“Um tiro certeiro na cultura americana — Horace McCoy ronda a
violência no mundo do espetáculo”, Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 13 de julho de 2002.
Resenha sobre o livro
Mortalha não tem bolso, de Horace McCoy, ed. Sá Editora.
Se estamos hoje a falar de Horace McCoy (1897-1955) é porque num belo dia de 1935 ele publicou seu mais brilhante e violento romance. They shoot horses, don’t they? é uma pergunta, um título e um dedo apontado para a sociedade do espetáculo em que se foi transformando a sociedade americana, para utilizarmos a exata expressão de Guy Debord, cunhada bem mais tarde, em 1967, mas perfeitamente aplicável tanto para a década de trinta nos Estados Unidos, em plena Depressão Americana, quanto para a Europa pós-68 e toda a sociedade do entretenimento globalista em que nos convertemos. They shoot horses, don’t they? tornou-se imediatamente um clássico cult, uma obra existencialista — “a primeira norte-americana”, segundo sugestão do casal Sartre, perito no assunto — e um filme aclamadíssimo, dirigido por Sidney Pollock, protagonizado por Jane Fonda e Michael Sarrazin e intitulado, aqui no Brasil, A noite dos desesperados. O livro foi publicado pela primeira vez no Brasil em 1947, na tradução de Erico Verissimo, e pela segunda vez em 2000, pela Sá Editora, em novo texto do jornalista e escritor Renato Pompeu.
Se quisermos representar o universo ficcional de Horace McCoy: a sociedade do entretenimento em sua face mais sórdida, podemos lançar mão dessa justíssima e desumana fábula de Sylvio Massa de Campos: “Por engano, trocaram as facas. O mágico engolidor de facas, procurando os aplausos, enfiou-a com ímpeto na própria garganta. Espantado, os seus olhos piscavam de dor, medo e horror. Bem abaixo do peito, um forte jato de sangue começou a colorir o picadeiro. O público aplaudia delirantemente a mágica”. Se, em A noite dos desesperados, o centro dramático eram as sangüíneas competições de dança em que os casais inscritos deveriam bailar até a exaustão, em troca de pão, trocadinhos e alguns poucos quinze minutos de fama, neste outro romance de McCoy, o caso é outro, porém o mesmo.
A história de Mortalha não tem bolso, tradução de No pockets in a Shroud — provavelmente um equivalente inglês para a máxima “Deste mundo nada se leva” —, tem como centro dramático o jornalismo e a tênue marca divisória entre imprensa livre e imprensa sensacionalista. Passa-se numa cidadezinha americana típica e apresenta o jovem herói Michael Dolan, um repórter que não tem medo de nada: não tem medo do poder, não tem medo do dinheiro, não tem medo de seus patrões e adora dizer a verdade. Um dia, é claro, foi despedido. Em seguida, resolve matar-se: funda, com os fundos que não tem, a sua própria revista semanal independente — a Cosmopolite — e desanda a denunciar todo o tipo de autoritarismo, desmando e abuso de poder que é capaz de apurar nos limites da cidadezinha onde mora: os crimes de colarinho branco, a prática ilegal da medicina e as associações fascistas clandestinas comandadas pelos chefes de família da região, a defender a moral, a tradição e os bons costumes, somente encontráveis no “macho adulto branco sempre no comando” — a única “raça” com direito garantido de ir e vir. Dolan — sedutor, famoso entre as mulheres, infantil, ingênuo, idealista e arrebatado — consegue algum dinheiro, consegue manter a sua Cosmopolite de pé durante duas ou três semanas, consegue deixar explícito o chamado “rabo preso” dos demais jornais, consegue destacar-se entre seus pares, consegue denunciar metade da cidade e consegue, ao final, levar uma boa surra e um tiro na cabeça.
Mortalha não tem bolso pode ser considerado um pedaço da história do próprio Horace McCoy. À semelhança de algumas características de seu destemido personagem Mike Dolan, McCoy também serviu à sua pátria por um e meio, durante a Primeira Guerra, e foi, além de escritor e roteirista de cinema, repórter, jornalista, fundador do Teatro de Bolso de Dallas — e ainda caixeiro-viajante, guarda-costas de político e leão-de-chácara. Escreveu Mortalha não tem bolso em 1937, e não mediu palavras. O texto — jornalístico, informal, desbocado e entupido de diálogos — revela-se uma espécie de placa de Atenção, perigo!, a apontar o dedo para Hitler, para Mussolini e para todo o lixo ideológico em que se meteu a Europa.
Horace McCoy, na pele de Mike Dolan, seu alter ego e super-herói da história, tem a coragem e o desprendimento suficientes para escrever com força e convicção acerca dos mais graves problemas norte-americanos. Vá lá. Prova-o o lema da revista de Dolan, a bombástica Cosmopolite, que assim clama: “A Verdade, toda a Verdade e nada mais do que a Verdade”. Há em tudo isso, no entanto, um senão óbvio e perigoso. O problema de se lutar por uma Verdade com maiúsculas é acreditar que se pode encontrá-La e Dela tomar posse. Todo o autoritarismo ao qual nos opúnhamos se transforma então no autoritarismo do qual passamos a nos valer — e em nome Dela.