10 de dezembro de 2018

Bananadas e paçocas

Ilustração: Alice Batella

Sempre me orgulhei dos meus bons dias. Digo os bons dias em bom som, com bom humor, olhando nos olhos do recebedor. E são todos, ou quase todos. Começo a manhã pelos porteiros, continuo pelos motoristas de ônibus e pelas pessoas ao lado de quem me sento. Sigo pelos guardas da entrada do clube onde nado, e bom dia à salva-vidas da piscina, bom dia aos técnicos, aos funcionários do vestiário, aos motoristas da volta, às meninas do café onde bebo a minha média e como o meu pão de queijo, e a quem cruzar o meu caminho ao longo de toda a manhã. E das boas tardes passo às boas noites, e sigo na boa.

Até que ela apareceu numa manhã, sentada, afastada da esquina onde moro e num trecho esburacado da calçada. E lá se acocorou muito encolhida, abraçando os joelhos e tendo ao lado um potinho com bananadas e paçocas. Nunca comprei as bananadas e paçocas, evito olhá-la nos olhos, evito dar-lhe dinheiro e nunca lhe dei bom dia. Fico sem graça, um pouco por mim e mais por ela, ali, agachada, os joelhos abraçados como se já não pudesse abraçar coisa alguma, e por isso abraça os próprios joelhos.

Terá entre cinquenta e sessenta anos, negra, baixa, muitíssimo magra, e o espaço que ocupam aquele tronco mirrado e aqueles joelhos abraçados é mínimo. Por ela muitas pessoas vão e vêm, e é assim que vê o mundo, de baixo, à altura de canelas. Todos apressam o passo quando a veem de longe, e por ela passam com as cabeças viradas — um pouco para o lado para fugir do seu olhar magro. E eu faço o mesmo.

Quando lhe dou moedas e notinhas, o coração um pouco acelerado, rejeito as bananadas e paçocas. Eu deveria receber as bananadas e paçocas, que são, afinal, produto do seu comércio. Mas não. Por que tantos sentimentos envolvidos, e o meu coração um pouco acelerado?

Sinto culpa por mim, caminhando em direção a uma média com pão de queijo integral e podendo dar-lhe dinheiros que para mim pouco significam, já que estão sendo dados, e para ela muito significam, já que estão sendo recebidos. E sinto vergonha por ela, que poderia estar recebendo uma remuneração pelo seu comércio, não fosse eu, atrapalhado na minha culpa, negar-lhe esta dignidade. Se eu aceitasse as bananadas e paçocas, as moedas e notinhas não se transformariam em esmola e aquela mulher, que sorri e sempre me agradece, não seria para mim uma mendiga.

Nunca lhe dei bom dia, até o dia em que, me olhando magro e me oferecendo bananadas, quatro por dois reais, ela me deu, como sempre deu, o seu “bom dia”. E eu, coração e passo acelerados, devolvi o cumprimento com um “hoje não tenho trocado”, e segui em frente. Foi quando ouvi, atrás de mim e vindo de baixo, o seu recado: “Estou apenas lhe desejando bom dia, senhor...”.

Seu nome é Eliane, mora em Parada Angélica, “pra bem dentro de Caxias, senhor...”, e não faz as bananadas e paçocas; compra-as feitas e vende por quase o dobro. Escolheu o trecho esburacado da calçada, afastado da esquina, porque o moço do cabeleireiro ordenou que ela não ocupasse a esquina da rua porque senão afastaria as clientes do seu salão.

Antes de acabar este texto, e muitos outros textos, já lhe dei bom dia. Agora dou sempre o meu bom dia à Eliane, pago-lhe pelo seu trabalho, e venho colecionando bananadas e paçocas.

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Ilustração:
Alice Batella

3 de dezembro de 2018

A pulga, o fantasma e a pedra


As eleições decidiram-se, e veio uma ressaca. Nunca fui um atento observador da política brasileira, mas sempre escrevi movido por algo em que acredito, e sempre sobre este algo: liberdade de expressão, amor e dignidade, e os seus opostos, claro, e sob um véu ficcional encontrei e pratico a minha revolução íntima. Neste período eleitoral segui escrevendo, desta vez com menos véus e mais concretude imediata, e de modo a tentar entender e comunicar a situação nada ordinária por que estamos passando. Senti-me motivado para me opor a uma candidatura danosa para (quase) todos, porque vivi desde o início a convicção de que não estava me posicionando apenas politicamente, mas filosófica e moralmente. Bolsonaro representa tudo o que vejo como errado. Através de amigos e amigos de amigos vi o que já veio e virá.

Ao mesmo tempo, e isto é muito meu, uma pulga sempre me incomodou: e se eu estiver errado, ou, ao menos, não estiver vendo que a minha convicção será sempre a convicção de quem está de um lado do campo; é a convicção de todas as pessoas que se julgam certas; é a convicção de quem acredita que, se existe uma razão a ser defendida, esta razão está do seu lado? Não será isto defender uma verdade que julgamos única? Não será isto não ver que se está agindo de forma parcial?

Um dia, num bar, a conversar com amigas e a ratificar o absurdo que é votar em Bolsonaro, olhei para uma mesa ao lado e vi um grupo de homens a rir. E pensei: e se eles estiverem falando do mesmo assunto, só que às avessas? E se estiverem também convictos de que só há uma única coisa a fazer: votar no Bolsonaro? E se estiverem certos de que, se existe uma razão, esta razão pertence a eles?

Esta pulga, no entanto, fui aos poucos vendo que não passava mesmo de uma pulguinha. Depois de assistir a tantos depoimentos e argumentos de eleitores e simpatizantes do Bolsonaro, percebi que muitos todos nutrem uma convicção apaixonada; a convicção de que estão prestes a eleger um messias, salvador, alguém possuidor, sim, de uma verdade localizada acima das inúmeras verdades que um mundo complexo como o nosso tem. E disse a mim mesmo: a verdade que defendo implica sempre o seu próprio questionamento em nome da complexidade da vida, ao passo que a verdade de muitos eleitores do Bolsonaro faz questão de ser uma verdade excludente, absoluta, que não admite duvidar de si própria. Nem mesmo esta simples dialética consegui encontrar no pensamento de algum eleitor do Bolsonaro: identificamos a nossa própria posição, a seguir avaliamos os aspectos da posição oposta, pesamos as duas, e depois, só depois, fazemos conscientemente a nossa escolha final, admitindo o que consideramos certo e afastando o que consideramos errado. Este caminho precisa ser feito.

No entanto, o que vi? Vi uma polarização inconcebível transcendendo a esfera política. Vi de um lado defensores de ideias muito básicas e óbvias (não violência, não preconceito, não racismo, não machismo, não ignorância), e do outro os que acreditam que tais ideias não são básicas e óbvias; não são relevantes para o tipo de sociedade que idealizam para o país. E então, depois de ouvir com atenção tudo o que a minha pulga relativizadora tinha a dizer, dispensei-a.

Afastada a pulga, pude me ocupar do que imaginei ser um fantasma defensor de sua legítima presença — imagem com que nomeio outro posicionamento diante desta eleição: a proposta de um voto em branco. Ouvi, ponderei e debati com pessoas muito inteligentes, sensatas e dignas, e estas pessoas expuseram o seu raciocínio: o de que Bolsonaro e o PT engravidaram um do outro, e são fortes na medida da força um do outro, e por isso se retroalimentam. Nomeio assim os dois campos adversários (um homem versus um partido) porque é exatamente disso que se trata: um homem vestido de “mito” e uma organização política ampla, desuniforme, importante mas pouco questionadora de si mesma e pouco dada a uma revisão crítica de sua história de erros e acertos. Não fosse o PT ter sido o que foi, disseram-me, e Bolsonaro não seria o que é. Isto não monta um raciocínio infalível, porém é plausível, sensato e faz sentido.

Não é infalível porque fenômenos semelhantes ao Bolsonaro têm força e oportunidade o suficiente para surgir em contextos sociais e históricos como o que estamos vivendo, e que se formam e transformam, a despeito do PT. A crise mundial, a superpopulação da parte miserável do planeta, a violência, as políticas externas das grandes potências, o terrorismo, o xenofobismo, fenômenos de imigração necessária e desesperada, a desmontagem do conceito tradicional de família, o incômodo e a indignação diante da complexidade das identidades de gênero, os movimentos neonazistas, o racismo estrutural de um mundo que há bem pouco tempo era dividido entre povos que chegavam e colonizavam e povos que eram “visitados” e colonizados.

Bolsonaro é o tipo de “mito” que, de vez em quando, visita o imaginário cidadão e alimenta utopias nefastas. O nascimento de messias como Bolsonaro já provou ser fenômeno recorrente na história dos povos. (Deveria colocar aspas em “história dos povos” para que nos lembremos de que o planeta também abriga povos que estão fora, ou tentam estar, de um sistema globalizado; povos isolados e nunca visitados por qualquer etnografia; tribos indígenas desconhecidas, também no Brasil; seres humanos habitantes de outro espaço e outro tempo, não fazendo ideia da existência de um mundo tal como o concebemos.)

Mas entendo a opção pelo voto em branco, e vejo-a como absolutamente legítima. Votar em branco é agir dentro da democracia, uma vez que a democracia inclui a liberdade de não optar. O que a democracia não admite é a proibição de optar. O problema, no específico caso de nossas últimas eleições, é que a democracia foi várias vezes posta em questão, a julgar pelas palavras e pelas “pistas” que a campanha eleitoral do Bolsonaro vomitou sobre o país. E, neste caso — apenas neste específico caso —, votar em branco poderá ter sido um tiro no pé; poderá ter sido correr o risco de se perder a importante e legítima liberdade para se votar em branco. Numa eleição como outra qualquer estão em jogo propostas políticas que nem pensam em colocar em xeque a própria ideia de eleição. Mas esta não foi uma eleição como outra qualquer. Esta foi uma eleição de que participou um político chamado Jair Bolsonaro.

Dispensada a pulga e debatido o fantasma, percebi que agora, passadas as eleições e ainda em ressaca, se já não tenho a minha pulga relativizadora nem o meu fantasma a dizer legitimamente: “Estou aqui, também podes votar em mim...”, ganhei, por outro lado, uma pedra bem no meio do meu caminho.

Esta pedra são as pessoas com as quais convivi, conversei ou apenas observei pelas redes sociais — pessoas que votaram em Bolsonaro com paixão, unhas e dentes porque viram ali (e veem) uma verdade única, em nome da qual valores caros a mim, fundamentais para o que acredito ser uma vida digna, podem “tranquilamente” ser sacrificados em prol de uma “causa maior” com propósitos “saneadores”, “purificadores” e “salvadores”. (Eu coloquei aspas, mas essas pessoas não colocam aspas nestas palavras — que significam, para elas, exatamente isto e nada mais.)

Não seriam, no entanto, pedra no meio do caminho se não fossem estas pessoas amigas e familiares. Mas são. Umas e outras me disseram algo como: “Nossa amizade é maior que nossas escolhas político-eleitorais”. Isto é obviamente óbvio, não pedissem essas escolhas um complemento diferente. Não são para mim escolhas “político-eleitorais”; são, de certeza, filosóficas e morais. Esta minha certeza, no entanto, não resolve nada; a pedra continua lá, no meio do caminho.

Nossos caminhos não são pouco frequentados; não são ermos. São caminhos cheios de gente passando e correndo, que vem e vai, gente com quem cruzamos um sem número de vezes — e sempre suados e atrasados, claro, porque a vida é árdua.

Deparar com uma pedra no meio do caminho não nos vai impedir a passagem, mas vai obrigar sempre a um desvio — contornar a pedra pelo acostamento. Não sei como lidar com isso. Minha tendência é manter o afeto vivo. Mas nem todo afeto é de ferro. Há cristais que acabarão — se já não estão — rachados. Outros, então, nem se fala. Outros quero crer serem mais duros que a pedra. Não sei. E não saber, neste caso, pode ser uma qualidade. O tempo dirá.

E termino com uma imagem bem corriqueira, e não à toa, porque, afinal, é da vida de todos os dias que estou a falar; do cotidiano de ir comprar o pão e beber o café na esquina e encontrar gente. Viveremos, é provável, aquela incômoda, constrangedora ou no mínimo engraçada situação de pararmos antes de um caminho estreito, ao lado do qual há tapumes de obra, ou buracos, e outra pessoa vir na direção oposta. E estacamos um diante do outro, balançando-nos de um lado para o outro, tentando ceder a vez ao outro ao mesmo tempo em que o outro também tenta ceder-nos a vez, e ninguém consegue se decidir para que banda avançar. E ficamos assim. E ninguém anda.

A dificuldade, é claro, fica bem maior quando, oscilando de um lado para o outro, qual pêndulos em movimento casado, fugimos do olhar da pessoa à nossa frente, que, por sua vez, também olha para baixo. Se não reconectarmos esse olhar, ninguém avança — e a pedra continua pedra. Em cima da pedra, é claro, sempre pode estar, em repouso meditativo, uma pulguinha relativizadora. Ou talvez não. Não sei. Talvez a pulguinha se dê conta de que não é hora para relativizações.

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