Acordos Ortográficos de ontem e de hoje:
fonétikos versus etymologicos
— ou a questão das consoantes caladas
Estamos acordados? Sim, estamos acordados no sentido de
que fizemos um acordo e portanto todos os oito países da CPLP — Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa — deverão aplicar o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa. Estamos acordados? Talvez não. O acordo aprovado talvez não seja
tão benéfico, especialmente para Portugal e os demais países da CPLP que têm as
características fonéticas do português europeu.
O assunto do acordo ortográfico invadiu a minha
imaginação lá pelos idos de 1992-93, quando a discussão no Brasil estava quente
em função do que se tinha acordado e assinado em 1990. Nessa época tive a ideia
de escrever um livro com um mote animista e com um pano de fundo ligado ao chamado
Projecto de Unificação Ortográfica para a Língua Portuguesa. E publiquei então
o meu primeiro romance, O verso da língua,
onde discuto, em meio às dobras de uma história fantástico-animista, a boa e a
má ideia de realizarmos mais um acordo ortográfico. O meu ponto de vista, até
então, era o de um jovem brasileiro, e isto tanto é verdade que por todo o
romance a questão está focalizada nas vantagens e nas desvantagens, para o
Brasil, de um acordo ortográfico. Não pensava em Angola, Cabo Verde, Guiné
Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique e São Tomé e Príncipe (os PALOP: Países
Africanos de Língua Oficial Portuguesa), e nem em Portugal e Timor Leste (que,
junto com os de cima e mais o Brasil, e retirando-se a Guiné Equatorial, formam
a CPLP). Pensava no Brasil, e a minha relação com o tema acabava aí. Dei uma
meia dúzia de amadoras entrevistas à época do lançamento do livro e esqueci o
assunto, e quase todo o mundo esqueceu o assunto, e por um bom tempo, em
relação ao que se debateu em 1986 e se assinou em 1990, não houve, no Brasil,
nenhum fato novo; e nenhum facto novo
também em Portugal.
Não me lembro exactamente, à época em que publiquei O verso da língua, se eu era a favor ou contra o acordo. Era, provavelmente, contra. Hoje, no entanto, esta
polaridade, a meu ver, não faz tanto sentido. Não consigo ser veementemente
contra e nem veementemente a favor. Não acredito que uma pessoa possa
posicionar-se simplesmente a favor ou
contra um acordo ortográfico. Um
acordo ortográfico não é um tema que exija uma posição ideológica estanque, da
mesma maneira como o são, por exemplo, a pena de morte e o aborto, em relação
aos quais uma pessoa, em geral, se posiciona a favor ou contra, sendo bastante
difícil sustentar, aqui nestes casos, uma posição relativa. E por que, quanto a
um acordo ortográfico, o insustentável é justamente a posição absoluta? Porque
um acordo ortográfico não é um tema que se deva repudiar ou aceitar em bloco; é
um tema que se deve discutir e negociar, ponto a ponto — sem falar que um
acordo ortográfico não tem o mesmo grau de conseqüência (por que é que eu
insisto em usar o trema?) prática e filosófica que têm os temas da pena de
morte e do aborto — embora tenha, isso sim, consequência pedagógica e económica
(fica estranho sem o trema, mas a pessoa se acostuma a tudo nesta vida...). Em
outras palavras, um acordo ortográfico é um tema bem menos importante, é um
tema que passa ao largo, ou deveria passar ao largo, de qualquer ideologia.
Trata-se de um tema técnico.
Um acordo ortográfico significa sempre uma reforma ortográfica, pelo menos para um
dos lados acordados (embora a inversa não seja verdadeira), e uma postura
ideologicamente contrária à ideia de reforma ortográfica teria necessariamente
de ler com bons olhos a hipótese de a nossa língua não ter sofrido, na sua
história, vários processos de simplificação ortográfica. E como era a nossa
língua portuguesa nos seus primórdios, que muitos autores apontam como sendo o
século XII — época em que a língua portuguesa era bebé? Era mais fonética do
que etimológica, ou seja, os estudos produzidos valorizavam, em suas tentativas
ortográficas, justamente a fonética em detrimento da etimologia.
Pudera! Ainda não havia uma ortografia consolidada…
Escrevia-se ao deus-dará, da maneira que soasse melhor, e o importante era ter
bom ouvido, e competente era o escriba que conseguisse passar para um nível
ortográfico um sistema fonético por sua vez ainda incipiente. Era a ortografia
de base fonética, de acordo com a qual uma letra não pronunciada não deveria
ser grafada. Era o tempo dos homens sem “H” maiúsculo e nem minúsculo... E esse
tempo passa. Do século XII ao XVI cresce a preocupação com a arte de se
escrever correctamente; as línguas românicas, a partir do século XV, em
decorrência de eventos históricos os mais variados, aumentam a sua influência
sobre os falares; os fonemas do latim se modificam; novos fonemas surgem e
inúmeras gramáticas ortográficas começam a ser produzidas porque começam a ser
necessárias. Entre elas citam-se a obra de Fernão de Oliveira, Grammatica da Lingoagem Portugueza, de
1536; e a Grammatica da Lingua Portuguesa,
de João de Barros, de 1540.
E depois? Se tomarmos como base o período do preciosismo
barroco, com a necessidade do português de fazer frente ao castelhano, e ainda
o período do Renascimento, o mesmo Renascimento que redescobriu a antiguidade
clássica e que releu e revalorizou os gregos e os latinos, encontraremos uma
língua portuguesa cuja grafia estava agora, ao contrário, mais etimológica do
que fonética, como se as palavras tivessem de carregar às costas uma mochila abarrotada
de informação genética. Por quê? Veremos que a ortografia também quis participar
da festa renascentista, redecorando as palavras, vestindo as palavras com
penduricalhos e adereços gregos e latinos. E o que se observou no fim da festa
foi um ortografia toda ela voltada para o carácter histórico da palavra, a
chamada ortografia etimológica, ou seja, a manutenção, e por vezes a
incorporação, de partículas do grego e principalmente do latim, considerado
então um modelo de perfeição linguística. Tais figuras nós conhecemos de “ouvir
ler” por aí: os conjuntos ph, ch, th
e rh, como em pharmacia, que é a mais famosa, e ainda lythografia, philosophia,
ethnologia, theatro, archaico; as
consoantes duplas, como em fallar
(verbo) e elle (pronome); as letras
não pronunciadas, como em esculptura,
astma, character; a inclusão do y,
como em crystallino, lyceo, typoia, lyrio — e muitas outras grafias que surgem, hoje, aos nossos olhos,
como artigos de museu, para não dizer bizarrices ortográficas. Na festa
renascentista só não entrou a fonética. Esta fase é chamada pelo Antônio
Houaiss de “pseudo-etimológica” e, segundo ele, vai até 1904 (A nova ortografia da língua portuguesa,
São Paulo, Ática, 1991, p. 11). Vejam-se, como belos exemplos, estes lamentos
etimológicos:
“Na palavra lagryma,
(...) a forma do y é lacrymal;
estabelece a harmonia entre a sua expressão gráfica ou plástica e a sua
expressão psicológica; substituir-lhe o y
pelo i é ofender as regras da
Estética.
(...)
Na palavra abysmo,
é a forma do y que lhe dá
profundidade, escuridão, mistério... Escrevê-la com i latino é fechar a boca do abysmo,
é transformá-lo numa superfície banal.
(...)
A palavra Phantasma,
por exemplo, escrita com F perde todo
o seu aspecto espectral e misterioso; Theologia,
escrita só com T, perde o seu sinal
de transcendência divina. (Teixeira de PASCOAES, A Águia, citado por Francisco Álvaro GOMES, O acordo ortográfico, Porto, Porto Editora e Edições Lúmen, 2008, p.
10 e 98).”
Estes dois momentos históricos, o fonético e o
etimológico, acontecidos sucessivamente mas também simultaneamente, foram
vividos pelos falantes da língua sem a formalização de nenhuma reforma
ortográfica. Mas não faltaram tentativas. Em 1666, um sujeito chamado Bento
Pereira publicou o seu Regras geraes,
breves e comprehensivas da melhor ortografia, com que se podem evitar erros no
escrever da língua latina e portugueza. Em 1734, publicou-se, de autoria de
João Morais de Madureira Feijó, uma obra considerada modelar: a Orthographia ou Arte de escrever e
pronunciar com acerto a Lingua Portugueza para uso do excellentissimo Duque de
Lafoens. Em 1766 foi a vez do Fr. Bernardo de Jesus Maria, com a sua Grammatica philosophica e orthographia
racional da língua portugueza. Estas duas artes de “escrever e pronunciar
com acerto” virão a ser desenvolvidas com detalhes em 1822, na Grammatica Philosophica de Jerónimo
Soares Barbosa, que assim as define: “D'estas duas considerações sobre o
physico dos vocabulos nasceram as duas partes mais antigas da Grammatica. Uma
de boa pronunciação e leitura, chamada Orthoepia, e outra da sua boa
escriptura, chamada Orthographia” (p. V e VII, citado, bem como grande parte dos
títulos aqui referidos, por Maria Helena Mira MATEUS, Sobre a natureza fonológica da ortografia portuguesa, p. 3 e 4, em:
).
Repare-se na dupla ortografia da própria palavra “ortografia” no título de 1666
e nos de 1734 e 1766, e já se poderá ter uma ideia das querelas e confusões em
cena.
Nada comparado, no entanto, à grande querela que teria
lugar no século XIX e que voltaria a dividir o mundo ortográfico entre
etimológicos e fonéticos, só que desta vez com ambos os lados a cobiçar os
louros da oficialidade. Segundo a visão etimológica, a divisão era entre
sensatos e vândalos; no modo de ver dos fonéticos, entre conservadores caturros
e cientistas inovadores e bem formados. A disputa pode ser ilustrada com as
famosas rixas entre Cândido de Figueiredo e José Leite de Vasconcellos, como
nos conta, e muito bem, Maria Helena Mira Mateus:
“Cândido de Figueiredo, em 1891, refere a Tosquia de um grammatico dedicada aos
filologos mirandezes, aos criticos extremenhos e aos boticarios de Palmella,
a que responde Leite de Vasconcellos, no mesmo ano, com O Gralho depenado. Replica às “Caturrices” philologicas do sr. Candido
de Figueiredo, que, por sua vez, triplica no ano seguinte com O golpe de misericordia. Execução litteraria
de Zé Filólogo Leite de Vasconcellos, accusado de varios delitos contra a
grammatica, o bom senso e a salubridade publica. (...)
Mas o que se discutia então? Os mais conservadores (como
o ‘caturra’ Cândido de Figueiredo, que luta pelo bom uso) são acusados de
“subserviência aos clássicos, censura de barbarismos e preferência do
literatismo em prejuízo da ciência” enquanto os filólogos (como o ‘Zé Filólogo’
Leite de Vasconcellos) são acusados de “delitos contra a gramática, o bom senso
e a salubridade pública” (op. cit., p. 5).”
Se a posição dos etimológicos soa, nos seus extremos,
pomposa, a dos fonéticos pode tornar-se uma caricatura — a caricatura de uma língua
quase que totalmente fonética, ou, para usarmos uma expressão que beira o
absurdo, uma “ortografia fonética”. E temos de ficar aliviados diante do fato
de que as propostas mais radicais não vingaram. Em 1853, J. A. de Sousa publica
Escritura repentina. Nova tentativa de
revolução orthographica. Em 1866, Francisco Xavier Calheiros divulga o seu Escripta sem letras ou novo systema
d'escripta syllabica. Isto sem falar nos vários livros de Barbosa Leão, que
publica anonimamente, em 1875, as suas Consideraçõis
sobre a Ortografia Portugueza, onde defende o sistema “um som uma grafia”.
Todos estes títulos foram elencados por Maria Helena Mira Mateus (op. cit.),
que ainda nos dá de presente um delicioso caso que ela mesma retirou do
elegante blogue O céu sobre Lisboa [http://o-ceu-sobre-lisboa.blogspot.com/2004/08/demanda-da-ortografia-portu-guesa-que.html.]
O caso é o seguinte pedaço de uma estrofe de Camões...
“Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram”
... sob o que seria a visão fonética de Piero Gato, que
publica no Brasil, em 1920, a sua Ortografia
fonetica da lingua luzo-brasileira, segundo a qual a referida estrofe
poderia ser assim escrita:
“Cecem do çabiu gregu e do troianu
As navegaçõis grandes kê fizeram,
Kale-ce de Alexandru i de Trajanu
A fama das vitorias kê tiveram”
Nada disso deu certo. Grafia e som são os extremos da
corda linguística. Podem ser equilibrados, mas não podem ser confundidos, já
que a primeira tende à permanência; e o segundo, à variação. Como escreveu um sr.
chamado Óscar Lopes, citado pela Maria Helena Mira Mateus,
“... não é possível uma grafia puramente sónica, nem
mesmo restrita a um registo muito selecto, o que equivaleria a um
espectrograma; e não é possível uma grafia etimológica integrativa de toda a
tradição cultural (as escritas europeias mais tradicionais, as do Francês e do
Inglês, baseiam-se nas respectivas fases de normativização, nos séculos XV-XVI).
(Óscar LOPES, in Ivo CASTRO, Inês DUARTE e Isabel LEIRIA, A Demanda da Ortografia Portuguesa: Comentários do Acordo Ortográfico
de 1986 e subsídios para a compreensão da Questão que se lhe seguiu, Lisboa,
Edições João Sá da Costa, 1987, citado por Maria Helena Mira MATEUS, op. cit.,
p. 7-8).”
Terminada a fase pseudo-etimológica, começam os
gabinetes, no século XX, a funcionar a pleno vapor e a produzir tentativas de
uniformização e pacificação da velha querela entre a fonética, a etimologia e a
esquizofrenia ortográfica. Começa a chamada “fase simplificada” da língua. Começa
em 1904, em Portugal, com o trabalho infatigável de Gonçalves Viana no seu
importante livro Ortografia Nacional:
Simplificação e Unificação Sistemática das Ortografias Portuguesas. E foi
tão importante e bem feito que significou a pedra de toque para a reforma
ortográfica que, sete anos depois, mudaria de forma radical a cara do português.
E o que fez o Gonçalves Viana? Deitou abaixo os penduricalhos gregos ch (que soava como k), th, ph, rh
e y. Deitou abaixo as consoantes
duplas, à excepção do rr e do ss. Deitou abaixo as chamadas
“consoantes mudas”, mas deitou abaixo somente as efectivamente mudas, ou seja, as que não alteravam a pronúncia da
vogal antecedente, como sancto e septe, por exemplo. E,
por fim, como se isso tudo não bastasse, o sr. Gonçalves Viana ainda colocou
ordem no caos que era a acentuação gráfica.
No Brasil, entretanto, os processos de simplificação
correram num ritmo diferente e à custa de muitos desencontros com o português
europeu. Em 1907 a Academia Brasileira de Letras já estava empenhada em
reformar a ortografia, e encabeçava o movimento a figura de Medeiros e
Albuquerque, mas somente em 1915 é que decide harmonizar-se com o que já
ocorria em Portugal. O passo, porém, não foi dado, e a Academia Brasileira, em
1919, muda de ideia e volta atrás. Em 1924, as duas Academias — de Ciências de
Lisboa e Brasileira de Letras — sentam-se novamente à mesa para uma nova
tentativa de jogar “Palavras Cruzadas”, desta vez sem brigas... E em 1931
finalmente aprovam um Acordo Ortográfico
— mas ninguém o põe em prática. Ao invés disso, em 1943, os senhores doutores
de lá e cá redigem um Formulário
Ortográfico na primeira “Convenção Ortográfica entre Brasil e Portugal”.
Isto foi um passo para o que viria a seguir, que foi o bastante elogiado Acordo Ortográfico de 1945, que se
tornou lei em Portugal mas... não foi aceito pelo governo brasileiro, que
continuou a escrever os seus papéis baseado no Formulário Ortográfico de 1943. E o descompasso continuou, com
Portugal, na verdade, bem mais “reformador” do que o Brasil, uma vez que já
estava na sua segunda mudança: a Reforma
de 1911, bem mais radical; e o Acordo
de 1945, aplicado unilateralmente. Em 1971 é a vez do Brasil, que realiza
pequenas mudanças; e, em 1973, Portugal. Cada um a fazer as suas alterações, e
todas, pelo menos, caminhando no sentido da diminuição das diferenças e da
simplificação ortográfica. Em 1975, sentam-se os estudiosos à mesa para um novo
acordo, que elaboram, mas os governos não aprovam. E somente onze anos depois,
por iniciativa do presidente brasileiro José Sarney, os então sete países que
falam português voltam a reunir-se, e apresentam o Memorando Sobre o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Em 1990
é a vez da Academia de Ciências de Lisboa, que convoca novo encontro, e
elabora, junto com o Brasil, a base do Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa. Era para entrar em vigor em 94, mas o
assunto perdeu o vigor por causa de mais idas e vindas, e em 1996 o documento é
ratificado apenas por Portugal, Brasil e Cabo Verde, e isso não era suficiente
para a sua efectivação. Oito anos depois reúnem-se os ministro da Educação da
CPLP, em Fortaleza, para a inclusão de Timor-Leste e ainda para a alteração no
número mínimo de assinaturas, de modo a que uma ratificação de três membros
fosse o bastante. (O português Vasco Graça Moura, em seu livro Acordo Ortográfico: a perspectiva do
desastre, Lisboa: Alêtheia Editores, 2008, tece importantes considerações
sobre a inconstitucionalidade, do ponto de vista do Direito português, deste
Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo.) Em 2008, o tão debatido e folheado Acordo Ortográfico de 1990 é finalmente
aprovado, com as assinaturas, afinal, de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe,
Brasil e Portugal (informações retiradas do site:
).
O assunto, agora, é lei — e é mais real e quotidiano no
Brasil do que em Portugal, porque os portugueses agora é que começaram a
digestão de um assunto que os brasileiros estão terminando de digerir, e acho
até que o fizeram com surpreendente velocidade. O quinhão de cada um, é bem
verdade, foi diferente. Com o Acordo Ortográfico de 1990 aprovado, o Brasil
terá, segundo o que li, aproximadamente 0,5% das suas palavras alteradas, ao
passo que os portugueses terão de reaprender a escrever 1,5%. Não, isto não é
muito, e eu aqui faço parelha com o que diz ironicamente o Vasco Graça Moura,
um infatigável opositor disto que ele chama de “grande trapalhada”: o absurdo é
pensarmos que a alteração ortográfica deste bocadinho é que vai “assegurar a
unidade da língua”, como argumentam os defensores do acordo. “Se as alterações
que introduz são muitas, é gravíssimo; se são mínimas, não se vislumbra a sua
utilidade”, escreveu (“O Acordo e as evidências”, op. cit., p. 30). O que
importa, na verdade, não é a forma das palavras do ponto de vista estético. O
que importa são as consequências do Acordo na maneira de se pronunciarem as
palavras. E neste quesito os portugueses é que levaram a pior.
De todos os textos que li sobre o assunto, aqui em
Portugal, o Breve parecer sobre a entrada
em vigor do Acordo Ortográfico de 1990, de João Andrade Peres, foi dos que
mais me motivou e me convenceu. E após a sua leitura senti vontade então de
escrever eu mesmo estas linhas sobre o assunto. O texto de Andrade Peres não é
uma investida deblaterada contra as bases do Acordo de 1990. Antes, pelo
contrário, o autor mostra-se sempre simpático à intenção simplificadora que
está por trás de toda ideia de reforma ortográfica — reforma ortográfica
efectivamente bem feita.
Não tenho nada a opor a reformas ortográficas que visem a
simplicidade, a clareza e o carácter sistémico da escrita. Pessoalmente,
abomino ler em ortografia anterior à reforma de 1911, (…). Fico sempre grato à
lei da República que livrou a língua portuguesa do que hoje sinto como ganga
pesada e inútil, resultante da etimologia — em certos casos penalizada por
opções de transliteração do grego, via latim, que davam conta de subtis
variações do consonantismo grego que nem o latim nem a romanidade importaram —
e ainda do carácter assistemático da grafia portuguesa até ao século XX. Sem a
mudança, talvez convivesse bem com o que agora me repugna, mas, educado depois
dela, só posso achar a nova escrita mais simples (mais “limpa” e “leve”, por
isso mais bela) e, num plano técnico, mais orgânica e de mais fácil aprendizagem
(em: , p. 1).
Mas o texto de Andrade Peres é, sim, segundo ele mesmo
diz, a sua tentativa de exigir, como cidadão e como linguista — e ele é
professor catedrático de Linguística Geral e Românica da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa —, que as reformas se pautem por critérios rigorosos, e
não foi isto o que ocorreu com o que se elaborou em 1990. Dos três aspectos
negativos apontados pelo professor, eu exponho o primeiro e o terceiro: (1) a
grafia opcional e (3) a eliminação das consoantes (ditas) mudas. O segundo
ponto, relativo à acentuação de algumas formas verbais no presente e no
pretérito perfeito do indicativo da primeira pessoa do plural (jantamos agora / jantámos ontem), foi reformulado pelo item 4o da Base IX
do Acordo Ortográfico (ou, segundo outra edição que tenho, do Evanildo Bechara,
pela letra c) do primeiro Adendo ao item 3o da Base IX do Acordo),
que assim diz:
“É facultativo assinalar com acento agudo as formas verbais de pretérito
perfeito do indicativo, do tipo amámos, louvámos, para as distinguir das
correspondentes formas do presente do indicativo (amamos, louvamos), já que o
timbre da vogal tónica/tônica é aberto naquele caso em certas variantes do português
(em: ).”
Este segundo ponto — que deixou de ser um problema porque
admite a grafia utilizada actualmente pelo português europeu, que na pronúncia
abre a vogal na forma do pretérito perfeito — transformou-se na verdade num
outro problema, caindo então no item (1) apontado pelo professor Andrade Peres,
a saber: a grafia opcional.
Tanto o português brasileiro quanto o europeu e o
africano possuem um número razoável de palavras que admitem dupla ortografia,
mas o que o Acordo Ortográfico de 1990
fez foi aumentar substancialmente este número. O caso das formas verbais da
primeira pessoa do plural do pretérito perfeito é um deles. Antes do Acordo não
havia, para o português, a opção de não
acentuar esta conjugação. Agora há. Antes do acordo não havia, para o
brasileiro, a opção de acentuar esta conjugação. Agora há. E o mesmo se dá com
outros casos. O próprio professor Francisco Álvaro Gomes, considerado um
importante defensor do Acordo de 1990, admite, em seu livro O Acordo Ortográfico, que o substancial
aumento de casos de dupla ortografia poderia ter sido evitado: “António/Antônio, oxigénio/oxigênio e outros pares poderiam ser superados, como
demonstraremos no ponto 13. Todavia, não é correcto afirmar-se que a língua
portuguesa não tinha já situações de grafia dupla”, diz o professor. E não
deixam de ser curiosas as alternativas sugeridas por ele no referido ponto 13:
“No que respeita ao caso particular de decisão de 1988 (institucionalização
da divergência António/Antônio, académico/acadêmico...), várias poderiam
ter sido as alternativas:
2.1. Supressão dos acentos (opção defendida em 1986 e
que, como se sabe, foi largamente contestada, embora não com uma argumentação
de solidez histórica (...)).
2.2. Institucionalização dessa diferença que vem, aliás,
consagrar alguma indeterminação (não gráfica, mas fonética) que existe dentro
da própria norma lusitana.
(...)
2.3. Anular, na língua portuguesa, os acentos agudo (´) e
circunflexo (^), uma vez que nem sempre eles correspondem à abertura ou ao
fechamento do timbre — difícil (aqui
marca apenas a sílaba tónica, não o timbre), têm (não fecha a vogal) —, substituindo-os por outro sinal que
marcasse a sílaba tónica (poderia ser o sinal “longo” latino (-), e que corresponde à efectiva prática de um
número significativo de utentes do código escrito).”
Considero um erro não se ter optado definitivamente pela
solução do item 2.2. (e creio que os itens 2.1. e 2.3. dispensam
comentários...) de um modo tal que ficasse respeitada a tendência geral da fonética
de cada região, ou seja, em regiões onde existe uma efectiva abertura vocálica
(em quase todo o Portugal), a palavra académico
seria assim escrita. E no território brasileiro, especialmente, seríamos acadêmicos à nossa maneira. (E eu não
conheço as características fonéticas do português falado nos outros seis países
em questão, e ainda na Guiné Equatorial e em Goa, e, pelos vistos, nem os
arquitectos do Acordo conhecem, pois, como bem observou o Vasco Graça Moura,
“Está-se nas tintas para os países africanos (…). [O Acordo] Não se preocupa
minimamente com o facto de as pronúncias africanas não estarem bem estudadas”,
“Parte de África”, op. cit., p. 74).
Acredito que só assim, com a institucionalização das
diferenças de modo exclusivo (e não
de modo inclusivo, como foi feito), a
própria ideia que está por trás de um acordo ortográfico — a ideia da
estabilidade ortográfica — fica mantida. Vejamos o que diz o texto do Acordo,
item 3º da Base XI: Da acentuação gráfica das palavras proparoxítonas:
“3º) Levam acento agudo ou acento circunflexo as palavras
proparoxítonas, reais ou aparentes, cujas vogais tónicas/tônicas grafadas “e” ou “o” estão em final de sílaba e são
seguidas das consoantes nasais grafadas “m” ou “n”, conforme o seu timbre é,
respectivamente, aberto ou fechado nas pronúncias cultas da língua:
académico/acadêmico, anatómico/anatômico, cénico/cênico, cómodo/cômodo,
fenómeno/ fenômeno, género/gênero, topónimo/topônimo; Amazónia/Amazônia,
António/Antônio, blasfémia/blasfêmia, fémea/fêmea, gémeo/gêmeo, génio/gênio,
ténue/tênue.”
Observe-se que o próprio texto do Acordo já se encontra
escrito sob a bizarrice da dupla ortografia aplicada de modo inclusivo (no
grifo acima, e em outros textos já vi assim escrito: tó[ô]nicas ou tô[ó]nicas),
quase como se não quisesse melindrar os acadêmicos
de um lado e os académicos de outro, sejam
eles Antônios ou Antónios. Segundo, portanto, o texto do Acordo, nas palavras do
professor Andrade Peres,
“... dois alunos portugueses, em Portugal (ou
brasileiros, no Brasil etc.), sentados lado a lado, ou dois professores em
salas contíguas seriam livres de usar a seu bel-prazer as grafias alternativas.
Em última análise, é deixada ao livre-arbítrio de cada cidadão a escolha da
grafia, pondo-se em causa a função da língua escrita como factor de coesão
social (Breve parecer sobre a entrada em
vigor do Acordo Ortográfico de 1990, op. cit., p. 2).”
O terceiro ponto, e o mais relevante, é a consequência,
para os portugueses, da eliminação das consoantes ditas mudas — uma consequência
que se vai sentir com mais evidência nas gerações seguintes, porque os falantes
de hoje já têm estabelecida uma certa pronúncia, em grande parte sustentada
pela presença de determinadas consoantes cuja função é justamente evitar, ou
refrear, o fechamento vocálico. O fechamento de algumas vogais em algumas
palavras é uma tendência do português europeu, e o professor Andrade Peres dá
como exemplos acção, actor, baptismo, perspectiva, lectivo, selecção, aspecto, objecto. As vogais que antecedem as
consoantes que o Acordo de 1990 limou, não fosse a presença destas senhoras
discretas e aparentemente mudas,
seriam pronunciadas de modo fechado. Seriam, não. Serão, porque a partir de
agora, e cada vez mais, as vogais lusitanas irão encolher.
“… o português europeu se está a tornar uma língua
dificilmente inteligível na oralidade, sobretudo para interlocutores não
nativos, devido ao fechamento das vogais. Demonstração clara desta situação
progressiva é o facto de um falante de castelhano entender bem o português
escrito, mas não o falado, ao passo que os portugueses entendem com grande
facilidade a oralidade castelhana, toda assente num vocalismo aberto; o mesmo
se passa quando se confrontam falantes de português europeu e de português
brasileiro; os primeiros entendem os segundos (…), mas a inversa não é
verdadeira, chegando-se ao ponto de no Brasil só se poder ver um filme
português se legendado. Conhecido este panorama, tudo o que contribua para o
fechamento das vogais no português europeu afectará negativamente esta variante
da língua portuguesa (Breve parecer…,
op. cit., p. 4).”
O professor Andrade Peres ainda elenca mais três
consequências do desaparecimento das consoantes “mudas”: (1) o aumento dos
casos de homofonia (palavras com mesmo som), e isto acontecerá, por exemplo, em
Portugal, com as palavras recepção e intersecção, que, sem as consoantes,
soarão como recessão e intercessão; (2) o aumento dos casos em
que se verificará a desagregação de palavras da mesma família, saindo as
consoantes não pronunciadas de algumas e ficando as pronunciadas de outras, descaracterizando-se
assim as séries, como é o caso de egípcio/
Egipto; espectador/espectáculo; secção/sector/intersecção; assepsia/asséptico/anti-séptico; e, por
fim, o aumento dos casos de homografia (mesma grafia), como se verá nos
exemplos de acto e ato (de atar); cacto e cato (de catar); corrector e corretor (de corretagem); facto
e fato — e quando alguém em Portugal
disser: “Não gosto de fatos novos”, não saberemos se está a falar com um
psicanalista ou com um alfaiate.
“… não é difícil concluir que o único objectivo real de
toda a negociação do Acordo, repito, o único objectivo real de toda a
negociação do Acordo foi o dessa supressão das consoantes ditas mudas ou não
articuladas (Vasco Graça Moura, “Acordo Ortográfico: a perspectiva do desastre”
— Intervenção na Assembleia da República, em 7.4.2008”, op. cit, p. 104).”
Sim, não fossem as reformas ortográficas, ainda estávamos
tropeçando em penduricalhos latinos e gregos, ou, por outra, ainda emaranhados
em inúmeras “maneiras correctas” de se escrever e pronunciar o que quer que
fosse. Ser contra a ideia de que foi necessário, para a língua portuguesa, realizar
as reformas ortográficas que se realizaram, porque esta língua passou por
muitas mudanças, é ser a favor, senão de uma philosophia, pelo menos de uma lythografia
bastante archaica.
Ser, no entanto, contrário às muitas bases deste Acordo
Ortográfico de 1990 não significa defender arcaísmos, não significa ser
conservador, ou estar na equipa dos etimológicos. Significa apenas que gostamos
da língua portuguesa tal como está escrita, tanto do lado português, como do
brasileiro, como dos PALOP e ainda de Timor Leste e Goa. Significa que consideramos
razoáveis e praticáveis as ortografias vigentes nos oito países da CPLP e nos
seis PALOP, porque os capítulos ortográficos que merecem algumas alterações são
poucos e poderiam ser realizados de forma autónoma, sem prejuízo para o corpo
da língua. Significa, como consequência, que entendemos a palavra acordo, antes de tudo, como a aceitação
das diferenças, ou seja, a concordância em tratar como legítimas todas as
diferenças, de modo a que cada elemento envolvido se veja reconhecido naquilo
em que é diferente e ao mesmo tempo se sinta fazendo parte de um sistema que
contempla a todos. Misturar as diferenças num caldo comum e impor a todos os países uma igualdade que é o fruto desconjuntado de eliminações e acréscimos
para todos os lados, só para se dizer, afinal, que não existem mais divergências
e todos escreverão, a partir de agora, da mesma maneira (como se as nossas
grandes diferenças fossem ortográficas, e não lexicais e sintácticas) — isto
não é fazer acordo; é bater martelo.
Referências bibliográficas:
Abril.com.
Em:
.
Acesso em 5
Ago. 2009.
BECHARA, Evanildo. A
nova ortografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
GOMES, Francisco Álvaro. O acordo ortográfico. Porto: Porto Editora e Edições Lúmen, 2008.
HOUAISS, Antônio. A
nova ortografia da língua portuguesa. São Paulo: Ática, 1991.
MATEUS, Maria Helena Mira. “Sobre a natureza fonológica
da ortografia portuguesa”.
Em:
.
Acesso em: 5 Ago. 2009.
MOURA, Vasco Graça. Acordo
Ortográfico: a perspectiva do desastre, Lisboa: Alêtheia Editores, 2008.
O céu sobre Lisboa.
Em:.
Acesso em: 5 Ago. 2009.
PERES, João
Andrade. Breve parecer sobre a entrada em
vigor do Acordo Ortográfico de 1990.
Em: .
Acesso em: 5 Ago. 2009.
Portal da Língua Portuguesa.
Em: .
Acesso em 19 Ago. 2009.