"Estranha história de amor —
O romance do espanhol Gonzalo Torrente Ballester é uma longa e silenciosa carta
apaixonada", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 de junho de 1997.
Resenha sobre o livro A ilha dos jacintos cortados, de Gonzalo Torrente Balester,
ed. Record.
Gonzalo Torrente
Ballester é de La Coruña e nasceu em 1910 — exatos 22 anos após o nascimento de
Fernando Pessoa. Estava, aos 25, formadíssimo em filosofia e letras pela
Universidade de Santiago de Compostela. Escreveu muito: ensaios, peças,
novelas, alguns livros de história e romances. Em 1962, teve de mudar de vida.
A presença de seu nome numa carta de apoio às reivindicações de grevistas
asturianos não foi propriamente simpática aos olhos do governo espanhol.
Convidado a abandonar seu trabalho na imprensa e no rádio, segue para a
Universidade de Albany, nos Estados Unidos, onde ensinará literatura espanhola
por vários anos. Destacam-se, entre seus romances, a trilogia Los gozos y las sombras e O rei pasmado e a rainha nua. Ganhou o Prêmio
Cervantes, o Prêmio da Crítica e o Prêmio Nacional de Literatura — este por
duas vezes.
A segunda vez, 40 anos
depois, veio com A Ilha dos Jacintos
Cortados, que reúne em si as cores e os sons do romance de amor que
Ballester poderia ter escrito aos 20 e que acabou por escrever somente aos 70
anos. As cores, porém, não são gritantes, nem os sons. Tampouco é cega a
paixão. O romance tem a forma de uma longa e silenciosa carta, cujo tom é o da
melancolia sem choro e do erotismo sem carne. O autor da carta é um erudito
professor de literatura, que ama uma estudante grega de nome Ariadna, que,
porém, não o ama, mas sim a outro, o historiador Alain Claire, que não entra na
história.
A carta de amor — cujo
peso, volume e detalhamento a transformam num diário — começa a ser escrita, às
escondidas, uma semana após a chegada de ambos, remetente e destinatário, à
cabana alugada de uma ilha próxima à universidade. Lá, na Ilha dos Jacintos
Cortados (The Isle of The Cut Hyacints),
no Indian Lac, durante os três meses
do outono norte-americano, Ariadna e o professor de literatura (não se lhe sabe
o nome porque não assinou sua carta) encontram silêncio e privacidade para
melhor se conhecerem e se ajudarem. Entre ambos, um mesmo problema: o
historiador Alain Claire — que, por sua vez, tem dois: além de impotente, ousou
escrever um livro em que investiga e tenta demonstrar a idéia de que Napoleão
Bonaparte não passou de uma fraude, uma biografia forjada, uma ficção em
branco. Tornaram-se, Claire e sua tese, um bom motivo para o escárnio de seus
pares acadêmicos.
O professor de
literatura, no entanto, estimulado pela possibilidade de exibir-se para o seu
amor mediterrânico com todas as letras de sua deliciosa eloqüência, decide
acreditar na hipótese de Claire e até mesmo “prová-la”. Lança mão de técnicas
de pesquisa científica pouco ou nada ortodoxas e empreende, ali, na rústica
cabana alugada da Ilha dos Jacintos Cortados, uma viagem no tempo, por meio da
simples, mas atenta, contemplação das chamas da lareira. Saber decifrá-las é
saber que passado, presente e futuro são instâncias artificialmente
delimitadas, a correr para a frente, sim, mas paralelas, o que vale dizer:
simultâneas.
É o início do que podemos
chamar de “interpolações mágicas”, segundo uma expressão do próprio Ballester —
verdadeiras frestas por onde escorre, lentamente e sem qualquer compromisso com
a linearidade dos aconteceres, uma segunda história, de adultérios, poesia e
revoluções, a partir da qual se poderá assistir ao momento exato em que a idéia
de se inventar um imperador para a França foi plantada. Começa, então, um outro
romance, a passar-se em outro tempo e em outra ilha, de La Gorgona esta, “certo
penedo resplandecente que emerge nas rotas do Mediterrâneo central, mais
história que terra, (...) toda a história que cabe num punhado de rochedos
amontoados, Ulisses, Enéias, os Templários e logo conto o resto”.
O resto, porém, não é o
resto, mas a potência incansável da imaginação. Além das belas frases, longas,
ritmadas e precisas, do verossímil encadeamento dos diálogos e do inegável
fôlego narrativo de Ballester — qualidades que se repetem na tradução de Ari
Roitman —, A Ilha dos Jacintos Cortados
sugere a recriação ininterrupta como uma possibilidade a mais para o
conhecimento das coisas. Esta sugestão faz lembrar o tão discutido problema
acerca do conceito de arte e chama a atenção para a velha idéia de arte como
via de conhecimento, um conhecimento não mensurável. Veja-se a História do cerco de Lisboa, de
Saramago, onde um revisor acrescenta, num livro de História, a palavra “não”.
Sua tarefa: dar um sentido histórico-narrativo àquele “não”. Seu método:
recontar as histórias que estão dentro da História. A empreitada a que se
entrega o professor de literatura neste romance dos Jacintos Cortados é também uma materialização do programa de
Nietzsche: considerar a ciência pelo ponto de vista da arte e a arte pelo ponto
de vista da vida. É com os olhos de um “bruxo” que o professor se debruça sobre
a hipótese histórica de Claire. Acompanha pela lareira de sua cabana o
desenrolar de um passado remoto e reinventa-o, com todas as artes, em seu
diário. Se assim não fosse, de que outro modo poderia o professor chegar ao
coração de Ariadna ou provar, por palavras tortas, a inexistência de Napoleão?
Primeira sugestão para trecho:
“Estou certo de que algum dia o método de Claire, essa multiplicidade de
técnicas ali utilizadas pela primeira vez na pesquisa histórica, virá a ser
casual, e algum dia terá também envelhecido e será superada; hoje sua novidade
é tão abrupta, tão desafiante, que não me surpreendeu a repulsa com que foi
recebida e a chacota geral com que a maioria manifestou sua pessoal e
irreparável rotina. Naquela noite, Ariadna — você lia —, fomos progressivamente
tomados por um discurso de estrutura rigorosamente matemática e por uma palavra
de expressão rigorosamente poética, de modo que o resultado foi a mais perfeita
embriaguez, a mais inconcebível, da inteligência e da sensibilidade. Reconheço
que deixou de me importar o que era discutido: se Napoleão foi algo mais que
uma palavra favorecida, embalada, amamentada pela necessidade política.”
Segunda sugestão para trecho: