16. “Gato vai, gato vem”, Revista Lilica and Tigor,
São Paulo, nov. 2014 (data aproximada).
— Mas eu nunca tive
um gato!
Não deu nem tempo de
resmungar; a minha amiga portuguesa já me entregava um bichinho que ela jurava
ser um gato, mas que para mim era um rato: não possuía pelos e quase cabia na
minha mão de tão pequenino. Um gato... Eu já tive na vida uma galinha (a
Chimbica), uma tartaruga (a Mafalda) e uma cadela (a Pinga), mas um gato, não.
— E o nome dele é
Jeremias! — anunciou a gaja, virando as costas e dando no pé.
Esta foi a pior
parte do nosso encontro, porque a perspectiva que mais me atraía em toda essa
história de ter um gato era dar ao bicho um nome, porque eu adoro dar nomes às
coisas, digo, aos bichos. E jamais batizaria de “Jeremias” um gato pra chamar
de meu. Na primeira oportunidade, renomeio o gato, pensei, animado. Será
“Ulisses”! Ulisses, o guerreiro! Ulisses, o navegador! Quem sabe até Ulisses,
parceiro de uma futura gatinha chamada Penélope! Show! Comecei a gostar... Mas
em menos de duas horas já estava a minha pequena Clara no chão, a conversar com
o Jeremias. O papo era linguístico:
— Tu mias, Jeremias?
— Miau...
— Tu mias, Jeremias?
— Miau, miau...
— Pai, já viste isto?
O Jeremias percebe tudo! E isto tem a ver com o nome dele! Tão querido...
Apenas eu em Lisboa passei
a chamar o Jeremias de Ulisses, e em pouco tempo o “guerreiro” destruiu meu
sofá, derrubou e quebrou meus porta-retratos, arranhou as lombadas dos meus
livros, comeu minhas plantas e espatifou minha escultura do Fernando Pessoa.
Quando minha namorada brasileira veio me visitar e recebeu um olhar terno e um
ronrom, apaixonou-se pela criatura, já então robusta e peluda. Prometi-lhe que
na minha próxima viagem ao Rio de Janeiro levaria o bichano na mala de mão.
Vacinei-o, tirei um passaporte para o terrorista disfarçado de “grande
navegador”, metemo-nos num avião nós dois, cruzamos o Atlântico, e pronto: o
presente foi entregue. Ulisses ficou radiante porque caiu numa casa com mais
dois gatos, e eu bem sei que gato não gosta de morar sozinho, mas com outros
gatos, todos se limpando e caçando juntos. Com a sensação de que fiz a coisa
certa, voltei para Lisboa feliz, para uma casa sem gato, mas com plantas,
livros e pequenos objetos sobre as prateleiras. Um paraíso de estabilidade...
Mal sabia eu que, um
ano depois, eu iria acabar deixando Lisboa... Uma vez no Rio, quando vou jantar
na casa da namorada, ou ver lá um filme, ou tomar um vinho; toda vez, enfim,
que toco a campainha, quem é que aparece se esfregando nas minhas canelas e mal
se contendo de felicidade gatífera?
Eu não deveria ter
mexido no nome dele...
— Tu mias, Jeremias?