cheguei hoje e hoje volto. Quer dizer, se não conseguir falar com a pessoa que procuro, volto hoje.” “E se conseguir?” “Se conseguir falar com ela? Não sei.” “E o senhor acompanha a novela?” “A novela é sagrada.” “E o senhor vai assistir à novela onde?” “Vou tentar um desses botequins com televisão.” “Ah.”

Dona Amélia respirou fundo. O homem parecia simpático. Educado, barba feita, cavalheiro, um pouco curto nas palavras, mas simpático. Era gente de bem, dava para ver só de olhar. Ainda por cima, pobre homem, com aquela chuva, chegado de viagem, tentando encontrar uma pessoa, pelos vistos uma mulher, talvez um amor antigo, como às vezes acontece na vida real e quase sempre na novela. Dona Amélia respirou muito mais fundo, tinha de decidir agora. Não. Era melhor não inventar moda, mas quando deu por si já tinha aberto a boca. “Se o senhor quiser assistir à novela em minha casa, eu moro aqui mesmo em frente”, disse, e emendou. “O senhor não faça essa cara e não fique pensando que, bom. Eu só estou fazendo isso porque a situação em que o senhor está, convenhamos. Eu, por mim, jamais perco a novela. E o senhor está correndo um grande risco de perder o capítulo de hoje, sem falar no risco de ficar perambulando por essa cidade.” “Não, não. A senhora não entendeu minha surpresa.” “O senhor é que não entendeu a minha boa intenção. Eu moro sozinha, é verdade, mas tenho vizinhos atentos. E só estou fazendo este convite porque sei o que é perder um capítulo, a gente depois não pega nada, e porque já posso ver a gripe que o senhor vai pegar e, bom. Eu bem sei que nós não nos conhecemos, mas o senhor me pareceu gente de bem, assim como eu, de modo que.” “A senhora me desculpe se me mostrei surpreso, mas na cidade grande a gente não espera esses gestos. Muito prazer, meu nome é José, e estou encantado e muito agradecido com o seu convite. A senhora se chama?” “Hum, Marta, mas pode me chamar de dona Marta.” “Dona Marta, se eu fiquei surpreso, foi com sua generosidade, acredite.” “Bom, senhor José, nesse caso.” “A senhora ainda quer discar para o seu filho mais uma vez?” “O senhor não disse que a novela estava para começar?” “Já começou tem dois minutos.” “E o senhor sabe disso como, se não tem relógio?” “Eu liguei para a hora certa enquanto a senhora estava de costas.” “O senhor é esperto.”

Quando saíram do elevador, dona Amélia ainda tremia. Só faltava aparecer alguém e topar com ela ali, acompanhada de um sujeito, o sujeito tinha nome, é verdade, era o senhor José, ou João, não importa, mas disto ninguém sabia, só ela. Ela mesma, se a encontrasse ao lado daquele sujeito vestido de preto e mais parecendo um corvo, estancaria à porta chocada. Mas não há o que temer, nem o que tremer, não há mal algum em convidar um estranho que não é mais estranho, estranho não tem nome, e esse tinha, era o senhor José, ou João. Convidar um amigo para ver a novela é a coisa mais natural do mundo. Dona Amélia, enquanto catava a chave no bolso, pensou alto. “Hoje é a cena em que eles finalmente se encontram.” “Mas isso, dona Marta, eles só vão mostrar no final.” Dona Amélia concordou com um grunhido e tomou a dianteira. “É por aqui, o senhor não repare, a casa é pequena mas o sofá é confortável.”

O senhor José parou à soleira e olhou à volta. A sala, que pelos vistos era também um quarto e uma cozinha, tinha um sofá para três, logo à frente uma televisão suspensa no teto por um suporte de ferro brilhante e embaixo da televisão um armário de roupas ao lado de uma mesa com restos de um jantar e duas cadeiras. “Com a sua licença, dona Marta.” “O senhor fique à vontade.” “A senhora mora num apartamento muito bonito e aconchegante.” “Obrigada. São os olhos do senhor.” “Decerto que são. É com eles que posso ver que a senhora tem muito bom gosto.” “O senhor precisa de um café. Use o banheiro para se secar. Depois de seco, pode sentar no sofá.” O senhor José obedeceu, dirigiu-se ao banheiro e, feliz, trancou-se. Não achou estranho estar ali. Estranho era aquele teto de azulejos. Ficou lá o tempo que dona Amélia levou para arrumar a mesa e providenciar dois cafés e uma cadeira, que encaixou ao lado do sofá.

Sentaram-se, mas a novela não havia começado. O que viam eram as fagulhas e os chuviscos do canal sem sintonia, a tela cinza da tevê a fritar sua própria imagem num caldo de bolinhas brilhantes e barulhentas. “Quando chove é sempre assim”, disse ela. E em um minuto os olhos de ambos já haviam baixado da televisão para o armário, do armário para a mesinha e da mesinha para as duas cadeiras. E passeando pela sala, e tentando não se cruzarem, acabaram os quatro olhos reunidos numa pequena prateleira próxima à pia da cozinha. Dona Amélia baixou a cabeça e espremeu os dedos do pé. Na pequena prateleira próxima à pia da cozinha estava o telefone. “O senhor já deve ter percebido que eu tenho um telefone”, começou, rápida, antes que o sujeito pensasse que ela era louca ou estava devendo à companhia telefônica. “Sim, é verdade. A senhora tem um telefone.” “Sim, e o problema é que eu não consigo dar...”, interrompeu a si mesma para reprimir um bocejo, “... só receber telefonemas. O senhor me desculpe.” “Imagine. E a senhora já esteve com um técnico?” “Não. A última pessoa foi meu marido.” “Seu marido?” “É. Ele bem que tentou um pouco antes de morrer. Ligou para a companhia telefônica, eles disseram que o problema era aqui no prédio, e até hoje.” “Quanto tempo tem isso, dona Marta?” “Uns dois meses.” “Oh, então é recente? Meus sentimentos.” Dona Amélia apenas disse: “O café esfriou”.

Esvaziaram mesmo assim as xícaras, concentrados no barulho da televisão fritando e da chuva caindo, e quando o silêncio estava para virar pedra dona Amélia abriu a boca, “O senhor quer mais café?”, ao mesmo tempo em que ele, “A senhora sabe, eu estava tentando ligar para uma moça...” “O senhor quer mais café?” “Não, obrigado. Uma moça não é bem a palavra, o tempo passou, e hoje, depois de quase trinta anos...” “O senhor por favor não se sinta na obrigação de me dar satisfações.” “Sim, não, mas é que a senhora me pareceu intrigada desde o início, e...” “O senhor nem pense uma coisa dessas. Eu me preocupei com a chuva, com a possibilidade de o senhor se resfriar e com a novela, principalmente com a novela, que, a julgar pela hora, já começou.” “Pois é, talvez uma pancadinha lá em cima”, e ele já se ia levantando para bater na televisão quando a cara bem barbeada do moço do noticiário apareceu falando que em virtude de problemas técnicos relacionados ao temporal nas antenas de transmissão a novela poderia atrasar alguns minutos, talvez muitos.

E dona Amélia, que não sabia mais o que dizer, disse: “Bem”, pegando a bolsa e a chave e apenas olhando para o guarda-chuva, “talvez seja melhor telefonarmos novamente”. “Se a senhora quiser, dona Marta, vou sozinho. Ligo para o seu filho e, caso não esteja ocupado, peço a ele que ligue para cá. Assim a senhora não se molha”, e o senhor José, orgulhoso da própria inteligência, sorriu com tanta simpatia que dona Amélia quase, quase disse a ele que senhora estava no céu, ao lado do senhor, e que ele poderia chamá-la mesmo era de Amélia, ou Mélia, que era como a irmã a chamava. Mas lembrou-se a tempo de que havia dado nome falso e que o filho, esquentado como quê, desligaria na hora, dizendo não conhecer nenhuma Marta, e pronto. Passava ela por mentirosa e desconfiada aos olhos do senhor José, que tão boa pessoa parecia ser. “Não”, disse, “eu vou com o senhor.” E desceram juntos.

Espremeram-se dentro da cabine e, mais uma vez molhados, fizeram ambos as suas tentativas. O sinal de ocupado cortava todas as esperanças de um contato imediato, mas permitia a permanência da certeza de que havia alguém em casa. O chama chama e ninguém atende mantinha as esperanças em suspenso, mas fazia crescer, a cada novo toque, a incômoda suspeita de que a casa só não estava vazia porque havia lá um telefone a apitar, como um velho surdo gritando na escuridão de um quarto. Para o senhor José, pouca coisa mudava, era apenas uma questão de continuar cada vez mais sozinho.

Olharam-se ao fim de alguns minutos e sorriram, amarelos e desapontados. Invertidos os sinais, o mundo seria diferente. Dona Amélia, preocupadíssima por não saber do paradeiro do filho em noite tão tempestuosa. O senhor José, um tanto ansioso, muito ansioso, uma pilha de nervos, sabendo que o telefone do seu amor de infância poderia, tão subitamente como uma parada cardíaca, desocupar. E ele teria de dizer quem era e o que queria, explicar tudo desde o início e preparar-se, talvez, para o desinteresse e o silêncio, ao fim do qual ele pediria desculpas e desligaria. Mas o mundo não era assim, ou assim não estava.

Voltaram a sorrir um para o outro, amarelos e desapontados, e correram aos pulinhos para a portaria do prédio. Entraram e reuniram-se para um novo café ali mesmo, ao pé do fogão, sentindo-se ambos mais à vontade. “Pelo menos esta minha viagem não foi tão perdida assim.” “O senhor veio de muito longe?” “Umas cinco horas daqui.” “Mas por que é que veio? Quer dizer, se a pergunta não for indiscreta e...” “As respostas, dona Marta, é que são indiscretas, não as perguntas. Há muitos anos venho sonhando em vê-la pessoalmente. Então pensei que poderia ligar, pedir seu endereço, dizer que quero escrever e depois aparecer em sua casa de surpresa, alguns minutos depois de ter ligado. Ela abre a porta e eu a vejo enfim, não sei se mais ou menos bela, porque o rosto que vejo é o rosto de uma menina, e colocar trinta anos sobre o rosto de uma menina...” “E ela, bem...”, ia dizer dona Amélia. “Ih, dona Marta, é uma longa história essa”, e o senhor José fechou os olhos. “Aqueles amores que não acontecem quando têm de acontecer e a gente fica o resto da vida a imaginar como teria sido a vida se tivessem acontecido ou como poderá vir a ser caso ainda aconteçam.” Dona Amélia balançou as mãos. “Não, eu ia perguntar se o senhor por acaso se informou antes para saber se ela não está casada ou se não se mudou...” Ele abriu os olhos e por alguns segundos não disse nada, apenas encarou-a como se tivesse que decorar seus traços para toda a vida. Enfim falou. “Não tenho o endereço, apenas um número de telefone e a informação de que mora pelas bandas da rodoviária.” “Este bairro é grande”, disse ela. “Do tamanho da minha cidade”, disse ele.

E dona Amélia lembrou-se de que a cena em que eles finalmente se encontram e descobrem quem são de fato iria ao ar naquela noite. Não iria mais. A novela e toda a programação prevista para as próximas quatro horas seriam transferidas para a noite do dia seguinte. Era o que dizia a televisão, em letras brancas e antipáticas sobre um fundo cinza escuro tão discreto que ainda não haviam dado por ele quando enfim se sentaram, já sem assunto, para ver se viam a novela. E foi tanta a decepção, tão súbita a pancada nos ânimos, que permaneceram mudos e perdidos, como se tivessem sido roubados e sobrassem apenas as mãos abanando, os bolsos vazios e toda a vida pela frente.

Dona Amélia ficou desnorteada. O que deveria fazer? Fazer sala, servindo uma bebida forte e transformando tudo aquilo, enfim, em uma visita, ou não fazer nada e esperar que ele faça? E o que deveria ele fazer? E o que ela gostaria que ele fizesse? Dona Amélia ainda olhava para a televisão, como se não pudesse compreender o objeto barulhento que tinha diante de si, quando a resposta veio, súbita e estridente. “Deve ser o seu filho”, disse o senhor José. “É ele com certeza”, disse ela, já de pé e claramente aliviada. “Ninguém mais, além do meu filho, tem o meu número”, e atendeu.

Não falou ela três frases. “Tudo bem, filho?” “Tudo ótimo, mãe, e você?” “Tudo bem.” E a ligação caiu. Mais que depressa o senhor José, que não queria de modo algum estar ali ao lado enquanto mãe e filho matavam saudades, aproveitou a queda para despedir-se. E o fez rapidamente, porém com método, agradecendo primeiro pela confiança e depois pela hospitalidade com que ela o recebera em sua casa. “Antes que meu filho volte a ligar”, disse ela, já à porta, “prometa-me que voltará a tentar falar com ela ainda esta noite.” “Prometo”, disse ele, e emendou, “o meu ônibus sai à uma da manhã, vou tentar ligar para ela antes disso, deixo tocar três vezes. Não era esta a minha idéia, mas a senhora está pedindo, e eu, como única forma de agradecimento possível, prometo”, e o senhor José saiu da porta para a chuva.

Dona Amélia esperou até às onze mas o filho não voltou a ligar. Não era a primeira vez que isso acontecia, e não era grave, já que o telefonema, apesar de curtíssimo, dera conta do recado. Mãe e filho passavam bem, e ambos sabiam disso, e sabiam também que já era tarde e que aquelas eram horas de se estar na cama. Mas dona Amélia demorou a dormir. Pensamentos sem contorno, imagens fugidias e lembranças desconectadas corriam sob suas pálpebras enquanto duravam todos aqueles minutos que vêm antes do sono profundo.

Restos do dia que passou, das compras do supermercado, da vassoura nova, tudo ao pé da porta, quatro passos e estava no banheiro para tomar banho e passar a mão pela barriga e pelos peitos e pela bunda. E a calcinha nova, o sutiã novo e o vestido apertado para ir para a rua para ligar para o filho e para encontrar-se com o homem na cabine do telefone, sob a tempestade. Restos da noite que passou passam por dona Amélia, que não pôde assistir ao momento em que eles finalmente se encontram e descobrem quem são de fato. “Mas isso, dona Marta, eles só vão mostrar no final.” “O senhor é esperto.” “Mas estou seco.” “E eu, molhada.” “Então eu vou virar de costas, assim a senhora fica mais à vontade.” “E o senhor está esperando o quê?” “Vou tentar um desses botequins com televisão.” “O senhor tem algum pedaço de madeira aí à mão?” “Não, mas daqui a pouco sei que vai começar a novela.” “Diabo.” “A novela é sagrada.” “Este bairro é grande.” “A senhora se chama?” “O senhor sabe, a privacidade.” E quando dona Amélia sente enfim todo o peso do corpo... “Aqueles amores que não acontecem quando têm de acontecer.” “Sim, e o problema é que eu não consigo dar...” “Meu nome é José.” Ela começa a sonhar. “A última pessoa foi meu marido.” Dispara o telefone na escuridão do apartamento. “Deve ser o seu filho.” “Hum, Marta, mas pode me chamar de dona Marta.” “O que tenho é apenas um número de telefone.” “Ninguém mais, além do meu filho, tem o meu número.” “Nem sei se tenho.” “Bom, se o senhor não sabe.” Dispara, súbito e estridente, o segundo toque. Dona Amélia vê em sonhos a calçada, a chuva e, lembrando-se do diabo, o telefone. O sujeito ainda estava discando o último número. Não, havia mais um. Os números do disco giravam lentamente em volta da cabeça de dona Amélia. “Ninguém mais, além do meu filho, tem o meu número.” Era um número de telefone pouco discado, provavelmente rabiscado num pedaço de papel de pão. Agora mais um número, pequeno, que deve ser o um ou o dois. Era o um. Agora mais um, era o um de novo. É quase uma da manhã, dispara o terceiro e último toque. Dona Amélia dorme fundo.

fev. 99

1 de janeiro de 1999

Tribo (Campos de Carvalho)

Campos de Carvalho, Tribo, ed. Pongetti.

Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, Editôres, 1954

Palavra dos editores:

Este é um livro desconcertante.

Não se situa em nenhum gênero conhecido, nem tampouco procura situar-se. Escreveu-o o autor sem qualquer plano preconcebido — no ônibus, nos cafés mais infectos, até no meio da rua — pelo prazer único de conversar consigo mesmo, já que lhe faltavam confidentes com os quais pudesse trocar idéias ou simplesmente combater o próprio tédio.

Se resultou num livro triste apesar de tudo, não terá sido certamente por culpa do autor, que nele usou e abusou do direito de ironizar a vida, os outros e sobretudo a si mesmo, com uma audácia que não será muito comum nestes tempos de evasivas, de reticências e de hesitações. O humour — por vezes cáustico e impiedoso — foi a única norma que se impôs o autor nesse tête-à-tête personalíssimo a que se viu forçado numa cidade de quase três milhões de habitantes (sem contar os fantasmas) o que não impediu que muitas de suas páginas descambassem para o lirismo mais puro ou para a jeremiada mais inconsequente, como de resto ocorre a todo espírito que se vê entregue à própria sorte e se põe a imaginar o que poderia ser a vida se não fôsse o que é e há de ser eternamente, enquanto durar o mundo.

Irmãos Pongetti Editôres – Rio de Janeiro