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"A chuva amarela", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, sem data.
Resenha sobre o livro A chuva amarela, de Julio Lhamazares.
A história da solidão começa com a morte do tempo. E a solidão dá à luz, à luz fria e embaçada do inverno nos Pireneus, o infeliz que há de contar a história deste insólito romance — os dez últimos anos de vida do único sobrevivente de um vilarejo abandonado. Nas montanhas da região de Sobrepuerto, no Pireneu de Huesca, Espanha, apodrecendo aos poucos, desmoronando em silêncio, está o povoado de Ainielle. A história de seu desgraçado habitante é narrada por ele próprio, às portas da morte — se já não era morte a vida que então vivia.
A chuva amarela, do espanhol Julio Llamazares, conta esta história, que também poderia ser a de outros povoados abandonados, como os de Basarán, Cillas, Casbas, Bergua ou Escartín — lugares onde não há mais ninguém, embora ainda lá estejam as casas, com suas mesas, cadeiras, camas e cobertas de lã. Lugares que existem apenas na medida em que resistem, quando resistem. O povoado espanhol de Vegamián, na província de León, deixou de existir. Lá nasceu, em 1955, o próprio Llamazares. Formou-se em direito, viveu como jornalista em Madri, publicou dois trabalhos de poesia, La lentitud de los bueyes (1979) e Memoria de la nieve (1982), que ganhou o prêmio Jorge Guillén, e os livros El río del olvido (1990), En Babia (1991), Luna de lobos (1985), La lluvia amarilla (1988) e Escenas de cine mudo (1994).
A estranha naturalidade de Llamazares — nativo de um lugar que não existe — gerou um romance igualmente estranho e profundamente triste. Mas o povoado de Ainielle existe, está lá, aconteceu. “No ano de 1970”, segundo o autor, “ficou completamente abandonado”, embora suas casas ainda resistam “em meio ao esquecimento e à neve”. Os poucos personagens deste livro, por outro lado, não são verdadeiros. Mas dizer isto com relação aos últimos habitantes de um povoado extinto é quase a mesma coisa que dizer o oposto. Se tal ou qual personagem não existiu de fato, pode existir por suposição, e sua história de vida será, antes e depois de tudo, a história de um sobrevivente.
O sobrevivente, aqui, se chama Andrés, e sua solitária e teimosa permanência em Ainielle terá a forma de um fantástico e arrasador monólogo, cuja razão de ser está no ajuste de contas que estabelece com o mundo dos vivos — um esforço do narrador no sentido de transformar em linguagem o desamparo, o desespero e o delírio de que foi vítima. Sua lucidez nos primeiros anos, quando assunta a si mesmo, sua família ausente, o povoado e seus antigos habitantes, vai gota a gota se diluindo numa poça de sonhos, lembranças e alucinações. Alarga-se a poça com a chuva amarela das folhas de outono, abrem-se os braços da loucura e da morte, e o único olhar que devolve o seu é o de uma cadela sem nome, cuja sombra, como tudo o mais em Ainielle, vai lentamente amarelando.
A história de Andrés é também a história de sua casa. Enfrentaram ambos, um dentro do outro, a lenta partida dos outros habitantes — lenta no início, veloz quando já eram poucos os que restavam — e o terrível escorrer do tempo. Envelheceram ambos, homem e casa, ao longo de dez anos de inteira solidão. Sentiram a velhice penetrar-lhes a pele e as paredes sob a forma de rugas e rachaduras. Estalaram juntos no inverno ossos e vigas, articulações e dobradiças, enquanto assistiam, da beira do fogo, ao desmoronamento das outras casas madrugada adentro. Escutaram durante todas as noites de cada ano o crepitar da ferrugem povoando os cantos da sala, dos quartos, da cozinha e da memória. Sofreram calados a ação da umidade e perceberam em si mesmos o mofo e a angústia. Morreram um dentro do outro, ao mesmo tempo e insepultos.
O texto de Llamazares é um poema. Sua capacidade de metaforização é radical — o que faz da narrativa um laboratório de insólitos ajustes, a transferir substantivos, adjetivos e verbos de um específico universo simbólico para outros, de natureza inteiramente diversa, no restrito espaço de uma frase. E não há frase feita, porque as frases avançam, enlouquecidas e misteriosas, e o final é sempre uma cilada, ou a quebra de uma promessa, ou um soco no estômago. A tradução de Monica Stahel transcorre belamente e sustenta, sem desafinar, a vibração do texto e a justeza das expressões. Seu maior mérito, contudo, está no desenvolvimento impecável da pontuação — a difícil pontuação de um monólogo que tem de ser razoável e inteligível o bastante para descrever o próprio absurdo de sua condição póstuma.
Trecho 1:
“Pouco a pouco, o cansaço e o desânimo foram me invadindo, a atividade infatigável dos primeiros dias deu lugar a um abatimento cruel e progressivo, e, assim, quando chegou o verão, vi-me novamente perambulando como um cão abandonado pelas ruas do povoado. Os dias eram longos, preguiçosos, e a tristeza e o silêncio abatiam-se como avalanches sobre Ainielle. Eu passava as horas vagando pelas casas, percorria as cocheiras e os aposentos e, às vezes, quando o anoitecer se prolongava mansamente entre as árvores, acendia uma fogueira com tábuas e papéis e me sentava numa entrada a conversar com os fantasmas de seus antigos habitantes.”
Trecho 2:
“A partir desse dia, a memória foi a única razão e a única paisagem da minha vida. Abandonado num canto, o tempo se deteve e, como um relógio de areia quando é virado, começou a correr no sentido contrário ao que mantivera até então. Nunca voltei a sentir a angústia de me aproximar de uma velhice que, durante muito tempo, resistira a aceitar como sendo a minha. Nunca voltei a me dar conta daquele velho relógio que, abandonado num canto, estava inutilmente pendurado na parede da cozinha. De repente, o tempo e a memória se confundiram, e todo o resto — a casa, o povoado, o céu, as montanhas — deixara de existir, a não ser como lembrança muito distante de si mesma.”
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