2 de janeiro de 1996

"A chuva amarela"

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"A chuva amarela", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, sem data.

Resenha sobre o livro A chuva amarela, de Julio Lhamazares.

A história da solidão começa com a morte do tempo. E a solidão dá à luz, à luz fria e embaçada do inverno nos Pireneus, o infeliz que há de contar a história deste insólito romance — os dez últimos anos de vida do único sobrevivente de um vilarejo abandonado. Nas montanhas da região de Sobrepuerto, no Pireneu de Huesca, Espanha, apodrecendo aos poucos, desmoronando em silêncio, está o povoado de Ainielle. A história de seu desgraçado habitante é narrada por ele próprio, às portas da morte — se já não era morte a vida que então vivia.

A chuva amarela, do espanhol Julio Llamazares, conta esta história, que também poderia ser a de outros povoados abandonados, como os de Basarán, Cillas, Casbas, Bergua ou Escartín — lugares onde não há mais ninguém, embora ainda lá estejam as casas, com suas mesas, cadeiras, camas e cobertas de lã. Lugares que existem apenas na medida em que resistem, quando resistem. O povoado espanhol de Vegamián, na província de León, deixou de existir. Lá nasceu, em 1955, o próprio Llamazares. Formou-se em direito, viveu como jornalista em Madri, publicou dois trabalhos de poesia, La lentitud de los bueyes (1979) e Memoria de la nieve (1982), que ganhou o prêmio Jorge Guillén, e os livros El río del olvido (1990), En Babia (1991), Luna de lobos (1985), La lluvia amarilla (1988) e Escenas de cine mudo (1994).

A estranha naturalidade de Llamazares — nativo de um lugar que não existe — gerou um romance igualmente estranho e profundamente triste. Mas o povoado de Ainielle existe, está lá, aconteceu. “No ano de 1970”, segundo o autor, “ficou completamente abandonado”, embora suas casas ainda resistam “em meio ao esquecimento e à neve”. Os poucos personagens deste livro, por outro lado, não são verdadeiros. Mas dizer isto com relação aos últimos habitantes de um povoado extinto é quase a mesma coisa que dizer o oposto. Se tal ou qual personagem não existiu de fato, pode existir por suposição, e sua história de vida será, antes e depois de tudo, a história de um sobrevivente.

O sobrevivente, aqui, se chama Andrés, e sua solitária e teimosa permanência em Ainielle terá a forma de um fantástico e arrasador monólogo, cuja razão de ser está no ajuste de contas que estabelece com o mundo dos vivos — um esforço do narrador no sentido de transformar em linguagem o desamparo, o desespero e o delírio de que foi vítima. Sua lucidez nos primeiros anos, quando assunta a si mesmo, sua família ausente, o povoado e seus antigos habitantes, vai gota a gota se diluindo numa poça de sonhos, lembranças e alucinações. Alarga-se a poça com a chuva amarela das folhas de outono, abrem-se os braços da loucura e da morte, e o único olhar que devolve o seu é o de uma cadela sem nome, cuja sombra, como tudo o mais em Ainielle, vai lentamente amarelando.

A história de Andrés é também a história de sua casa. Enfrentaram ambos, um dentro do outro, a lenta partida dos outros habitantes — lenta no início, veloz quando já eram poucos os que restavam — e o terrível escorrer do tempo. Envelheceram ambos, homem e casa, ao longo de dez anos de inteira solidão. Sentiram a velhice penetrar-lhes a pele e as paredes sob a forma de rugas e rachaduras. Estalaram juntos no inverno ossos e vigas, articulações e dobradiças, enquanto assistiam, da beira do fogo, ao desmoronamento das outras casas madrugada adentro. Escutaram durante todas as noites de cada ano o crepitar da ferrugem povoando os cantos da sala, dos quartos, da cozinha e da memória. Sofreram calados a ação da umidade e perceberam em si mesmos o mofo e a angústia. Morreram um dentro do outro, ao mesmo tempo e insepultos.

O texto de Llamazares é um poema. Sua capacidade de metaforização é radical — o que faz da narrativa um laboratório de insólitos ajustes, a transferir substantivos, adjetivos e verbos de um específico universo simbólico para outros, de natureza inteiramente diversa, no restrito espaço de uma frase. E não há frase feita, porque as frases avançam, enlouquecidas e misteriosas, e o final é sempre uma cilada, ou a quebra de uma promessa, ou um soco no estômago. A tradução de Monica Stahel transcorre belamente e sustenta, sem desafinar, a vibração do texto e a justeza das expressões. Seu maior mérito, contudo, está no desenvolvimento impecável da pontuação — a difícil pontuação de um monólogo que tem de ser razoável e inteligível o bastante para descrever o próprio absurdo de sua condição póstuma.

Trecho 1: 

“Pouco a pouco, o cansaço e o desânimo foram me invadindo, a atividade infatigável dos primeiros dias deu lugar a um abatimento cruel e progressivo, e, assim, quando chegou o verão, vi-me novamente perambulando como um cão abandonado pelas ruas do povoado. Os dias eram longos, preguiçosos, e a tristeza e o silêncio abatiam-se como avalanches sobre Ainielle. Eu passava as horas vagando pelas casas, percorria as cocheiras e os aposentos e, às vezes, quando o anoitecer se prolongava mansamente entre as árvores, acendia uma fogueira com tábuas e papéis e me sentava numa entrada a conversar com os fantasmas de seus antigos habitantes.”

Trecho 2: 

“A partir desse dia, a memória foi a única razão e a única paisagem da minha vida. Abandonado num canto, o tempo se deteve e, como um relógio de areia quando é virado, começou a correr no sentido contrário ao que mantivera até então. Nunca voltei a sentir a angústia de me aproximar de uma velhice que, durante muito tempo, resistira a aceitar como sendo a minha. Nunca voltei a me dar conta daquele velho relógio que, abandonado num canto, estava inutilmente pendurado na parede da cozinha. De repente, o tempo e a memória se confundiram, e todo o resto — a casa, o povoado, o céu, as montanhas — deixara de existir, a não ser como lembrança muito distante de si mesma.”

1 de janeiro de 1996

"Três mapas de uma geografia contraditória"

[Sem data.]
"Três mapas de uma geografia contraditória — O escritor israelense Omós Oz constrói personagem que se volta para si mesmo e sua natureza errante numa Jerusalém em estado de guerra", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, sem data.

Resenha sobre o livro Fima, de Amós Oz, ed. Companhia das Letras.

Mal se aproxima do vaso, Fima abre as calças e se concentra. Como a bexiga hesita, puxa a descarga para inspirar-se no som da água caindo e consegue; a bexiga cede mas a água já se foi e há ainda um mundo de xixi pela frente. Perde a paciência de esperar que se encha novamente o reservatório e desata a puxar a cordinha, mas o fluxo é fraco, o xixi não desce, e, enfim, por que não deixar para depois?

Tanto tempo morando sozinho, Fima passou a falar às paredes, anotar meticulosamente seus sonhos e ligar para os amigos tarde da noite ou bem cedo. Quase não troca os lençóis, deixa a geléia endurecer fora da geladeira, acumula louça e lixo, observa lagartos e baratas, esquece-se das contas a pagar e das meias quando dorme fora, derruba copos, diz e faz coisas de que se arrepende, olha da janela de casa para as colinas de Belém e vê o passado desfilando pelas pernas de profetas, sacerdotes e milagreiros, ou não faz nada, e deita e dorme até o meio-dia, hora em que se levanta e vai ser aquilo que faz lá na clínica ginecológica dos doutores Wahrhaftig e Eitan: além do café, atende às pacientes, anota recados e marca consultas.

Efraim Nisan, ou Fima, nasceu em Jerusalém e tem 54 anos. Foi poeta, se poeta é algo que se deixa de ser quando não se faz mais o que poetas fazem, versos, e tem dois problemas: a luta pela paz entre judeus e árabes e sua azia. A azia é problema só dele, a guerra, não. Fima responsabiliza as suas lideranças extremistas pelo estado de carência dos árabes palestinos desde a década de 20; apresenta, em artigos e discursos aos amigos, a opção entre a identidade nacional e os territórios ocupados; insiste na suspensão total das hostilidades como o único passo para a negociação e propõe a retirada das forças armadas da faixa de Gaza, ainda que sem acordo. Para tanto, organiza verdadeiras reuniões imaginárias com o seu gabinete não menos imaginário, dá posse de ministro aos amigos e funda sozinho um Conselho Revolucionário com o fim de estabelecer a paz em seis meses. Isso tudo acontece em 1987.

Durante cinco dias acompanhamos este homem levemente gordo e bastante branco, em verdadeira peregrinação à volta de si mesmo e de uma Jerusalém em pé de guerra com os árabes. Durante cinco dias, estará Fima ao nosso lado, de manhã à noite, com algumas pausas para um pão com geléia ou um monólogo sobre a condição humana e a sua natureza errante. Ao fim de cinco dias saberemos quase tudo da vida deste intelectual em plena inatividade, na eterna cata por algo que não sabe se perdeu, porque não sabe o que é, nem como ou onde procurar.

O escritor israelense Amós Oz desenhou, com este surpreendente romance, três mapas: o mapa minucioso do cotidiano pacato de um homem, o mapa das condições políticas e históricas de seu povo e um terceiro, que pode ser o título original, Hamatsáv hashlishí, em sua tradução para o inglês: The third condition; pode ser a alternativa terceira ao problema de ser a guerra santa ou política, pode ser uma maneira de falar do povo, este terceiro-estado sempre excluído, ou pode ser o próprio Fima, deliciosamente receptivo às contradições — suas, de seu país e de sua espécie. O que acontece depois deve ser magia. Os três mapas se superpõem, as linhas geram entrelinhas, e um jogo vertiginoso de ida e volta começa. A mágica de Oz vai além de seu tempo, de seu personagem e de seu país, descansa ao pé da frase, ali onde as palavras se preparam para a corrida, ou para a dança, ou mesmo para a loucura do sonho, e volta. Fima, neste percurso, está bem perto; um pouco atrás, um pouco esbaforido, mas ao alcance da mão, a manter-nos ocupados com o banal e o sublime, sem perder a cabeça, a graça e a ironia.

Amós Oz nasceu em Jerusalém em 1939. É considerado um dos maiores escritores israelenses vivos, seus livros estão em 22 línguas, escreve para crianças, escreve para adultos, escreve ensaios, ganhou o prêmio Femina e, em 1992, o Prêmio da Paz em Frankfurt. Mas não é só. Oz faz parte de uma nova geração de escritores — surgida após o estabelecimento do Estado de Israel, em 1948 —, que, desde o fim dos anos 50, vem mudando a cara da literatura hebraica.

E a cara da literatura hebraica tinha a cara do judeu errante — desafixado e perseguido. A produção da geração anterior tratou a comunidade judaica como tema, fez deste tema personagem e construiu para ele um drama, na maior parte dos casos, histórico — a diáspora, o massacre nazista. A mudança que se verifica após 48, com a nova geração, é a tematização do indivíduo.

No entanto, fechar o cerco sobre o indivíduo, fechando-lhe os olhos para a conturbada história de seu povo, poderia significar a quebra do diálogo e sua substituição pelo ricochete do eco. Difícil ignorar o Estado de Israel; difícil não ver que, a reboque, e bastante pesada, ali está a sina do povo judeu. Difícil virar justamente esta página. Então escreveram também sobre as famílias dos indivíduos, e as famílias cresceram e se multiplicaram, tornando-se, cada qual, uma grande alegoria para uma certa idéia de nação. De outro modo, esta seqüência de metáforas acabou por desaguar novamente na larga comunidade judaica. Está, pois, fechado o cerco e restabelecido o diálogo.

Trecho 1:

“Fima não estava disposto a desistir nem deixar de lado.

— Você se lembra daquele verso famoso do poema de Amir Gilboa: ‘De súbito um homem acorda de manhã, e sente que é um povo, e começa a andar’? É exatamente a este absurdo que eu estou me referindo. Em primeiro lugar, professor, a verdade, mão no coração. Alguma vez você já acordou de manhã e sentiu que era um povo? No máximo depois do almoço. Quem é que consegue acordar de manhã e sentir que é um povo? E começar a andar? (...) É sério. Chegou a hora de parar de se sentir como um povo. Chegou a hora de nem começar a andar. Vamos acabar com essa baboseira. ‘Uma voz me chamou e eu fui.’ ‘Aonde nos enviarem — nós iremos.’ Essas frases têm uma motivação semifascista. Você não é um povo inteiro. Eu não sou um povo. Ninguém é um povo. Nem de manhã nem de noite. E, por falar nisso, não somos mesmo um povo. No máximo, talvez uma tribo.” (pág. 176)

Trecho 2:

“No meio de julho, logo depois dos seus exames finais, no jardim do Convento Ratisbonne, ele se apaixonou pela guia francesa de um grupo de turistas católicos. Estava sentado num banco do jardim esperando a namorada, uma estudante de enfermagem chamada Shula, que dois anos depois se casou com seu amigo Tsvi Kropotkin. Fima segurava entre os dedos um broto florido de oleandro e os pássaros discutiam sobre sua cabeça. Nicole, sentada no banco ao lado, se dirigiu a ele: ‘Será que há água por aqui? Você fala francês?’. Fima respondeu afirmativamente às duas perguntas, mesmo não tendo a menor idéia de onde achar água e sabendo apenas umas poucas palavras de francês. A partir daquele momento, seguiu as pegadas dela por toda parte em Jerusalém; não a deixava em paz apesar dos educados pedidos dela; não desistiu nem quando o líder do grupo o advertiu de que seria obrigado a registrar queixa contra ele. Quando ela foi à missa na Abadia da Dormição, ele esperou do lado de fora como um cachorro durante uma hora e meia. Toda vez que ela saía do King's Hotel, em frente ao Edifício Terra Sancta, encontrava Fima diante da porta giratória, olhos brilhando. Quando ela ia ao museu, lá estava ele à espreita em cada sala. Quando ela voltou para a França, ele a seguiu até Paris e inclusive até sua casa em Lyon. Numa noite de luar, já depois da meia-noite, assim corre a história em Jerusalém, o pai dela saiu da casa e disparou um tiro com uma espingarda de cano duplo, atingindo a perna de Fima. Durante os três dias que passou num hospital franciscano procurou se informar do que era preciso fazer para converter-se ao cristianismo. O pai de Nicole, ao visitá-lo no hospital para se desculpar, ofereceu-se para ajudá-lo a se converter. Entrementes, Nicole ficou farta também do pai, e fugiu de ambos, primeiro para sua irmã em Madri, e depois para sua cunhada em Málaga. Sujo, desesperado e maltrapilho, ele a perseguiu em trens e ônibus poeirentos até que seu dinheiro acabou em Gibraltar e, com a ajuda da Cruz Vermelha, foi devolvido quase à força para Israel a bordo de um cargueiro panamenho.” (págs. 20-21)