1 de janeiro de 2004
Programa "Espaço Aberto"
Parte 1
• BATELLA, Juva. 2004. Entrevista a Edney Silvestre, para o programa "Espaço Aberto".
→ Sobre o meu livro Quem tem medo de Campos de Carvalho?
Parte 2
“Quem tem medo de Campos de Carvalho?”
“Quem tem medo de Campos de Carvalho?”, Revista Argumento, Rio de Janeiro, 2004, v. 5, p. 22-24. (ISSN: 1679-6020)
Quase ninguém. Raras são as
histórias da literatura brasileira que falam das histórias do escritor mineiro
Campos de Carvalho (1916-1998), raras as antologias em que toma parte, raras as
monografias, dissertações e teses. O leitor médio não o conhece, o estudante de
letras mal o conhece, muitas livrarias não o possuem e poucos são os sebos que
conseguem escondê-lo por algum tempo — o bastante para que um aficionado
colecionador, tão raro quanto o exemplar que cobiça, finalmente o descubra e o
leve embora para sempre. Trata-se, sem dúvida, de um clássico — mas do qual não
se falava há mais de trinta anos.
Durante
seu decênio produtivo, 1954 a 1964, Campos de Carvalho fez sucesso, ou seja,
foi por seus pares reconhecido e cultuado, ao mesmo tempo em que publicava — e
vendia — por duas editoras já nascidas fundamentais dentro de nossa história
editorial: José Olympio e Civilização Brasileira. À primeira vista, Campos de
Carvalho não passa de um escritor que sabe escrever muito bem. Seu texto
desenvolve-se no interior de uma sintaxe tradicional, que se comporta em vários
momentos à portuguesa, uma escrita escorreita e um vocabulário invulgar. Esta
poética bem falante e cheia dos aromas da “boa literatura” tem, no entanto, um
fundo falso, um nervo aberto e uma carga inflamável: a liberdade radical da
criação, a crítica constante às verdades estabelecidas e ao uso mediocrizante
da linguagem, o humor como produção e diluição da mesma e velha angústia de
guerra: a boa e absurda condição humana.
Quem tem medo
de Campos de Carvalho? Arrisco: quem consegue sobreviver a uma lua que venha da
Ásia, a uma vaca de nariz sutil, a uma chuva imóvel e a um púcaro búlgaro —
mais que romances, estados de espírito, fragmentos de filosofia poética. A lua vem
da Ásia, publicado em 1956, contará a história de um sujeito
que se julga o hóspede de um hotel de luxo, depois o prisioneiro de um campo de
trabalhos forçados, para finalmente percebermos tratar-se do interno de um
hospício. O texto do livro forma um diário, e a representação de loucura que se
vê neste diário não é pouco complexa — é, sim, de tal forma crítica e relativa
que não raro nos atira à cara a loucura de nossa própria razão. Ou a parte de
morte em nossa própria vida, como é o caso da história de Vaca de nariz sutil — a de um ex-combatente de guerra que tratou
com a morte tão de perto que depois não mais teve forças para lidar com a
própria existência diária, cercada de morte por todos os lados, exceto por um
único. O amor que se descobre em A chuva
imóvel está a beirar o incesto. André e Andrea, eternamente separados pela
irmandade gêmea, dão feitio ao universo do narrador-personagem, que se mede por
duas palavras: introspecção e revolta. O humor levado a sério, às últimas
conseqüências, é a tônica de O púcaro
búlgaro: um grupo de esquisitos reunidos em um apartamento e envolvidos na
organização de uma expedição à Bulgária com vistas a verificar sua real
existência. A circunspecção com que os disparates vêm à tona, a galeria dos
personagens e o insólito da história em si provocam o alargamento do campo do
razoável e a celebração do nonsense. Terminado
O púcaro búlgaro, Campos de Carvalho calou-se. Voltou a
existir como escritor somente em 1995, quando a editora José Olympio, numa
iniciativa finalmente tomada, republicou seus romances num volume único
intitulado Obra reunida.
Conheci-o,
e passei a temê-lo, um pouco depois, já em 1997, num dia em que minha
mãe me atirou ao colo os seus quatro livros e disse: “Leia isto”. Estava
disposto a obedecer, mas antes perguntei a ela se já tinha lido. “Até onde me
foi possível.” “Foi possível o quê?” “Até onde me foi possível ler e não
enlouquecer”, disse ela. Aquilo me animou. Um ano depois candidatei-me para um curso de mestrado. Feitas as
provas, quiseram saber dos meus propósitos. “Vou estudar o Campos de Carvalho”,
disse, e quando vi já havia dito o que nem eu mesmo sabia que sabia até o
momento. A reação não poderia ter sido melhor. Parabenizaram-me sorrindo, e eu
quase posso apostar que por baixo dos sorrisos estavam dizendo, animados, algo
como um “até que enfim apareceu um maluco disposto”.
Dado o
primeiro passo por acaso, dei, também por acaso, o segundo: arranjei um colega
de mestrado, Mauro Gaspar, que se tornou cúmplice, confidente e irmão. Campos
de Carvalho tornou-se, de uma hora para outra, tema de trabalho de dois malucos
dispostos e, ao mesmo tempo, um importante e esquecido autor a ser temido com
toda a coragem que tínhamos. E tínhamos, mas as coincidências envolvendo o meu
tema estavam apenas começando a me impressionar.
Em uma
belíssima noite, conversei por telefone com uma ex-chefe muito amiga, Fernanda
Gurjan, e falei-lhe acerca do mestrado. “E a dissertação?”, perguntou. “Vai ser
sobre um escritor mineiro.” “Quem?” “Você não conhece. Aliás, ninguém conhece.”
“Você não conhece tanta gente assim, para estar tão convicto de que ninguém o
conheça. E então, quem é o seu autor?” “O Campos de Carvalho.” “Campos de
Carvalho?” “Não falei que você não conhecia...” “O Walter?” “Walter?!” “O
Walter é meu primo!”, disse ela, tentando não gritar. “Ah”, disse eu, e pensei:
“Nunca estive tão perto do homem”. Eu estaria mais ainda.
A partir
daí, o Campos de Carvalho passou a ser “o Walter”. “Estou tentando encontrar a
Lygia Rosa, mulher dele, mas não acho”, disse-me Fernanda, excitadíssima, pelo
telefone. “Ela está em algum lugar de São Paulo, e sei que vai se mudar para o
Rio. Quero organizar um jantar aqui em casa com você, Lygia e Maria Amélia
Mello, gerente editorial da José Olympio.” Eu só sorria.
Enquanto
isso eu começava a sair do lugar. Consegui o e-mail de outro primo do Walter, o
escritor Mario Prata, que gentilmente me telefonou e se colocou à disposição
para tudo o que eu quisesse. Mario Prata publicou alguns artigos nO Estado
de S. Paulo que se tornaram responsáveis por tudo o mais que se seguiu;
foram a pedra de toque para que hoje estejamos a falar de Campos de Carvalho.
Devo mencionar, neste sentido, o escritor Nelson de Oliveira e — como
entrevistadores corajosos — o Antonio Prata, filho do Mario, o Pedro Bial e também
o Paulo Roberto Pires, que, através de seu trabalho, lograram arrancar de um
Campos de Carvalho pouco eloqüente, cansado e triste as poucas palavras que,
mesmo assim, conseguiram aproximá-lo de seus antigos e novíssimos leitores.
O jantar
com Lygia e Maria Amélia saiu afinal do papel, e para lá nos dirigimos eu e
Mauro, a encontrar uma Fernanda Gurjan animadíssima diante de sua mesa de
jantar literariamente caracterizada com tudo o que havia na casa sobre Campos
de Carvalho. Foi um jantar literário. Lemos trechos dA lua vem da Ásia, da Vaca de
nariz sutil, dO púcaro búlgaro, e, não sei bem por quê, coube a mim
ler Fernando Pessoa. Alguém me disse: “Escolha um número e abra a página correspondente”.
Eu escolhi o treze, dia do meu aniversário e, por coincidência, do de Fernando
Pessoa. Abri a página treze daquela edição e dei com um verso cujas palavras
principais eu procurava há algum tempo e não encontrava. Trata-se de uma
expressão utilizada por Carlos Felipe Moisés em seus comentários à Vaca de nariz sutil. Diz ele, à página
18 da Obra reunida: “... de um lado,
o binômio morte-cemitério, de outro, a sugestão — já agora pessoana, ‘cadáver
adiado que procria’ — de que há mais mortos fora do que dentro [do cemitério]”.
E isto está no décimo e último verso da Quinta Quina, homenagem a D. Sebastião,
rei de Portugal, da primeira parte de Mensagem,
de Fernando Pessoa. E esse “cadáver adiado que procria” fui encontrá-lo
justamente ali naquele jantar, naquela página treze, sem o menor esforço, sem a
menor pesquisa, apenas abrindo numa página cujo número, o treze, nas palavras
de uma atentíssima Lygia, bem ao meu lado na mesa, era o número preferido do
seu marido, Walter Campos de Carvalho, “o Walter”. Temi-o ainda mais.
Principalmente
depois do que me aconteceu na Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Eu estava lá, na seção de periódicos microfilmados, à cata de um importantíssimo
artigo de Sérgio Milliet acerca dA lua
vem da Ásia, publicado no dia 4 de fevereiro de 1957. A moça encarregada
entregou-me um rolo contendo os microfilmes dO Estado de S. Paulo, do dia 1º ao dia 15 de fevereiro. Eu
precisava muito daquela crítica, e por isso permaneci obsedado diante daquela
tela verde-musgo, a rodar as manivelas e a ver passarem diante de mim todas
aquelas minúsculas páginas, pensando no tamanho da lupa que teria de arranjar
para conseguir ler as letrinhas que me esperavam. Já estava no final da edição
do dia 3 de fevereiro, ansioso pela edição do dia 4 e, portanto, ansioso para
chegar ao caderno cultural onde certamente estava o artigo do Sérgio Milliet,
quando me dei conta de que, dentro daquele rolinho de filmes, o dia seguinte ao
3 de fevereiro de 1957 era, inexplicavelmente, o dia 5... A microfilmagem havia
pulado, por razões incognoscíveis, a edição do dia 4... Perguntei à moça
encarregada se aquilo era possível e mesmo permitido, e ela disse: “Sim, erro
de microfilmagem, nada a fazer”. Mas eu já estava com a cabeça longe, a remoer
corajosamente os meus medos.
A última e
mais importante coincidência a atravessar o meu caminho aconteceu alguns meses
depois daquele jantar, quando eu e Mauro fomos convidados por Lygia para um
vinho em sua casa. “Onde ela mora?”, perguntei a ele, que me foi apanhar de
carro e já havia ido lá antes. “Em Copacabana”, disse. Entramos em uma rua e eu
quis saber se era aquela a rua da Lygia. “É. Por quê?” “Porque é mais uma
coincidência que me aparece.” “Qual?” Mas eu não cheguei a responder. Quando
paramos em frente ao prédio, resmunguei: “É aqui, Mauro? Não pode ser...”. “Por
que não?” E eu: “Qual o andar da Lygia?”. Mas ele estava ocupado em nos
identificar junto ao porteiro. “Diga a ela: Juva e Mauro.” Mas o porteiro,
cumprimentando-me com simpatia, dispensou com a mão as identificações e pediu
que subíssemos. “Você o conhece?”, perguntou o Mauro, já no elevador. Mas eu
queria era saber o andar da Lygia. Paramos logo no primeiro. “É aqui”, disse
ele. “Ah...”, disse eu. “Ah, o quê?” “Você não vai acreditar, Mauro. A coincidência
de que lhe havia falado quando entramos nesta rua é maior do que eu imaginava.”
“Diga.” E antes que tocássemos a campainha eu disse a ele; disse que Lygia
Rosa, mulher de Campos de Carvalho, era vizinha de porta de minha mãe, Telma,
que um dia me atirou ao colo a Obra reunida
e disse: “Leia isto”.
Quem tem
medo de Campos de Carvalho? Ora... Campos de Carvalho levou o absurdo
às últimas conseqüências. Ser surrealista foi a sua maneira de manter acesa uma
crítica constante sobre a sociedade, e Campos de Carvalho sempre se definiu um
autor surrealista. Mas o que é isso? Fui aos poucos compreendendo que essa
definição, como quase toda definição, constituía um ponto de partida, e não de
chegada. Borges disse que só podemos definir algo quando nada soubermos a
respeito desse algo. Eu nada sabia acerca de Campos de Carvalho, e tudo o que
me aparecia à frente me dizia que ele era um escritor surrealista.
Há, no entanto, duas maneiras de
se entender isso: a primeira, compreendendo-se o surrealismo em seu sentido
mais corriqueiro, como um conjunto de atos, palavras e idéias que dêem conta de
algo que está de certo modo deslocado, fora do real, do comum, do razoável, do
verossímil e do sensato. O efeito produzido por tudo o que esteja ligado a este
sentido tem o humor como fator constituinte. O tipo de surrealismo que lemos em
O púcaro búlgaro e as situações mais
corriqueiras de A lua vem da Ásia são
ótimos exemplos e demonstram a exploração de uma espécie de absurdo qualquer.
A segunda maneira de se entender a
intimidade de Campos de Carvalho com o surrealismo vai levar-nos ao surrealismo
como uma atitude diante da existência. Neste segundo sentido, o que é ser
surrealista? É, antes de tudo, não conceber uma arte que esteja apartada da
vida e uma vida que não tenha em si, do começo ao fim, um projeto artístico.
Campos de Carvalho é surrealista porque teve consciência de que seu trabalho
circulava em meio a uma sociedade mediocrizada, atomizada e afundada em seu
amor ao dinheiro. Ser surrealista é trabalhar com a palavra do modo com Campos
de Carvalho trabalhava: dando a palavra aos poetas, às crianças e aos loucos —
os únicos que não têm medo de Campos de Carvalho.
"O cão"
“O cão”, Ficções, Rio de Janeiro, ed. 7Letras, 2004, v. 13, p. 16-21. (ISSN: 1415-9775)
Republicado em: “O cão”, in: PENA, Felipe, Geração Subzero: 20 autores congelados pela crítica, mas adorados pelos leitores, 1. ed., Rio de Janeiro, ed. Record, 2012, v. 1, p. 23-28 (ISBN: 9788501099143).
Contaram-me.
Desde
que a mais nova se mudou para a casa ao lado e se tornou vizinha da mais velha,
as duas nunca trocaram mais que um aceno — o primeiro. Não se falam porque
Gisela tem medo de olhar nos olhos de dona Rosinha, de fazer amizade com dona
Rosinha, de deixar os portões abertos por engano durante uma conversa com dona
Rosinha — e num relance a coisa toda acontecer. A coisa toda, se um dia
acontecer, e um dia a coisa toda vai acabar acontecendo, como de fato
aconteceu, que a coisa toda não aconteça na frente dela, Gisela, porque não
haverá de sua parte qualquer gesto que preste — e nem depois, porque ela também
não vai saber como se dirigir à dona Rosinha e nem como pedir desculpas: “A
senhora me desculpe, isso não vai acontecer novamente”. E Gisela, com metade de
um sorriso, pensou nas suas próprias palavras descabidas: não vai acontecer
novamente de os meus dois pastores caçarem, morderem, matarem e engolirem o seu
minúsculo poodle, dona Rosinha, e balançou a cabeça, imaginando a cena; a
senhora pode ficar sossegada.
Sossegada
dona Rosinha era mesmo. Morava naquela casa desde menina, quando era então a
menina Rosinha. Hoje a chamam dona Rosinha, ou Rosa, a vizinha. Logo à chegada
da moça, tomou todas as iniciativas que se esperam de uma vizinha como dona
Rosinha: aproximou-se da bem cuidada cerca viva, território de ambas, afastou
um pouquinho a massa de arbustos cerrados, mostrou a cara e acenou para a nova
moradora, que estava postada à janela da cozinha e não deu um minuto apareceu à
porta. Veio devagar a moça, e veio sorrindo, mas um sorriso que foi encurtando
à medida que se aproximava da cerca; foi encurtando e encurtando, até que sumiu
de todo quando ela desviou o olhar do minúsculo poodle sentado à entrada da
casa, a abanar o rabinho e a olhar para a sua dona, a dona Rosinha. Quando se
encostou à cerca, Gisela apertou a mão de dona Rosinha e voltou a olhar para o
cachorrinho. Depois murmurou algumas palavras convencionais, gritando-as quando
percebeu que dona Rosinha era surda, e sem saber mais o que dizer deu-lhe as
costas. Só pensava no dia seguinte, quando seus pastores enfim chegariam, a
acompanhar o resto da mudança.
Gisela
morava sozinha, trabalhava o dia inteiro e só chegava à casa à noite. Dona
Rosinha vivia em casa, saía muito pouco e adorava assistir à televisão em alto
volume. À exceção dos finais de semana, em que Gisela passeava os cães de manhã
à noite e bem longe de casa, todos os dias eram de tumulto, um tumulto que dona
Rosinha não escutava ou ao qual parecia não dar muita atenção. O que acontecia
nos jardins das duas casas chegava a divertir um ou outro passante, e nada
mais. A principal ocupação dos pacientes pastores era a espreita, a contínua
vigilância ao momento exato em que o pequeno poodle de dona Rosinha realizaria
as suas poucas saídas diárias de xixi e cocô — as únicas reais oportunidades
que tinham os pacientes pastores de tentar ultrapassar a fronteira de arbustos
e fazer daquele minúsculo bicho escandaloso uma bolinha, uma bolinha a ser
mordida e arranhada até que não mais latisse ou se mexesse. Corriam os três, ao
longo da cerca, para cá e para lá, dois de um lado e um do outro, em grandes
latidos, e o mais que conseguiam os pastores era enfiar os focinhos e as patas
dianteiras pelo meio da moita, sem qualquer sucesso, e cavar alguns pequenos
buracos que talvez um dia os conduzissem para o lado de lá da cerca. O poodle,
quando não estava às carreiras para cima e para baixo, latia — latia a plenos
pulmões, estridente e esperneante. Não tinha medo.
Ao
final do dia, e à medida que se aproximava de casa, chegando a pé do trabalho,
Gisela sentia o peito apertado e uma vontade danada de fazer xixi. Era do tipo
que não perdia a oportunidade de imaginar, sempre que possível, o pior,
acreditando ao mesmo tempo, no fundo de sua alma, que o pior nunca haveria de
acontecer, justamente porque as coisas nunca aconteciam do modo como as
imaginamos. E era essa a sua fórmula: imaginar o pior justamente para que o
pior não acontecesse. E lá vinha Gisela pelo caminho, imaginando o seguinte
pior, que poderia variar em alguns detalhes, conforme caminhava a sua
imaginação, mas era, em essência, o mesmo: ela olhando por cima do portãozinho
e vendo a coisa toda, a terra esparramada, a cerca destroçada, o sangue
respingado, os pastores dando voltas ao redor do corpinho do poodle da dona
Rosinha, e ela, Gisela, tendo que fazer alguma coisa. A vontade de fazer xixi,
por mais que fizesse todo o xixi que tinha em si antes, crescia com a
ansiedade, que por sua vez também crescia ao ponto máximo quando Gisela estava
a dois passos da entrada. Daí conseguia vê-los diante da porta da cozinha,
dormindo inocentes, e a vontade de fazer xixi, pronto, sumia. Foi sempre assim,
às vezes mais e às vezes menos, e o quotidiano encarregou-se de ir aos poucos
enfraquecendo a carga desse sofrimento, que no entanto nunca cessou de todo.
Foi sempre assim, até que um dia não foi mais. Gisela, estrategicamente pessimista, mas no fundo uma otimista incurável, não imaginou que o pior que persistentemente vinha imaginando há semanas, em alguma de suas variantes, poderia de fato realizar-se, porque esse pior imaginado, por mais vivas que fossem as sua cores, só era imaginado porque era provável. Dito de outro modo, Gisela, antes de estrategicamente pessimista e, num segundo olhar, incuravelmente otimista, não passava de uma irremediável realista. E assim, num belo final de tarde de um dia qualquer, Gisela vinha pela calçada, já depois de ter dobrado a última esquina, quando ouviu um bulício incomum. Aproximou-se quase correndo, a bexiga subitamente cheia, olhou por cima do portãozinho e viu a coisa toda: a terra esparramada, a cerca destroçada e os pastores dando voltas ao redor do corpinho do poodle da dona Rosinha. Ela, Gisela, tinha de fazer alguma coisa.
E fez, tão rapidamente e com tal
empenho, que, mais tarde, bem mais tarde, madrugada adentro, já na cama, depois
de um belo banho, alguma comida e dois copos e meio de vinho, não soube
explicar para si mesma como pudera ter feito o que fez e com tanta diligência.
Não soube como conseguira tanto sangue frio, como mantivera sem perceber toda a
calma do mundo para iniciar a série de pequenas tarefas que agora rememorava
com algum orgulho, alguma culpa, algum medo e a muita convicção de que não
poderia ter feito diferente. Depois de olhar para os quatro lados para ver se
não via ninguém, mandou os pastores às favas, enxotando-os com dois pedacinhos
de pau que encontrou junto à terra revirada, pegou com as duas mãos o corpo
inerte do poodle, sopesou-o como se sopesam salames e, com um único suspiro,
constatou que o bicho já estava morto há algum tempo. O corpinho estava frio e
sujo, mas felizmente inteiro e sem um único corte. Meteu-o debaixo do casaco e
entrou em casa. Voltou para o jardim, varreu o chão, espalhou e aplainou toda
aquela terra denunciadora e entrou. Lavou o cão na pia da cozinha, secou no
banheiro e penteou no quarto. Depois de um minucioso exame para certificar-se
de que não havia no corpo defunto do bichinho nem um único indício do que de
fato acontecera, Gisela esperou que caísse a noite. Enquanto esperava
espreitava — não tirava o olho da janela para ver se dona Rosinha por acaso não
estaria à cata do cão. Não estava. Nada se mexia, nem mesmo os pastores, nada
se ouvia, nem mesmo a televisão do outro lado da cerca. Quando notou que a
última mancha de luz na casa de sua vizinha se havia apagado, Gisela, com o poodle
novamente escondido no casaco e uma escova no bolso, esgueirou-se para fora,
saiu de casa, pulou a cerca viva utilizando as traves do portão como suporte
para os pés, deslizou até a pequena escada de três degraus que levava à soleira
da porta de entrada da casa de dona Rosinha e lá deitou delicadamente o
cãozinho, não sem antes repenteá-lo e lhe dar três amigáveis tapinhas na
cabeça, tomando o cuidado de posicionar suas patinhas de modo a que parecesse
estar dormindo. Tentou não ficar sentimental diante daquele montinho de morte
que acabava de sair de suas mãos, desejou-lhe mentalmente uma boa viagem e
desapareceu em segundos. Em dezessete minutos já estava de banho tomado e
sentada no sofá com um copo de vinho à boca. Comeu em seguida e, em seguida,
foi para a cama, adormecendo sem perceber, para depois, bem depois, madrugada
adentro, acordar sobressaltada e lembrar-se — lembrar-se, com algum orgulho,
alguma culpa, algum medo e a muita convicção de que não poderia ter feito
diferente, de sua diligência, de seu sangue frio e de sua calma. “Pobre
cãozinho”, diria à dona Rosinha. “Pelo menos morreu dormindo...”
Passaram-se
os dias, e sempre, ao final da tarde, e à medida que se aproximava de casa,
chegando a pé do trabalho, Gisela sentia o peito apertado e uma vontade danada
de fazer xixi só de imaginar que poderia encontrar-se casualmente com dona
Rosinha e esta lhe perguntar se por acaso sabia a querida Gisela das razões da
morte de seu pequenucho — ou, ainda, utilizando-se a estratégia de sempre
imaginar o pior, encontrar-se com dona Rosinha e esta, com o dedo em riste, aos
berros e aos prantos, lhe atirar à cara a terrível acusação. Mas nada disso
acontecia. Gisela, desde o lamentável acidente com o cãozinho — que no dia
seguinte à tarde já não estava mais onde o tinha deixado, ali à porta, a dormir
—, nunca mais encontrou, sequer viu ou ouviu falar de dona Rosinha. Era como se
dona Rosinha tivesse deixado de existir, só existindo a casa e seu silêncio. E
assim foi, até que um dia não foi mais. Num belo final de uma tarde qualquer,
Gisela vinha pela calçada, já depois de ter dobrado a última esquina, quando
viu a vizinha do lado de lá da casa de dona Rosinha. Como era mesmo o nome
dela? Não ia lembrar de jeito nenhum. E ela vem sorrindo — sinal de que vai
falar, não apenas menear a cabeça, mas falar. Mas falar de quê, se as duas
nunca trocaram mais que um ou outro barulhinho de bom dia e como vai?
— Eu vou bem, e a senhora?
— Vou bem, minha filha, vou bem. A
Rosa é que...
— O que houve com a dona Rosinha?
— A menina não soube o que
aconteceu?
— Não.
— Foi internada...
— Nossa! Mas o que houve?
— A pobre sofreu um ataque dos
nervos e está internada.
— Por quê? O que houve?
— Não fala com ninguém, olha para
as paredes...
— Mas por quê? Por quê?
— Você conheceu o cachorrinho
dela?
— Conheci, conheci.
— Bom, o cachorrinho dela morreu.
— Morreu? Puxa... Ela deve ter
ficado mesmo muito abalada...
— Com a morte dele?! Não, não. Ele
estava velho...
— Mas então...
— Ela ficou abalada com o que
aconteceu depois.
— O que aconteceu depois?! Depois
do quê?
— Bom, o cãozinho morreu. Até aí,
tudo bem, todos nós um dia morreremos... Fazer o quê? E ela fez o que tinha de
fazer: enterrou o bichinho no jardim, pôs até uns pauzinhos em cruz no
montinho, realizou lá uma cerimoniazinha de adeus, e foi dormir. No dia
seguinte, acorda, abre a porta da entrada para pegar o jornal, e o que vê? A
menina não vai acreditar...
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