29 de setembro de 2010

"Fumo, ao fim da tarde, quando morre uma mosca e nascem mil formigas"

“Quando morre uma mosca nascem mil formigas: No sobrado, à volta da cama, aproveitando as réstias de sol e o aconchego do quarto, as moscas passeiam. Magras, pressentindo o inverno que se avizinha, ensaiam de quando em quando um voo curto e recomeçam a girar pelo assoalho. Sabem muito bem que têm os dias contados. Mas, criminosas encartadas em pátio de prisão, circulam num espaço limitado, fingindo que recuperam forças, disfarçando com toda a maldade que as distingue e com todo o seu sarcasmo e cobardia. Chegam a perseguir-se e fazem amor. Condenadas e tudo, fazem amor. Muitas ainda hão-de resistir até amanhã, para se banquetearem com o sangue fresco das aves da lagoa, e depois cairão de patas para o ar num canto, girando nas asas, espojando-se como se brincassem e, no entanto, já assassinadas pelo inverno. E logo aparecerão brigadas de formigas para as arrastar, porque quando morre uma mosca é sabido que nascem cem formigas e um milhão de vermes” (p. 74).

“Ao fim da tarde o largo perdeu o ar agressivo, é um território de abandono que acaba de cumprir mais uma jornada, percorrido, espezinhado, pelas sombras aliadas da igreja e da muralha. Dentro em breve vai render-se à noite, que é a face comum do universo, aconchegar-se nela, preencher os buracos e as rugas com escuridão. Confundir-se, enfim, com a mesma mancha que iguala outras zonas mais felizes — a estrada e os canteiros, as viçosas hortas” (p. 95).

“Fumo: E aqui cortam-me o caminho nuvens de um fumo quente, carregado de ternura e de recordação, que vêm de um pátio à entrada da aldeia. Faço um desvio, mergulho nelas, vou dar a um forno de pão, chamado pelo maravilhoso aroma da rama de pinho a arder. Labaredas calorosas, masseiras de tábua raspada, a ladina pá de forneira e a brancura do linho que cobre a branca farinha, tudo se afoga em névoa, em alvura — e eu também. Os olhos ardem-me, e nem assim deixo de estar preso ao conforto hospitaleiro, ao segredo e às seduções que há num forno de pão. Só daí por bastante tempo consigo despegar-me daquele tugúrio consolador, e então pasmo: também a aldeia se encontra coberta de bruma. Bruma ou fumo de pinho?

Depois do dia luminoso que esteve, uma turvação assim, repentina, não engana ninguém. São os ventos a mudar, são eles, os ares do oceano, que entram pela costa carregados de poeira de água, de névoa. Ar marítimo. Correcto, confere com o boletim meteorológico, que, uma vez sem exemplo, se decidiu a cumprir a palavra. De madrugada cá teremos o prometido noroeste, nada quezilento, nada alvoroçado, para impedir, como convém, a fuga das aves para o mar. Só falta que abrande durante a tarde de maneira a proporcionar uma deslumbrante entrada de patos na lagoa ao pôr do sol. Isso então é que seria correcto, correctíssimo" (p. 112-113).

José Cardoso Pires, O Delfim, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971.

21 de setembro de 2010

"O fim da terça"

Budapeste — A Associação Internacional de Calendariologia Avançada anunciou nesta segunda-feira a decisão de seu Comité Especial para o Regime da Sucessão das Feiras e dos Dias que a próxima terça-feira, a partir da meia-noite de segunda-feira, deixará de existir. “As pessoas não devem ficar abaladas com este novo momento, único, na calendariologia mundial”, disse o director estratégico, Joseph Nap Naptár. “A terça-feira ("Kedd", em húngaro), a partir da semana que vem, não mais existe, do mesmo modo como não existe o dia 31 de Fevereiro, e nem por isso as pessoas sentem falta do dia 31 de Fevereiro”.

O nosso enviado especial a Budapeste, José Paiva de Albuquerque e Aguiar de Alcântara Alves Antunes Avelar de Azevedo comenta que há muito tumulto e indignação às portas da AICA. “As pessoas não sabem o que fazer”, diz José Paiva de Albuquerque e Aguiar de Alcântara Alves Antunes Avelar de Azevedo, “e prevê-se grande caos no sistema financeiro internacional”. Joseph Nap Naptár, o director estratégico da Associação, está no momento dedicado a tentar apaziguar os ânimos e a convencer a opinião pública internacional de que não há motivo algum para dramas.

“Não há motivo algum para dramas”, diz ele, que ainda explica como vem transcorrendo o longo processo de tomada de decisão. “Estamos ainda na dúvida sobre se, dentro da logística calendariológica, a decisão irá (1) manter o dia de terça-feira, e este continuaria então a figurar e a permanecer no seu exacto lugar, desenvolvendo-se, no entanto, sem qualquer actividade humana de nenhuma espécie em todo o planeta, ou se iremos (2) simplesmente suprimir este desnecessário dia, sucedendo então a quarta-feira logo a seguir à segunda-feira, ficando a semana, deste modo, com apenas seis dias.”

A decisão, segundo fontes estratégicas, tende para a opção número 1. “E, neste caso”, perguntou-lhe o nosso enviado especial, José Paiva de Albuquerque e Aguiar de Alcântara Alves Antunes Avelar de Azevedo, “como seguiria a vida dos seres humanos numa terça-feira que existe mas não existe?”

— Muito simples — respondeu Joseph Nap Naptár, director estratégico da Associação Internacional de Calendariologia Avançada. — O dia de terça-feira, por ser um dia estranho e mal feito, e cita o historiador Leofrane Holforo-Strevens (que é também sócio-fundador da AICA), no seu livro Pequena história do tempo, “... o dia de Marte, mesmo sob o seu nome cristão — 'terceiro' — é um dia de azar para os gregos e não apenas devido ao facto de a queda de Constantinopla ter acontecido numa terça-feira. Os ocidentais, esquecendo-se da benevolência de Vénus, transferiram o dia de azar para a sexta-feira, o dia da Crucificação”. Por ser um dia mesmo estranho — continua Joseph Nap Naptár —, a terça-feira deverá ser mantida em repouso, e em repouso todas as pessoas do planeta deverão permanecer.

— Mas a fazer, então, o quê? — pergunta o nosso enviado especial, José Paiva de Albuquerque e Aguiar de Alcântara Alves Antunes Avelar de Azevedo.

— Nada — diz Joseph Nap Naptár, e sorri. — No caso de termos de manter o dia no exacto lugar, permanecendo a semana com sete dias, o que se deve fazer num dia de terça-feira ("Kedd", em húngaro) é nada. As pessoas não devem fazer comida, devendo comer o suficiente no dia anterior, não devem fazer contas, tomar notas ou desenhar, não devem falar umas com as outras, não devem sair de casa nem entrar em veículos de transporte, não devem trabalhar, não devem comprar pão nem redigir cartas, tampouco conversar e trocar ideias com amigos, vizinhos ou familiares, não devem escrever nem ler, muito menos pensar, não devem lembrar-se de nada, planejar nada, traduzir nada, querer nem desejar nada, não devem amar, beijar ou fazer sexo, não devem revisar textos nem exercitar-se e também não devem dormir, não tocar bateria, não devem arrumar a casa, lavar loiças ou roupas, não devem tirar férias nem trocar fraldas, não devem comer flocos nem arrumar ficheiros, não podem aproximar-se de computadores, telefones, telemóveis e demais aparelhos electrónicos, não podem pedir socorro nem se matar, o ideal era que ninguém nascesse ou morresse, e disso já estamos a tratar, não devem rir nem fumar nem chorar e muito menos se emocionar, não devem zangar-se, tomar decisões sérias, intimidar-se nem se envergonhar.

— O que se deve fazer então? — perguntou, atónito e boquiaberto, o nosso enviado especial, José Paiva de Albuquerque e Aguiar de Alcântara Alves Antunes Avelar de Azevedo.

O director estratégico da AICA, Joseph Nap Naptár, respondeu que a Associação está a estudar a hipótese de as pessoas de todo o mundo, neste dia de terça-feira — "Kedd", em húngaro —, fazerem Yoga: em casa e sozinhas. “Mas isso irá depender do tipo de Yoga a ser praticado”, assevera, garantindo, com um sorriso confiante, que a decisão, seja na opção 1 (manter a terça-feira, esvaziando-a integralmente) ou na opção 2 (eliminar a terça-feira da face da Terra), é a melhor e a mais sábia decisão já tomada desde que o homem inventou o tempo.

Resta-nos torcer para que a Associação Internacional de Calendariologia Avançada (AICA) decida pela segunda opção, suprimindo, absoluta e irreversivelmente, ou seja, para todo o sempre ("mindörökké", em húngaro), a terça-feira — “dia em que as horas se arrastam”, segundo a língua do povo Yahoo, que se deitava na segunda à noite e só acordava na quarta-feira pela manhã. 

1 de setembro de 2010

“O sentido das coisas”

2. “O sentido das coisas” (“Como é que eu vou contar isso?”), Revista Lilica and Tigor, São Paulo, set. 2010 (data aproximada)

A condição de pai doméstico reserva-nos surpresas. Quando acreditamos que já sabemos de tudo, descobrimos que não sabemos de nada. Assim foi com o episódio da sopa feroz. Assim foi com o episódio do cocô onipresente.

Enquanto preparava a primeira sopa da vida da Pipoca, eu a pus na cadeira; ela olhando, concentrada, e deu então um muxoxo. Pus a sopa morna na tigela, e ela, depois de encarar aquilo, gritou Maaauuuncshiiz!!! e começou a chorar, e eu a levei para o quarto, onde ficamos diante do espelho (nós o chamamos spêi), a rir!, a rir! Consegui fazê-la esquecer-se da tigela, e voltamos à cozinha, e ela disparou no choro, e eu disse: menina bonita come sopa de cooolher!, mas ela se jogou para trás e berrou mais alto!, e eu a levei para o quarto, onde ela gritou Maaauuuncshiiz!!! e começou novamente a rir diante do spêi; os dois ali, suados e, de algum modo, cúmplices, ela sabendo o que eu queria, e eu sabendo o que ela não queria, e depois eu a levei para a cozinha, e ela foi ficando séria, carrancuda, e, quando eu a sentei na cadeirinha, mais uma vez disparou no berrô, no berrô, no berrô que o gato deu!, e eu pensei: preciso preparar a mamadeira, e refiz a sopa na versão toda-caldos-com-biquinhos e a aconcheguei no meu colo, e ela olhou para mim e sorriu o-mais-belo-sorriso, cúmplice totalmente dessa vez, e me acompanhou, pegando na minha mão com a sua mãozinha, e lá fomos os dois juntos, ao longo de todos aqueles miiililiiitros, ao fim dos quais ela fechou os olhos e dormiu... É assim que se dá sopa, pensei, concluindo que a vida de pai doméstico é tudo — menos sopa.

Quanto ao cocô, como vou contar isso? A Pipoca não tinha uma semana de vida quando veio, enfim, aquele temidíssimo cocô gigantesco, onipresente, abundante e envolvente — um cocô não previsto por nenhum fabricante de fraldas, não contemplado por qualquer manual para pais iniciantes, não mencionado em um único cursinho pré-natal e jamais referido em alguma consulta pediátrica. O cocô envolveu a Pipoca da ponta da cabeça à ponta dos pés. A pequena mal conseguia mexer-se em meio àquele — digamos... — contexto. Depois de ter limpado a Pipoca assim assim, estava tentando, com um cotonete, remover todo o coquito presente em cada uma das reentrâncias do complexo conhecido como umbigo-da-Pipoca-ainda-sob-a-forma-de-coto. Quando já não havia mais nada a fazer e o mundo já havia perdido todo o sentido, eis que surge a avó materna, que, em quatro segundos, tirou a Pipoca de minhas mãos cheias também de cotonetes, abriu a torneira do tanque e lá, debaixo d’água, a deixou, deixando também Pipoca’s father calado e pensativo — sabedor de que, um dia, será, por sua vez, avô e terá, por sua vez, tanques e netos, e a presença de espírito de jamais confiar em cotonetes quando o assunto é cocô no coto.