14 de dezembro de 2002

“O limite da humanidade"

“O limite da humanidade — romance de Philip Roth discute a identidade e o politicamente correto”, Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 2002.

Resenha sobre o livro A marca humana, de Philip Roth, ed. Companhia das Letras.

Entende-se por estampagem o fenômeno através do qual alguns animais se vêem afastados de sua própria espécie, não se reconhecem a si próprios como parte dessa espécie e não se comportam como tal, mal falando a mesma língua de seus pares. Pense-se em um bicho, enfim, que não sabe ser o bicho que é. Imagine-se em seguida o mesmo caso a passar-se com outra espécie — a nossa —, e se estará diante do centro nervoso de um dos grandes romances de Philip Roth, A marca humana (The Humain Stain), publicado nos Estados Unidos em 2000. Na tradução portuguesa, A mancha humana.

Roth, hoje um dos mais produtivos e ao mesmo tempo engenhosos escritores norte-americanos, chegou a ser considerado um dos mais escandalosos e polêmicos de sua geração. O já clássico Complexo de Portnoy (Portnoy's Complaint), com seu enredo totalmente estruturado à volta das aventuras catártico-masturbatórias de um homem — Alexander Portnoy —, causou rebuliço em 1969 e gerou toda a sorte de péssimas interpretações a defender com ingenuidade o caráter supostamente autobiográfico do romance. O poeta pode ser — e em geral é — um autêntico fingidor, mas a opinião pública americana e boa parte da crítica não entenderam nada disso à época.

Philip Milton Roth nasceu em 1933, em New Jersey, formou-se na Universidade de Bucknell, pós-graduou-se em literatura inglesa na Universidade de Chicago, deu aulas de “criação literária” nas universidades de Iowa e Princeton e já ganhou uma boa dúzia de prêmios ao longo de mais de vinte romances. O National Book foi para o seu primeiro livro de histórias, Goodbye, Columbus, and Five Short Stories, de 1959, e, anos mais tarde, em 1995, para o tórrido-cômico O Teatro de Sabbath (Sabbath's Theater). Por The Counterlife, de 1986, e o belo e lacrimoso Patrimônio (Patrimony), de 1991, um acerto de contas com a memória do pai, Roth recebeu o National Book Critics Circle. Acabou ganhando nada menos que o Pulitzer com Pastoral Americana (American Pastoral), de 1997, e o PEN/Faulkner com dois livros: Operação Shylock (Operation Shylock), eleito pela Time Magazine o melhor romance americano de 1993, e este A mancha humana, ou A marca humana.

A tradução direta da palavra stain é "mancha" ou "nódoa". Traduzir The Humain Stain como A marca humana, caso da opção brasileira, revelou-se um toque de elegância; aproveitou-se a multiplicidade de significados da palavra "marca" e aliou-se à idéia original de "mácula" ou "difamação" o sentido de "sinal", "impressão", "selo" ou "característica". A marca humana terá então essa ambivalência: tudo o que é humano por natureza e tem o humano como característica e constituição e, ao mesmo tempo, tudo o que não é originalmente humano mas foi então manchado ou maculado pela presença humana, adquirindo então a sua marca.

Animais criados por muito tempo em cativeiro sofrem a tal estampagem: ganham uma marca humana e deixam que se vá a original. É o caso do Príncipe, um corvo que perdeu a capacidade de reconhecer-se como um corvo, a capacidade de reconhecer outros corvos e a capacidade de falar, limitando-se a imitar os sons que as crianças produzem quando o imitam. Um corvo que não sabe ser um corvo; uma mulher que não sabe ser uma mulher. É o caso da estranha e magnética Faunia Farley, de 34 anos, faxineira da agência dos correios da pacata cidade americana de Berkshire, na região de Nova Inglaterra. Completamente analfabeta e maltratada não só pela vida mas pelos punhos de seu marido, um perturbado veterano da Guerra do Vietnã, violentada pelo padrasto quando miúda, acostumada a viver à parte de tudo, próxima dos animais, especialmente os corvos, afogada em sua imensa solidão, Faunia desaprendeu os jogos da sociabilidade, perdeu uma certa parte de sua humanidade e tornou-se — pese-se a palavra — básica.

A outra ponta dessa corda estica-se na figura de Coleman Silk, de 71 anos, um erudito professor de letras clássicas da pequena Athena University, também em Berkshire. A distância social e intelectual entre Coleman e Faunia é o inverso proporcional da atração um tanto selvagem que sentem um pelo outro quando afinal se esbarram casualmente na agência postal e encetam um caso, não propriamente de amor, muito propriamente de sexo. Coleman a chama Voluptas, a filha de Psique e, para os romanos, o prazer sensual corporificado. Conta-nos tudo isso o escritor Nathan Zuckerman, personagem-narrador de outros livros de Roth e, segundo ele próprio, não o seu alter ego mas o seu alter brain. Toda a história de A marca humana é a história que Nathan Zuckerman acaba escrevendo da vida de Coleman Silk, seu vizinho, amigo e confessor — uma história nada banal que começa a revelar-se a partir do instante em que o angustiado Coleman lhe bate à porta, lhe invade a casa e lhe conta, aos berros e prantos e despejando sobre a mesa uma ruma de documentos, como foi que uma espúria acusação de racismo destroçou a sua carreira, a sua família, as suas amizades, as suas emoções e, de modo fulminante, a vida de sua mulher, Iris.

“Alguém conhece essas pessoas? Elas existem mesmo ou será que são spooks?”, perguntou à sua turma o professor Silk, referindo-se a dois alunos que ele não conhecia e que, já na quinta semana do semestre, ainda não tinham aparecido em sala. Silk usou a palavra spook (“Do they exist or are they spooks?”), certamente em sua primeira acepção — "assombração", "fantasma". Mas foi esta palavra em seu segundo sentido — termo pejorativo atribuído aos negros —, mal escolhida, mal dita e mal compreendida, que acabou por formalizar a acusação de racismo, sensibilizar simploriamente os espíritos politicamente corretos da pequena Berkshire e colocar toda a comunidade universitária contra aquele homem, dando início ao que seria o seu mais longo exílio — o último.

É de exílio que se estará a tratar nesta longa e bela história de vidas. Coleman e Faunia, cada qual em seu exílio, têm, cada um, o seu segredo cuidadosamente guardado e lentamente destilado — o de Faunia morre com ela, escrito em seu diário, o diário de uma analfabeta; o de Coleman está inscrito em sua pele, a sua branca pele negra, a sua marca humana, à qual renunciou por toda a vida, e com êxito: Coleman Silk nasceu negro, em uma família negra, em meio a uma infância negra, mas viveu como um branco, renegando seus parentes negros, casando-se com uma judia e finalmente morrendo e sendo enterrado como um autêntico judeu.

A crise de identidade dos judeus, a intolerância da América macarthista e a atitude politicamente correta do academicismo norte-americano em seu recente surto de santimônia — parecem ser estes os assuntos prediletos de Roth em seus três romances, Pastoral Americana, Casei com um comunista (I Married a Communist), de 1998, e este A marca humana, considerado a parte final da monumental trilogia. Também se pode dizer que a insólita condição de Coleman, sendo negro e judeu e, ao mesmo tempo, não sendo uma coisa nem outra, representa, sim, com precisão, a esquizofrenia racial em que vivem os norte-americanos — divididos entre uma realidade etnicamente cindida e uma linguagem que não deve de modo algum sê-lo, e para tanto precisa policiar-se a si mesma, às vezes ao cúmulo do ridículo. O grande tema deste livro, no entanto, é a liberdade — uma liberdade tal que somente uma insólita condição como a de Coleman poderia proporcionar: a liberdade de reinventar o próprio passado, ou seja, o futuro.

Trechos da edição brasileira (referente a Coleman Silk):

“Devo toda essa turbulência e felicidade ao Viagra. Sem o Viagra, nada disso estaria acontecendo. Sem o Viagra, eu teria do mundo uma imagem adequada à minha idade e objetivos completamente distintos. Sem o Viagra, eu teria a dignidade de um cavalheiro idoso, livre do desejo, que se comporta de maneira correta. (...) Sem o Viagra, eu poderia continuar, em meus anos de declínio, a desenvolver a perspectiva ampla e impessoal de um homem instruído, experiente, honestamente aposentado, que desde muitos anos renunciou à fruição sensual da vida. Eu poderia continuar a extrair profundas conclusões filosóficas e exercer uma sólida influência moral sobre a juventude, em vez de me pôr de volta no estado de emergência perpétua que é o arrebatamento sexual. Graças ao Viagra, entendi as transformações amorosas de Zeus. É assim que deviam ter chamado o Viagra. Deviam ter chamado de Zeus.” (p. 50)

1º trecho referente a Faunia Farley:

“E Faunia lembrava quanta força tinha feito para morrer. (...) No mês seguinte à morte dos filhos, duas vezes tentei me matar naquele quarto. Para todos os efeitos, consegui na primeira vez. (...) E eu tentei com tanta força. Lembro-me de ter tomado banho de chuveiro, raspado as pernas, vestido a minha melhor saia, a saia comprida de brim. A túnica. A blusa comprada em Brattleboro naquela vez, naquele verão, a blusa bordada. Eu me lembro do gim e do Valium, e lembro vagamente daquele pó. (...) Um tipo de raticida, amargo, e eu o misturei no pudim de caramelo. Será que abri o gás do forno? Será que esqueci? Será que fiquei azul? Por quanto tempo dormi? Quando resolveram arrombar a porta? (...) Para mim, foi um êxtase me preparar. Tem ocasiões na vida em que vale a pena a gente celebrar. (...) Ocasiões feitas para a gente se vestir com todo o capricho. Ah, como eu me arrumei. Pus fitas no cabelo. Pintei os olhos. Até minha mãe teria ficado orgulhosa de mim (...). Telefonei para ela uma semana antes para contar que as crianças tinham morrido. O primeiro telefonema em vinte anos. ‘Aqui é Faunia, mãe.’ ‘Não conheço ninguém com esse nome. Desculpe’, e desligou. A sacana.” (p. 327)

2º trecho referente a Faunia Farley:

“— É nisso que dá ser criado em cativeiro — disse Faunia. É nisso que dá ficar a vida toda metido com gente feito nós. A marca humana — disse ela, e sem repulsa, desprezo ou condenação. Nem sequer com tristeza. É assim que são as coisas. (...), deixamos uma marca, deixamos um vestígio, deixamos um sinal. Impureza, crueldade, ofensa, engano, excremento, sêmen: não existe outro modo de viver aqui. Não tem nada a ver com desobediência. Nada a ver com graça, salvação ou redenção. Está em todos. Residente. Inerente. Característico. (...) A marca tão intrínseca que não requer um sinal. A marca que precede a desobediência, que abarca a desobediência e desnorteia toda explicação e qualquer entendimento. É por isso que toda purificação é uma piada. Uma piada de bárbaros, aliás. A fantasia da pureza é aterradora. É demente. O que significa a busca da pureza, senão mais impureza? A conclusão de Faunia seria naturalmente esta: somos criaturas inevitavelmente marcadas. Reconciliadas com a horrenda imperfeição original. Ela é como os gregos (...) de Coleman. Como os deuses deles. São mesquinhos. Discutem. Brigam. Odeiam. Matam. Trepam. O tal do Zeus deles só quer saber de trepar — deusas, mulheres, mortais, novilhas, ursas — e não só na sua aparência genuína mas, o que é ainda mais excitante, metamorfoseado numa fera. Montar sobre uma mulher na forma de um touro imenso. Penetrá-la, com extravagância, na forma de um cisne branco que bate as asas. Nunca havia carne o suficiente para o rei dos deuses, nem perversidade bastante. (...) Não o deus hebraico, infinitamente só, infinitamente obscuro. Monomaniacamente o único deus que existe, existiu e sempre existirá, sem nada melhor para fazer do que cuidar dos judeus. E em vez de tudo isso, o Zeus grego, (...) caprichoso, sensual, exuberantemente unido à sua própria e notável existência, tudo menos sozinho, tudo menos oculto. Em vez de tudo isso, a marca divina. (...) Deus da libertinagem. Deus da corrupção. Um deus de vida, como nunca houve outro. Deus à imagem do homem.” (p. 323-324)

7 de dezembro de 2002

16 de outubro de 2002

22 de agosto de 2002

"Horário Nobre, Literatura e Televisão"

VI Mostra PUC-Rio

PUC-Rio - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Acerca das relações entre níveis de audiência, literatura e entretenimento, tendo como mote a adaptação do conto “A Cabine” para a Rede Globo de Televisão.

3 de agosto de 2002

“Uma vida pela metade"

“Uma vida pela metade — Com virtuosismo, o Nobel V.S. Naipaul faz um romance de formação em que tudo dá em nada”, Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 de agosto de 2002.

Resenha sobre o livro Meia vida, de V.S. Naipaul, ed. Companhia das Letras.

O que vem a ser uma meia vida? Uma das acepções do dicionário pertence ao campo da física nuclear e faz referência ao tempo necessário para que se reduza à metade, por desintegração, uma determinada quantidade de átomos radioactivos. Qual o tempo necessário para que se constate o esgotamento, por desintegração e falta de sentido, de uma determinada quantidade de actos humanos? O que significa olhar para trás e ver — ou não ver — significado no que foi feito? A partir de que idade já não se pode mais errar na escolha dos caminhos? O que sugerir àquele que chega à metade da vida e percebe que não viveu a sua vida? Que a recomece? Que se ponha a contá-la em detalhes, mesmo que através de meias verdades e meias palavras?

O romance Meia vida, de sir Vidiadhar Surajprasad Naipaul, conhecido como V. S. Naipaul — prémio Nobel de Literatura em 2001 e autor de mais de vinte livros, entre romances, ensaios e relatos de viagem —, é um composto de três histórias deliberadamente contadas pela metade. Contá-las pela metade não significa interrompê-las a meio caminho; significa simplesmente que as vidas a que se referem se esgotaram e nada mais têm a oferecer; que perderam o sentido — se é que algum dia o tiveram — e que se perdeu, portanto, o sentido da própria narrativa. Meia vida — publicado em 2001 na Inglaterra — tem como tema a leviandade, a inconstância e o fracasso de dois homens, pai e filho, que se dispõem a contar as próprias vidas, acreditando ambos que o mero ato de as contar — e contar uma vida quer dizer olhá-la de longe e com alguma isenção — já teria por si só o condão de preenchê-las de sentido, dando-lhes razão e forma. Não é o que acontece.

O pai de Willie Chandram conta a seu filho os detalhes de sua decadência: como foi que, nos anos de 1930, na Índia, acreditando na existência romântica de alguma espécie de pequeno demónio da rebelião em si mesmo, boicotou a universidade, atendendo aos apelos de Gandhi, e chutou o balde das tradições de sua família — composta de sacerdotes fiéis ao governo e aos casamentos arranjados no interior de uma rígida estrutura de castas. Alegando combater a condição colonial e a vida de servidão que o esperava, largou o emprego, casou-se com uma mulher de casta inferior e, não sabendo mais o que fazer com a sensação de inutilidade que o assombrava, escondeu-se no interior de um voto de silêncio — um silêncio, no entanto, muito pouco eloquente. A história que o pai de Willie conta a seu filho é a história de como foi que se tornou um asceta de meia-pataca.

Um narrador em terceira pessoa conta-nos então a segunda história: decepcionado com o pai, o jovem Willie, indiano pela metade e filho pela metade de um pai que não é bem seu pai, vai para Londres e a conhece também pela metade — lá tornando-se inglês pela metade e pela metade um escritor de peças radiofónicas para a BBC. Começa a escrever ficção, mas seus contos não passam de reescrituras reclimatizadas de velhas histórias de cinema. Publica, mesmo assim, um livro de que não gosta, participa pelas beiradas do fechado círculo de artistas da cidade, inventa um passado grandioso para seus antepassados, mente sobre o pai, sobre a mãe e sobre si mesmo, vive amizades cortadas ao meio por mulheres cujo amor conquista somente pela metade, conhece aquela que provavelmente foi a sua única e admirada leitora e casa-se. Sem saber o que fazer da vida e louco para deixar Londres, sugere a Ana, sua mulher, que partam para a terra dela, Moçambique, e lá passem a viver uma nova vida.

E na África começa a terceira história, narrada em retrospectiva pelo próprio Willie numa clara tentativa de emprestar algum sentido ao curso de suas decisões desde o momento em que pôs os pés para fora da Índia, em declarada fuga do pai e daquilo que ele e seu silêncio representavam. A nova vida recomeça numa fazenda colonial portuguesa, propriedade dos avós de Ana, onde Willie permanece por longos dezoito anos, fazendo o papel do marido, do patrão e do amigo dos amigos de sua mulher.

Meia vida pode ser considerado um romance de formação, um Bildungsroman. A formação de Willie Chandram, no entanto, com todos os seus aprendizados, deu em pouco — Willie aprende, mas nem tanto; sofre, mas nem tanto; ama, mas nem tanto —, e é este pouco muito bem manuseado que faz de Meia vida um trabalho de profissional: maduro, afiado, cheio de sutilezas; um romance que só poderia ter sido escrito na altura em que o foi: o final de uma longa carreira literária. Não há na história qualquer concessão à tentação do exagero e do estereótipo. A narrativa, em delicado equilíbrio, caminha sob um passo médio que poucos romances conseguem sustentar. Não há clímax, queda de ritmo, frases de efeito, momentos de suspense, personagens inesquecíveis ou grandes descrições. Há, sim, um comovente entendimento do que vem a ser uma vida inteiramente ordinária — humana: trivial e demasiadamente humana. Sir Naipaul escreveu um romance sem heroísmo ou tragicidade; um romance que consegue ser tanto mais literário quanto menos se compromete a sê-lo.

13 de julho de 2002

“Um tiro certeiro na cultura americana"

“Um tiro certeiro na cultura americana — Horace McCoy ronda a violência no mundo do espetáculo”, Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 de julho de 2002.

Resenha sobre o livro Mortalha não tem bolso, de Horace McCoy, ed. Sá Editora.

Se estamos hoje a falar de Horace McCoy (1897-1955) é porque num belo dia de 1935 ele publicou seu mais brilhante e violento romance. They shoot horses, don’t they? é uma pergunta, um título e um dedo apontado para a sociedade do espetáculo em que se foi transformando a sociedade americana, para utilizarmos a exata expressão de Guy Debord, cunhada bem mais tarde, em 1967, mas perfeitamente aplicável tanto para a década de trinta nos Estados Unidos, em plena Depressão Americana, quanto para a Europa pós-68 e toda a sociedade do entretenimento globalista em que nos convertemos. They shoot horses, don’t they? tornou-se imediatamente um clássico cult, uma obra existencialista — “a primeira norte-americana”, segundo sugestão do casal Sartre, perito no assunto — e um filme aclamadíssimo, dirigido por Sidney Pollock, protagonizado por Jane Fonda e Michael Sarrazin e intitulado, aqui no Brasil, A noite dos desesperados. O livro foi publicado pela primeira vez no Brasil em 1947, na tradução de Erico Verissimo, e pela segunda vez em 2000, pela Sá Editora, em novo texto do jornalista e escritor Renato Pompeu.

Se quisermos representar o universo ficcional de Horace McCoy: a sociedade do entretenimento em sua face mais sórdida, podemos lançar mão dessa justíssima e desumana fábula de Sylvio Massa de Campos: “Por engano, trocaram as facas. O mágico engolidor de facas, procurando os aplausos, enfiou-a com ímpeto na própria garganta. Espantado, os seus olhos piscavam de dor, medo e horror. Bem abaixo do peito, um forte jato de sangue começou a colorir o picadeiro. O público aplaudia delirantemente a mágica”. Se, em A noite dos desesperados, o centro dramático eram as sangüíneas competições de dança em que os casais inscritos deveriam bailar até a exaustão, em troca de pão, trocadinhos e alguns poucos quinze minutos de fama, neste outro romance de McCoy, o caso é outro, porém o mesmo.

A história de Mortalha não tem bolso, tradução de No pockets in a Shroud — provavelmente um equivalente inglês para a máxima “Deste mundo nada se leva” —, tem como centro dramático o jornalismo e a tênue marca divisória entre imprensa livre e imprensa sensacionalista. Passa-se numa cidadezinha americana típica e apresenta o jovem herói Michael Dolan, um repórter que não tem medo de nada: não tem medo do poder, não tem medo do dinheiro, não tem medo de seus patrões e adora dizer a verdade. Um dia, é claro, foi despedido. Em seguida, resolve matar-se: funda, com os fundos que não tem, a sua própria revista semanal independente — a Cosmopolite — e desanda a denunciar todo o tipo de autoritarismo, desmando e abuso de poder que é capaz de apurar nos limites da cidadezinha onde mora: os crimes de colarinho branco, a prática ilegal da medicina e as associações fascistas clandestinas comandadas pelos chefes de família da região, a defender a moral, a tradição e os bons costumes, somente encontráveis no “macho adulto branco sempre no comando” — a única “raça” com direito garantido de ir e vir. Dolan — sedutor, famoso entre as mulheres, infantil, ingênuo, idealista e arrebatado — consegue algum dinheiro, consegue manter a sua Cosmopolite de pé durante duas ou três semanas, consegue deixar explícito o chamado “rabo preso” dos demais jornais, consegue destacar-se entre seus pares, consegue denunciar metade da cidade e consegue, ao final, levar uma boa surra e um tiro na cabeça.

Mortalha não tem bolso pode ser considerado um pedaço da história do próprio Horace McCoy. À semelhança de algumas características de seu destemido personagem Mike Dolan, McCoy também serviu à sua pátria por um e meio, durante a Primeira Guerra, e foi, além de escritor e roteirista de cinema, repórter, jornalista, fundador do Teatro de Bolso de Dallas — e ainda caixeiro-viajante, guarda-costas de político e leão-de-chácara. Escreveu Mortalha não tem bolso em 1937, e não mediu palavras. O texto — jornalístico, informal, desbocado e entupido de diálogos — revela-se uma espécie de placa de Atenção, perigo!, a apontar o dedo para Hitler, para Mussolini e para todo o lixo ideológico em que se meteu a Europa.

Horace McCoy, na pele de Mike Dolan, seu alter ego e super-herói da história, tem a coragem e o desprendimento suficientes para escrever com força e convicção acerca dos mais graves problemas norte-americanos. Vá lá. Prova-o o lema da revista de Dolan, a bombástica Cosmopolite, que assim clama: “A Verdade, toda a Verdade e nada mais do que a Verdade”. Há em tudo isso, no entanto, um senão óbvio e perigoso. O problema de se lutar por uma Verdade com maiúsculas é acreditar que se pode encontrá-La e Dela tomar posse. Todo o autoritarismo ao qual nos opúnhamos se transforma então no autoritarismo do qual passamos a nos valer — e em nome Dela.

1 de junho de 2002

“João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano"

2002-06
Não assinado, “João Ubaldo Ribeiro, o mal com sotaque baiano — o autor fala das influências autobiográficas de seu novo livro, da imagem e da profissionalização do escritor”. Literatura, Entrevista, Continente, ano II, nº 18, jun. 2002, p. 40-47.

JUR: “Foi ele que me persuadiu a não usar epígrafes. Eu estava escrevendo meu primeiro romance, que ele acompanhou lendo os originais. (...) Em O vermelho e o negro cada capítulo é precedido de uma epígrafe. Eu, entusiasmado, queria fazer a mesma coisa. (...) Disse que estava fantástico, mas sugeriu: ‘Tira essa frescura de epígrafes’. Desde então só uso epígrafes que eu mesmo construo. (...) Não aparece um Glauber todo dia”.

“A nostalgia do exílio de Milan Kundera"

“A nostalgia do exílio de Milan Kundera — Ignorância explora angústias e alegrias do retorno à pátria”, Jornal do Brasil, Caderno Idéias, Rio de Janeiro, 1 de junho de 2002.

Resenha sobre o livro A ignorância, de Milan Kundera, ed. Companhia das Letras; edição portuguesa: ed. Edições ASA.

Os espanhóis dizem añoranza; os alemães, Heimweh; os islandeses usam dois termos: söknudur e heimfra; os holandeses falam heimwee; os tchecos têm stesk; a língua inglesa tem homesickness; a língua portuguesa tem saudade. Por detrás, a iluminar esses termos, o sentido etimológico da palavra nostalgia: as saudades que sente de sua pátria o exilado. Assim dizem os tchecos, no espaço entre duas lágrimas, a sua mais bela frase de amor: “Styska se mi po tobe”, “Sinto nostalgia de ti”, sendo insuportável a dor de tua ausência. A añoranza espanhola vem do verbo añorar, ter nostalgia; do catalão enyorar; do latim ignorare. A nostalgia representa, antes de tudo, o sentimento da ignorância: a ignorância de não se saber o que ocorre com o objeto perdido, o amante ou a terra natal, ou seja, a infância, o primeiro amor, a primeira tristeza. Felizes as línguas que conseguem expressar um sentimento tão grave, tão insolúvel, quanto a nostalgia. As que não conseguem debatem-se com palavras que se aproximam da idéia, mas não a vêem, ou não a reconhecem.

Nostalgia tanto sente aquele que se afasta de sua terra, em exílio voluntário ou forçado, como aquele que retorna, empurrado ou com as próprias pernas. A ignorância, de Milan Kundera, é um romance não tanto sobre o exílio do modo como o entendemos — a expatriação, espontânea ou não —, mas sobre o exílio que se segue ao exílio: o exílio que se vive depois que se decide voltar; o exílio de si mesmo, dentro de si mesmo, dentro de casa. A casa de que se fala aqui é Praga — invadida em 68, ocupada em 69, abandonada em 89 —; os exilados, Irena e Josef. Ela retorna da França; ele, da Dinamarca; ela quer ficar; ele, não; ela o reconhece e sabe seu nome; ele, não, mas dissimula. Esse é um livro de poucas alegrias, muitas idéias e um único momento, arrebatador, orgástico e derradeiro. Irena e Josef encontram-se, encantam-se, arrebatam-se e afastam-se.

Para contar o retorno de seus nostálgicos exilados, Kundera esbarra, aqui e ali, em breves parágrafos, na história do ilustre Ulisses, fértil em ardis, caracterizando A odisséia como a epopéia fundadora da nostalgia, e o divino Ulisses, descendente de Zeus, como o primeiro nostálgico de que se tem notícia. Kundera relê A odisséia com os óculos da nostalgia e em seguida, com as mesmas lentes, debruça-se sobre a vida de sua Irena, comparando o seu retorno ao de Ulisses dos mil estratagemas, ou Odisseus, que, depois de dez anos a guerrear em Tróia, ainda passa uns maus bocados andando pelo mundo e tentando chegar a casa, a velha Ítaca de altos muros e belas cumeeiras. Não consegue. Retém-no em sua ilha a ninfa Calipso, paparicando-o por longos sete anos, até que o artificioso filho de Laertes, o valoroso Ulisses, já enfadado e saudoso de sua prudente Penélope, escapa e dá novamente início ao seu retorno a casa.

A mesma embriaguez do retorno sente Irena ao pôr os pés em Praga. O mesmo vazio sente Ulisses, modelo de paciência, quando se depara com o fato de que ninguém em Ítaca está interessado em saber como fora sua vida ao longo daqueles vinte anos de guerras e viagens — os longos vinte anos que o fizeram homem e que representam o melhor de sua vida, o mais importante, o essencial. Do mesmo modo, os longos vinte anos que passou Irena em França, e nos quais ninguém em Praga estava interessado, representam a formação de sua identidade — uma identidade que por certo transcende sua estereotipada condição de “tcheca exilada em França”. Se não rememora esse tempo, Irena perde-o. Quanto mais distantes se tornavam aqueles vinte anos em Paris, mais distante de Praga ela se sentia. “Quanto mais Ulisses se entristecia, mais ele esquecia”, escreve Kundera. Assim como Irena em Praga, Ulisses em Ítaca não era um estrangeiro. A um estrangeiro se pede que fale de si, de onde vem, para onde vai e que aventuras viveu. Irena e o judicioso Ulisses aprenderam a calar-se à força e, esquecidos de si, exilados em casa, entraram em nostalgia.

Nunca saiu de sua nostalgia o narrador de Kundera, ou o próprio Kundera, se preferirmos — e preferimos, já que toda a inteligência de seus romances se desenvolve a partir da justaposição operada entre autor e narrador. Ambos assumem a condição privilegiada de sua onisciência para, além de descrever e historiar, desenvolver pensamentos e ensaiar teorias acerca de seus temas e personagens. A denominação “o narrador de Kundera” pode então encerrar dois sentidos. O primeiro é evidente e clássico: “aquele que narra a história em um livro de Kundera”. O segundo sentido para “o narrador de Kundera” é uma suposição: “aquele que narra o próprio Kundera” — não a história de sua vida, mas a história de suas idéias. A ignorância apresenta-se como um autêntico romance de idéias — um romance conduzido por um redondo, transparente e às vezes indiscreto narrador que não revela a menor pudicícia em dizer eu: quem manda aqui sou eu, eu estou aqui a contar essa história, eu penso isso e não aquilo, eu me lembro disso e não daquilo.

Esquecimento e lembrança, exílio e nostalgia, são os dois melancólicos casais a resumir a galeria dos principais personagens de seus romances: a representação do arquetípico papel do ser humano desgarrado de sua terra e preso à sua própria nostalgia. Kundera, que tem, na alma, a pele do desgarrado, nasceu em 1929 na cidade de Brnö, na Tchecoslováquia, e em 1948 entusiasmou-se pelo ideal comunista. Dois anos depois foi expulso do partido devido ao seu “excesso de individualismo”. Em agosto de 1968, por ocasião da invasão russa, destacava-se como um dos principais motores da “Primavera de Praga”. Foi então duplamente silenciado: não mais podia dar aulas, tampouco podia vender livros. Em 1975, com 46 anos, viajou para a França na condição de emigrado voluntário. Graças ao impacto de seu Livro do riso e do esquecimento junto ao governo tcheco, perde sua cidadania de origem em 1979 e, em 1981, “torna-se” francês.

“O que é que você ainda está fazendo aqui!” é a exclamativa pergunta que abre as páginas de A ignorância e que se dirige a Irena, no outono de 1989, data em que os russos “gentilmente” abandonam a Tchecoslováquia. “E onde deveria estar?”, pergunta ela, “francesa” já há vinte anos. “Na sua casa!”, respondem-lhe. O retorno de Irena a Praga pode tomar o lugar, no plano imaginário, do retorno que o próprio Kundera a seu tempo talvez não tenha empreendido. A exemplo do que disse Flaubert acerca de sua Emma Bovary, Kundera poderia dizer, também em francês, incorporando pedaços de seus dois personagens: “Irena sou eu; “Josef também sou eu”. Criá-los foi a sua maneira de não esquecer. E é por isso que o autor de A brincadeira (1965), Risíveis amores (1969), O livro do riso e do esquecimento (1978), A insustentável leveza do ser (1982), A imortalidade (1988), A lentidão (1994), e outros tantos títulos, entre poemas, peças e ensaios, tem na voz de seu narrador um eco do que lhe vai à cabeça. Ambos acreditam no contar e recontar histórias como uma maneira de não esquecer, sim; mas sabem que o passado não é algo que se possa simplesmente trazer à tona, não existindo por si, senão como uma retalhada e lacunosa presentificação. Sabem também que toda rememoração é ilusória e que alguns pedaços de vida são lembrados justamente para que outros sejam esquecidos. Sabendo de tudo isso, sabem portanto que a lembrança constitui, ao fim e ao cabo, uma das mais ardilosas formas do esquecimento.

11 de maio de 2002

“Uma metáfora para a morte"

“Uma metáfora para a morte — Autor indiano constrói fábula sobre pobre coitado que recebe nome de Vishnu”, Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 de maio de 2002.

Resenha sobre o livro A morte de Vishnu, de Manil Suri, ed. Companhia das Letras; edição portuguesa: ed. Edições ASA.

Os deuses são imortais, sim, mas não porque não morram. Os deuses são imortais porque não acabam de morrer. Não concluindo a tarefa da morte, permanecem morrendo por toda a eternidade, navegando o barco fantasma de seus últimos dias sobre o restante dos seres — estes sim mortais para valer, já que nascem e vivem unicamente para accionar o gatilho de sua própria extinção: sua vida, por mais curta que seja, é longa, e sua morte, por mais definitiva e irrevogável que se apresente, é breve. Os deuses são diferentes: vivem a morrer; nunca deixam de morrer.

Este é o caso de Vishnu, cujo nome tem aqui três destinos: é o nome de um deus hindu, o nome de um homem, o nome de um livro. Aliado a Brahma — o grande criador — e Shiva — o grande destruidor —, Vishnu, a meio caminho entre um e outro, faz o papel do máximo senhor e mantenedor de tudo o que existe. Ao conjunto de suas acções dá-se o nome de karma, sendo o karma tudo aquilo que mantém o mundo em movimento incessante e obstinado. Os três compõem a tríade de babás, ou zeladores, a tomar conta do universo, sustendo-o justo e equilibrado em suas forças e fraquezas. Trata-se da trimúrti, a trindade indiana a representar as três faces da Natureza — mais uma bela maneira de apresentar a ideia de que tudo, no fundo, é uma coisa só.

Vishnu é também um nome de gente; o nome de um ganga, ou seja, uma espécie de empregado doméstico a serviço de várias casas. O ganga Vishnu, quase um bechara, um coitado, habita um vão de escadas, entre o térreo e o primeiro andar de um prédio de apartamentos em Bombaim, na Índia. Em troca de pequenos favores, deixam-no lá dormir, deixam-no lá acordar e lá embriagar-se, deixam-no lá viver — até o dia em que começa a morrer. E o que fazem? Deixam-no lá, a morrer. O que sucede aos moradores do prédio durante o passamento de Vishnu forma a história deste livro: a história de uma morte que dura 308 páginas. Vishnu morre como um imortal, a cuja morte ninguém nunca assistiu; morre como um deus: altiva, lenta e infinitamente.

A morte de Vishnu é o primeiro romance do indiano Manil Suri, nascido em Bombaim em 1959, doutor em matemática e professor da universidade americana de Maryland. Diz o autor, em nota introdutória, que as escadas do prédio de apartamentos em que passou a infância também um dia abrigaram um ganga, morto em “agosto de 1944, no mesmo patamar que ocupou durante muitos anos”. Suri — parido quinze anos depois — reteve de seu ganga “histórico” não a vida, que não conheceu, nem a morte, a que não assistiu, mas o nome, Vishnu, a partir do qual deu vida ao seu próprio Vishnu, que começa o livro morrendo. À medida que morre, delira. À medida que delira, acredita-se — e, portanto, torna-se — o deus que leva o seu nome.

Manil Suri cria, a partir do prédio de apartamentos que configura o hábitat do romance, a representação de uma pirâmide, não social, mas espírito-existencial. Em sua base larga e densamente povoada estão a maioria dos viventes e seus sentimentos primários e subterrâneos, entre eles a mesquinhez e a frivolidade das duas vizinhas do primeiro patamar, a sra. Pathak e a sra. Asrani, sempre aos berros, sempre às turras pela posse da cozinha, do azeite, da manteiga e da água, sempre uma a vigiar a outra, a roubar a outra, a deslouvar a outra, e empurrando-se mutuamente a responsabilidade pelo estado moribundo de seu ganga e pelo seu cheiro de coisa a desfazer-se que afinal já começa a tomar conta daquele primeiro patamar. A base ainda abriga a subserviência de seus maridos, desestimulados para qualquer tipo de contenda familiar, inteiramente acomodados às suas vidas bocejantes, assexuadas e egoístas.

Em seguida, a meio caminho entre a base e o topo, no segundo patamar, portanto, a família Jalal e sua ruptura básica: o abismo de ideias entre o casal Arifa e Ahmed — ela, convencional e mediana, desde sempre educada no islamismo ortodoxo, considera o marido um blasfemo; ele, um intelectual de todas as religiões, pluralista e liberal, descobre-se insatisfeito com sua vivência meramente teórica do fenómeno da transcendência e decide então alcançar a ascensão espiritual através da experiência do martírio e da dor. Depois de patéticas sessões de auto-flagelação, e diante de sua baixíssima resistência à dor que a dor provoca, desiste, em nome de algo mais digno: espalhar a fé. Para tanto, elege para deus o ganga Vishnu, ali deitado no primeiro patamar, às portas da morte, e a si mesmo como o seu profeta Ahmed.

No último andar, um pouco abaixo do terraço de onde se pode ver o céu, o tristonho sr. Taneja, ou simplesmente Vinod — uma palavra para felicidade. A ausência de seu grande amor, sua mulher Sheetal, vencida pela doença, gera uma melancolia, uma tristeza e uma saudade tão persistentes, tão cotidianas, que Vinod consegue, após décadas de sucessivos mergulhos nas profundas de si mesmo, secar enfim as lágrimas e simplesmente dedicar-se à contemplação acrítica do mundo — vencendo em si mesmo a necessidade do outro, de qualquer outro.

A morte de Vishnu é um romance inteligente, engraçado e bastante feliz naquilo a que se dispõe: a montagem de um painel humano. A história, no entanto, passaria muito bem sem o próprio Vishnu. O ganga e sua morte, a bem dizer, não são muito e nem o mais importante do livro. São um bom pretexto para que se possa falar dos vivos — estes sim a óptima massa ficcional de Manil Suri. A partir do universo de um edifício de classe média em Bombaim, com seus gangas; suas dhobi, lavadeiras; suas jamadarni, limpadoras de privadas; seus halwai, vendedores de doce; e todos os seus condóminos, o autor monta um mapa social, psicológico, religioso e filosófico de seu povo e — de certo modo — de sua espécie. Dizer “de certo modo” significa reconhecer que podemos, sim, mesmo estando distantes, mesmo sendo diferentes, outros, encontrar cúmplices naquilo que lemos, ou seja, tornar vívidos, e portanto hipoteticamente vividos, um sofrimento, uma alegria, uma angústia experimentados por esse ou aquele personagem. Quando isso acontece — ou seja, quando a experiência alheia se torna inteligível através da experiência da leitura, e nem mesmo um país, uma cultura, um tempo e um espaço conseguem enfraquecer a potência de uma condição universal alcançada —, a literatura torna-se uma espécie de panteísmo: ela a tudo atravessa, sendo a soma de tudo o que existe.

13 de abril de 2002

“Personagem roubado de Dickens"

“Personagem roubado de Dickens — Estrela da literatura australiana, o premiado Peter Carey apropria-se da atmosfera nevoenta da Londres do século 19”, Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 de abril de 2002.

Resenha sobre o livro Jack Maggs, de Peter Carey, ed. Record.

Jack Maggs é seu nome. E quem é Jack Maggs? Um homem alto, grande, de costas largas, quarenta anos, mãos quentes e pernas fortes. Seu cabelo está em constante desalinho, seu colete vermelho não abandona o tronco espadaúdo e sua bengala de cabo de prata não se descola de seu passo. Da sua mão esquerda saem apenas três dedos, da pele do rosto, um brilho estranho de quem muito apanhou na vida, da sua boca torta, pouquíssimos sons. Mas quem é Jack Maggs? Em outras e em menos palavras, ninguém sabe. Sabe-se que chegou a Londres no dia 15 de abril de 1837, que veio de longe e que está decidido a acertar as contas com o passado. Que passado é esse? Ninguém sabe bem. Sabe-se que Maggs odeia perguntas, sofre de espasmos faciais e tem medo de ser enforcado. Por quê? Ninguém sabe bem. Sabe-se que foi condenado à prisão perpétua em 1813 e entrou em liberdade condicional em 1820. Sabe-se que conseguiu enriquecer em seu degredo australiano e que retornou à velha Londres, sua cidade natal, a fim de encontrar um determinado sujeito, de nome Henry Phipps. E quem é Henry Phipps? Ninguém sabe, exceto Maggs, o condenado. E mais o quê? Mais nada. Sabe-se quase nada acerca de Jack Maggs.

Sabe-se que Jack Maggs é o título do penúltimo romance do escritor australiano Peter Carey, 58 anos — autor de dois livros de contos: The Fat Man in History (1974) e War Crimes (1979), escritos durante o tempo em que trabalhou com publicidade em Melbourne e Sidney; do roteiro de Até o fim do mundo, dirigido por Win Wenders, e dos romances Bliss (1981); Illywhacker (1985); os famosos Oscar and Lucinda (1988) e True History of the Kelly Gang (2000), ganhadores de dois Booker Prize; The Tax Inspector (1991) e The Unusual Life of Tristan Smith (1994). Carey mora há dez anos em Nova Iorque, escrevendo e trabalhando metade do dia como professor de redação criativa na New York University. E Jack Maggs?

Jack Maggs, publicado em 1997 e agora no Brasil, na tradução de Vera Whately, tem sido comparado ao romance Great Expectations (Grandes esperanças), de Charles Dickens (1812-1870), publicado em 1861 e cuja história também conta com a desagradável presença de um degredado, o iracundo Abel Magwitch, a espiar seus pecados, angústias e culpas na mesma cidade: a nevoenta Londres do século dezenove — com suas vielas sujas e fedidas, seus coches a transitar entre as bostas cavalares, suas barracas de café a misturar seus cheiros com os do carvão em brasa, suas lojas de doce, suas lojas de peixe, sua escuridão noturna a ocultar as prostitutas, o fog subitamente iluminado pelo facho turvo de um archoteiro contratado no meio da noite para acompanhar um ou outro cavalheiro em pecado ou em apuros, a Fleet Street, o Haymarket, a Strand e, antes e depois de tudo, os segredos. Todo o romance de Carey é construído por cima de um pacote de segredos — em algum lugar, sempre um segredo a ser mantido, negociado ou traído, em cada canto, casa e beco da velha Álbion, há alguém escondendo alguma coisa de alguém ou de muitos. Mas nenhum segredo pára quieto.

Jack Maggs é a história de um desnudamento; um vagaroso e ininterrupto desnudamento operado, em ordem crescente de intensidade, por três vozes narrativas: o narrador, o próprio Jack Maggs e um terceiro personagem, este sim bastante polêmico, este sim o seu verdadeiro antagonista: o escritor Tobias Oates — jornalista, cronista, autor de um romance de costumes chamado Capitão Crumley e de um segundo, em andamento e descaradamente revelador, em todas as suas minudências, do misterioso passado de Maggs, o condenado.

O narrador não passa de uma instância técnica a mover-se na terceira pessoa e com impessoalidade no universo da história; um clássico narrador onisciente e onipresente a apresentar personagens e a conduzir os diálogos; uma câmera objetiva cuja maior preocupação vem a ser a descrição minuciosa e obsessiva de um ambiente — um ambiente sórdido. Mas esse narrador em terceira pessoa poderia mostrar-se menos prolixo, menos detalhista e menos didático. Há ali um excesso de explicações, e explicar ao leitor de modo esmiuçado cenas ou estados de espírito de personagens é tarefa chata para ambos, para o que escreve e para o que lê. Isso todo o mundo sabe, isso nem mais se diz, mas vá lá, está dito. Vez por outra, no entanto, e felizmente, essa voz narrativa se transforma e muda o foco do olhar, intensificando a operação de desnudamento. Quem inaugura e assume então a primeira pessoa da narração, numa espécie de flashback memorialista, é o próprio Maggs, dando início a uma série de cartas a serem entregues ao homem a quem decidiu caçar a qualquer custo em Londres — cartas dirigidas a Henry Phipps, e quem é Henry Phipps? —; cartas escritas de trás para frente (sppihP yrneH oraC) e numa tinta invisível à qual se deve aplicar um pouco de limão para que as letras se iluminem; cartas a serem lidas diante de um espelho; cartas que se revelam verdadeiros capítulos de uma curta autobiografia: a infância do menino Jack. E dessa infância pobre nos acercamos tanto que lhe podemos sentir os cheiros mais íntimos. E por que Maggs quer contar a Phipps o seu passado? O que há de tão escandaloso nessa infância pobre que justifique estarem invertidas as letras e ser invisível a tinta? Alguém mais conhece essa história?

Sim: a terceira voz narrativa a operar o desnudamento — este sim radical e definitivo, e não apenas uma palavra comprida e bonita. A decisiva função do escritor Tobias Oates na história é deixar Maggs, o condenado, nu em pêlo e também todo o seu passado, tirando-lhe a camisa em público e expondo suas costas marcadas pela chibata australiana, arrancando-lhe as mais íntimas confissões para, com sua pena de ganso, sua tinta e seu caderno de couro, escrever uma história proibida, um romance sugestivamente intitulado A morte de Maggs. Mas o escritor Tobias Oates não é um personagem fácil de se descrever e entender. Pode ser lido como uma referência à própria figura de Charles Dickens: cronistas ambos, vaidosos jornalistas ávidos por reconhecimento social, Tobias e Charles escreviam para o mesmo Morning Chronicle as mesmas “histórias da cidade”, eram carentes de amor e poder, produziam freneticamente, nunca foram amados, nunca foram crianças. A ficção que Oates pratica e produz é arrancada à força das pessoas que o cercam, que para mais nada servem senão para isso: são admiradas na exata medida em que prestam ficcionalmente; são descartadas quando se transformam na mesmice de si mesmas. Oates, no entanto, à diferença de Dickens, é pouco imaginativo, embora bastante astucioso: sabe arrancar do outro, mediante nublosos expedientes, o que ele mesmo não tem em si: uma boa história.

Mas como arrancar de um homem a sua própria história, senão delicadamente? Vejamos como se procede: o sujeito se senta confortavelmente e, guiado pelas perguntas certeiras e profissionais de seu interlocutor, começa a falar de si, rememorando sua infância e, desse modo, exorcizando seus fantasmas. Que nome se dá a esse processo? Psicanálise? Não exatamente, mas um dos mais controvertidos e estranhos métodos terapêuticos da psiquiatria: a hipnose. O escritor Tobias Oates é um exímio hipnotizador. Ele e Jack Maggs têm, justos e contratados, o que se segue: o escritor, através de algumas sessões de hipnotismo, e pretextando curar o condenado de um fantasma que o assombra — um fantasma, diga-se, plantado na mente de Maggs pelo próprio Oates —, terá à sua disposição, em caráter estritamente privado, todo o acervo das histórias passadas de Jack Maggs, o condenado. Em seguida às sessões, Oates deverá cumprir sua parte no ajustamento, o que significa apresentar Maggs a um sujeito que poderá localizar o intocável Henry Phipps. Mas o que ele faz com Maggs é exatamente aquilo que não deveria ter feito: torna público o privado, através de sessões públicas de hipnotismo, e vai assim armazenando as histórias que, entrelaçadas, servirão de matéria-prima para seu novo romance, tendo Jack Maggs como protagonista. Violado o acordo, um novo acordo é então firmado: para o restabelecimento do equilíbrio, Maggs tem o direito de conhecer o mais terrível, o mais vergonhoso, o mais perigoso segredo de Tobias Oates. Que segredo é esse? O leitor sabe guardar um segredo? Também eu.

"Nota"

O GloboRio de Janeiro, 13 de abril de 2002.

9 de abril de 2002

A cabine, Juva Batella, Brava Gente (Rede Globo), entrevista para a UTV


O conto “A cabine” foi roteirizado por Rosane Lima para o episódio de estreia do programa “Brava Gente”, da Rede Globo, veiculado no dia 9 de abril de 2002, com Marília Pêra e Antônio Fagundes nos papéis principais. (Data da entrevista: não especificada.)

8 de abril de 2002

"A cabine" - Brava Gente, TV Globo



2002: o conto “A cabine” foi roteirizado por Rosane Lima para o episódio de estreia do programa “Brava Gente”, da TV Globo, veiculado no dia 9 de abril de 2002, com Marília Pêra e Antônio Fagundes nos papéis principais.

“A personificação do mal"

2002-04-08
NICOLATO, Roberto, “A personificação do mal — autor não quer ser confundido com personagens e enfatiza que não pretendeu atingir a Igreja”, Caderno G, Gazeta do Povo, 8 abr. 2002.

RN: “Ainda sobre o Diário do farol. Há críticas positivas sobre o livro, mas também aquelas que o consideram malconstruído, seja pela linguagem ou pelo caráter inverossímil da narrativa. Até que ponto prevalece o tom amadorístico e intencional do romance?”.

JUR: [Resposta em Sobre LITERATURA]

RN: “E sobre as críticas negativas?”.

JUR: “A maior parte eu não leio. Sou tão ‘puta velha’ nessa área que aprendi a não dar muita importância à crítica, seja positiva ou negativa. Na realidade, o julgamento principal é do público em geral ou dos pósteros, porque a crítica presente talvez não tenha ainda a perspectiva necessária para aquilatar bem o valor da obra. E o sucesso de público também não quer dizer que a obra tenha qualidade literária. Isso é uma coisa muito complicada”.

9 de março de 2002

“A noite escura da humanidade"

“A noite escura da humanidade — Depois de peregrinar por diversos campos de concentração, o prisioneiro A-7713, mais conhecido como Elie Wiesel, escreveu um relato perturbador”, Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 9 de março de 2002.

Resenha sobre o livro A noite, de Elie Wiesel.

Não bastam todos os livros já escritos sobre o Holocausto; não bastam todos os filmes, os muitos estudos, as inúmeras entrevistas. Reúnam-se todas as memórias, e mesmo assim não se terá a justa idéia do que foi aquilo. O tema, por certo, é o mesmo: o massacre desajuizado, insano e brutal de algo em torno de seis milhões de seres humanos entre, mais ou menos, 1942 e 1945. As experiências particulares também se assemelham: o abate, afinal, foi em massa, e a maior parte das histórias ocorreu em marchas suicidas pela Europa ou em meio às cercas eletrificadas de Auschwitz-Birkenau, Gleiwitz, Buchenwald, Dachau, Buna Mauthausen, Majdanek e outros — canteiros do inferno onde todas as vítimas, ordenadamente numeradas, comeram do mesmo pão, beberam da mesma sopa, gelaram na mesma neve e morreram das mesmas e bizarras maneiras, três ou quatro, no máximo, a depender da idade e da saúde do prisioneiro. Se cabem aqui os versos de António Ramos Rosa: “Tudo já foi dito / Tudo está por dizer / Tudo está por dizer / No que já foi dito”; se, acerca do Holocausto, tudo, afinal, já foi dito, que se diga, então, acerca do Holocausto, tudo de novo.

Holocausto vem do grego holókauston: “Sacrifício em que a vítima era queimada inteira”, dizem os dicionários. A vítima, ao longo da História, é quase sempre o estrangeiro, porque o estrangeiro representa, para o seu algoz, o inimigo. Nenhum povo foi mais estrangeiro que o judeu, dada a sua condição de desterrado e, por isso, errante. De holocaustos a História dos homens está cheia, é certo, mas o Holocausto judeu guarda uma especificidade: foi concebido, organizado e realizado segundo uma lógica rigorosa que tem o seu ápice na figura dos campos de concentração e extermínio. Quando a xenofobia e o racismo são levados às últimas consequências, e as últimas consequências representam, para o agressor, a consequência natural de um estado de coisas que precisa ser resolvido — qual seja, a manutenção da pureza de uma raça e a eliminação do impuro —, está feito — e imediatamente banalizado — o mal.

Muitos homens não conseguiram fazer outra coisa de suas vidas senão falar desse mal muitas vezes e de muitas maneiras, justamente para que, de algum modo, a vida que tiveram não a tenha mais ninguém. A História, no entanto, dá estranhas voltas e vem armando, em outros lugares e sob outros disfarces e discursos, o mesmo circo de estupidez, indignidade e intolerância em que se transformou a Europa durante a Segunda Grande Guerra. Falam por si os crimes de Slobodan Milosevic contra a humanidade, a humanidade massacrada durante a guerra da Bósnia, na Croácia e no Kosovo — crimes tão importantes quanto os julgados em Nuremberg, semelhantes não no número de vítimas ou na metodologia empregada, mas na natureza da barbárie.

Um desses homens — homens que não conseguiram ficar calados diante da necessidade de se apontar o mal com o dedo — foi o prisioneiro de nº 174.517, o escritor e químico italiano Primo Levi (1919-1987), que, em 1943, então com 24 anos, é capturado pela milícia fascista e vai parar em Auschwitz. Além de um aflitivo e belo testemunho, seu livro É isto um homem? configura a tentativa — vã — de decifrar toda a desrazão daqueles anos. O episódio em que Levi, já como um prisioneiro, teve de ser interrogado por um jovem médico alemão, o dr. Pannwitz, em seu desinfetado e reluzente escritório, compõe um dos momentos dessa tentativa. Estão os dois sentados frente a frente, e o alemão olha enfim para o judeu, o carrasco para a vítima, o médico para o químico, um homem para outro homem: “... a natureza desse olhar, trocado como através do vidro de um aquário entre dois seres que habitam dois meios diferentes, conseguiria explicar a essência da grande loucura do Terceiro Reich”, escreve Levi, que então transforma nas seguintes palavras o olhar do médico: “Esse algo que está na minha frente pertence a um gênero que, obviamente, convém eliminar. Nesse caso específico, deve-se, antes, examinar se ele não contém ainda algum elemento aproveitável” — e também o seu próprio olhar para o alemão que tinha diante de si: “Os olhos azuis e o cabelo loiro são, essencialmente, maus. Nenhuma possibilidade de comunicação”. Levi passou o resto de sua vida a escrever sobre o assunto. Aos 68 anos, não agüentou mais e morreu, com os próprios pés, atirando-se, ao que tudo indica, do alto da escada do prédio onde morava.

Outro que também dedicou todos os anos de sua vida a tentar purgar um único e mais que suficiente ano transcorrido em peregrinação por vários campos de concentração e extermínio foi o prisioneiro de nº A-7713, conhecido como Elie Wiesel — certamente o homem que mais gritou, escreveu e agiu tendo por motor a luta contra o anti-semitismo e, principalmente, contra todos os discursos e interpretações históricas que tendem a minimizar a tragicidade do Holocausto e de suas sequelas não só sobre as subsequentes gerações de judeus como sobre a humanidade inteira. Wiesel tornou-se cidadão americano em 1963; foi nomeado, em 78, presidente do United States Holocaust Memorial Council; escreveu mais de dez livros e recebeu, em 86, o prêmio Nobel da Paz. Um deles, A noite (La nuit), publicado pela primeira vez em 1958 (Les Éditions de Minuit), sai no Brasil, pela Ediouro, com algum atraso, a tradução de Irene Ernest Dias, o afetado prefácio de François Mauriac, prêmio Nobel de Literatura, e um imperdoável erro nos cabeçalhos internos das páginas. A edição portuguesa, com o título Noite, saiu pela Texto Editora, com tradução de Paula Almeida. Nada disso, no entanto, importa. A noite é um livro de memórias que há muito deixou de ser comovente e impressionante, para se tornar necessário — necessário para que se continue a falar de todos aqueles anos de lixo nazi-fascista.

No ano de 1941, Elie Wiesel era ainda um menino religioso e temente a Deus. Durante o dia estudava o Talmude e à noite rezava e chorava de devoção na sinagoga de sua cidade natal, a minúscula Sighet, na Transilvânia, hoje parte da Romênia. Um dia o velho e sábio mendigo da cidade, o bom Mochê Bedel, lhe faz duas perguntas: “Por que você chora quando reza?” e, em seguida: “Por que você reza?” O pequeno Elie perturbou-se e não respondeu. “A partir daquele dia, encontrei-o com frequência”, escreve Wiesel. “Ele me explicava com muita insistência que cada pergunta possuía uma força que a resposta já deixara de ter.”

O mesmo Mochê Bedel, tido como judeu estrangeiro, acabou preso por guardas húngaros, amontoado num vagão de gado e expulso de Sighet. Permaneceu ausente por meses. Quando afinal retornou, fugido da Gestapo, contou sua história: foram obrigados a descer do trem em território polonês e a cavar grandes valas, à beira das quais deveriam, nucas à mostra, posicionar-se para receber o tiro misericordioso. Bebês eram lançados ao alto e faziam as vezes de alvos para as pistolas alemãs. Bedel salvou-se por milagre. Era esta a sua história. Ninguém em Sighet acreditou naquilo, nem mesmo o pequeno Elie, que se perguntava a si mesmo: “Ele [Hitler] aniquilaria um povo inteiro? Exterminaria uma população dispersa por tantos países? Tantos milhões de pessoas! Com que meios? Em pleno século XX!”. E Bedel, olhando-o em silencioso desespero, resolveu calar-se. Bem mais tarde, já em Auschwitz, Wiesel ouviria de um judeu moribundo a seguinte confissão: “Confio em Hitler mais que em qualquer outra pessoa. É o único que manteve suas promessas, todas as suas promessas, ao povo judeu”.

O tempo passa. Em 1944, chegam à cidadezinha algumas péssimas notícias: a tomada do poder pelo partido fascista e a entrada consentida de tropas alemãs em território húngaro. Em seguida às notícias, os alemães. Os judeus de Sighet, cheios de boa fé, receberam em suas casas soldados e oficiais e tiveram deles uma boa impressão: “Um oficial alemão morava no prédio em frente a nossa casa. Estava ocupando um quarto na casa dos Kahn. Diziam que era um homem encantador: calmo, simpático e educado. Três dias depois de instalado, trouxera uma caixa de chocolate para a senhora Kahn”. O clima na cidade, no entanto, foi escurecendo. Instaurou-se o toque de recolher, formaram-se dois guetos, lacraram-se as janelas e ficaram os judeus trancafiados em blocos. Alguns dias depois, os notáveis da comunidade, entre eles o pai de Elie, compareceram diante dos oficiais e saíram de lá com a notícia final, uma palavrinha de nada, e tanto estrago: deportação. A cidade foi esvaziada, e as famílias, socadas em vagões de gado rumo a um destino completamente ignorado, estavam atônitas: os judeus de Sighet não haviam sido avisados; ainda não tinham ouvido falar em campos de concentração, em crematórios, chaminés e câmaras de gás. “Eu os avisei...”, disse o mendigo Mochê Bedel à porta da casa dos Wiesel, pouco antes de fugir para sempre.

O pequeno Elie desembarca com a família em Birkenau, separa-se para sempre da mãe e das irmãs, consegue permanecer ao lado do pai, perde o nome e torna-se o preso nº A-7713. No mesmo dia da chegada, diante de um caminhão abarrotado de bebês amontoados e vivos, prontos para a queima, Elie Wiesel, com algo em torno de quinze anos, perde finalmente sua já fissurada fé e desata a acusá-Lo: “... por que eu O bendiria? (...) Porque Ele tinha feito queimar milhares de crianças naquelas valas? Porque Ele fazia funcionar seis crematórios dia e noite, nos dias de Sabá e nos dias de festa?”.

Desse ponto em diante, sua vida no campo, sempre ao lado de seu pai, seria igual às vidas de todos os que ali estavam, dia-a-dia esperando a noite, mês a mês esperando a morte. Estiveram pai e filho em Birkenau, Auschwitz, Buna, Gleiwitz e Buchenwald, e nessas filiais do inferno viram tudo o que pode ser visto de mais sórdido e, como o lado de lá de uma mesma moeda, de mais belo na natureza humana. Não há neste livro de memórias, contudo, digressões filosóficas ou literárias propriamente ditas. Há apenas o relato, curto e seco, de um corpo em um campo de concentração: “Eu era um corpo. Talvez menos ainda: um estômago faminto. Só o estômago sentia o tempo passar”.

Não se está aqui, portanto, a discutir literatura, mas um discurso de denúncia — uma pequena grande verdade que teve de ganhar a forma de livro para poder permanecer dentro do tempo; um homem a dizer a outros: olhem aqui, eu vivi isto e precisei escrever para poder aguentar o tranco. Àqueles que consideram esse assunto já esgotado e, mais ainda, explorado o suficiente, sugiro os versos de António Ramos Rosa e essa pequena hipótese: e se cada sobrevivente de um campo de concentração tivesse feito o mesmo: escrito o seu testemunho? Seriam desconsiderados por serem muitos? Admitindo-se a verdade individual de cada um desses hipotéticos relatos, inseridos no relato maior que foi a Segunda Guerra, como então descartar um único relato que seja? E como justificar a decisão? Por não ser “literário” o bastante? Por ser um testemunho raivoso e incorformado? Por ser piegas e sentimentalóide? Por ser autocomiserativo? Por ser mais uma pequena contribuição para o que vem sendo chamado de “a Indústria do Holocausto”? — nome do polêmico livro do historiador Norman Finkelstein, para quem, em resumidas linhas, o Holocausto se tornou uma indústria bastante eficiente e explorada à larga pela elite judaica americana, com um olho na questão árabe e na possibilidade de extorquir dinheiro de empresas alemãs e outro olho nas supostas e gordas contas bancárias das vítimas do massacre. Não. Nenhum relato poderia ser desconsiderado, e com cada um deles teríamos de conviver, porque todos, em sua verdade básica, têm o mesmo direito de se constituírem como memória coletiva e todos flutuam, legítimos, à mesma margem da História.

Todos, não obstante, poderiam e deveriam ser criticados e analisados a partir de sua maior ou menor capacidade de compreensão da natureza humana. Em outras palavras: sua medida da tolerância diante do perigo da intolerância desmedida. Se o ódio é necessário e às vezes inevitável, porque ele é, afinal, humano e, no caso de judeus e alemães, circulou à farta e reciprocamente, que ele tenha, então, o seu alvo individualmente determinado. O ódio cego, o ódio inespecífico dirigido às coletividades sem rosto ou às chamadas “raças”, sejam elas de que cor forem, é uma das piores facetas do preconceito e constituiu uma das motivações centrais para a campanha ariana, que, em sua sandice, dividiu a humanidade em dois grupos: um puro, descendente dos árias, os mais antigos antepassados da família indo-européia, e um impuro, não-ariano, de ascendência judaica, sem falar nos sub-grupos de negros, ciganos, amarelos e homossexuais. Tanto o prisioneiro de nº A-7713 quanto o de nº 174.517, batizados Eliezer Wiesel e Primo Levi, ambos detidos em Auschwitz no ano de 1944 e prováveis vizinhos nas filas do refeitório ou do dormitório, não caíram, em seus lúcidos relatos, no erro tentador da intolerância e do ódio coletivo. “A ação humana só pode ser julgada individualmente, caso a caso”, escreve Primo Levi, para quem os alemães como grupo, tão distantes, tão altivos, tão intocáveis, acabaram por se tornar, à sua maneira, inodiáveis.

Em janeiro de 1945, o pai de Elie Wiesel morre de completa inanição em Buchenwald. O relato de A noite pára neste episódio. Em abril do mesmo ano, Elie Wiesel volta a ser um homem livre e, como um homem livre, sai com as próprias pernas do inferno, abandonando o campo. Três anos depois está em Paris, a trabalhar como jornalista e a estudar literatura, filosofia e psicologia na Sorbonne. Em 1954, dá-se conta de que o campo de extermínio não o abandonara. Começa, então, estimulado por Mauriac, a escrever sobre o Holocausto. A partir daí não conseguiu fazer outra coisa de sua vida senão falar desse mal — muitas vezes e de muitas maneiras.

Trecho:

“Um dia em que voltávamos do trabalho, vimos três forcas erguidas na praça da chamada (...). Chamada. S.S. nos cercando, metralhadoras apontadas: a cerimônia tradicional. Três condenados acorrentados — e, entre eles, o pequeno pipel, o anjo de olhos tristes.

Os S.S. pareciam mais preocupados, mais inquietos do que de costume. Enforcar uma criança diante de milhares de espectadores não era uma coisa qualquer. O chefe do campo leu a sentença. Todos os olhos estavam pregados no menino. Ele estava lívido, quase calmo, mordendo os lábios. (...)

Os três condenados subiram em suas cadeiras. Os três pescoços foram introduzidos nos nós corrediços ao mesmo tempo.

— Viva a liberdade! gritaram os dois adultos.

O pequeno, calado.

— Onde está o bom Deus, onde ele está? alguém perguntou atrás de mim.

A um sinal do chefe do campo, as três cadeiras foram derrubadas.

Silêncio absoluto em todo o campo. No horizonte, o sol estava se pondo.

(...) Quanto a nós, estávamos chorando. (...)

E começou o desfile. Os dois adultos não viviam mais. (...) Mas a terceira corda não estava imóvel: tão leve, o menino ainda vivia...

Por mais de meia hora ele ficou assim, lutando entre a vida e a morte, agonizando sob nossos olhos. E tínhamos que olhá-lo bem de frente. Ainda estava vivo quando eu passei diante dele. Sua língua ainda estava vermelha; seus olhos, ainda não apagados.

Atrás de mim, ouvi o mesmo homem perguntar:

— E então, onde está Deus?

E senti em mim uma voz que lhe respondia:

— Onde ele está? Ei-lo — está aqui nesta forca.” (p. 90-91, edição brasileira)