22 de outubro de 2010

"Sargento Getúlio: o dragão Manjaléu" - "Apresentação do romance Sargento Getúlio" (Figueira da Foz)


"Apresentação do romance Sargento Getúlio"
23 de Outubro de 2010, Casino Figueira, Figueira da Foz.

"Sargento Getúlio: o dragão Manjaléu" (com a apresentação do filme de Hermano Penna).

20 de outubro de 2010

"A linha reta de Getúlio”

"A linha reta de Getúlio”, JL — Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, Portugal, 20 out. a 2 de nov. de 2010, p. 17.

Resenha sobre o livro Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro, publicado em Portugal pelas Edições Nelson de Matos.

A noite de lançamento será no dia 30 de Novembro, terça-feira, às 21h, na Livraria Buchholz, em Lisboa.

O romance Sargento Getúlio, escrito na década de 60, foi publicado no Brasil em 1971, pela Civilização Brasileira. Em 78, sai a edição norte-americana, pela Houghton Mifflin, Boston, em tradução do próprio autor, com uma tiragem inicial de 70 mil (!!!) exemplares. Foi traduzido para o francês, espanhol, italiano, alemão, sueco, norueguês, finlandês, hebraico, eslovénico, húngaro, russo e holandês. O leitor português ganha agora, finalmente, numa iniciativa das Edições Nelson de Matos, a sua primeira edição. 


Getúlio Santos Bezerra é um herói que caminha em linha reta e não se desvia um palmo do seu destino. Acuado perante o poder estabelecido, a terra hostil do sertão brasileiro e a sua incapacidade de se adaptar a uma nova ordem, é um herói porque tem consciência do seu valor e da missão que deve realizar. É também um herói porque carrega às costas a responsabilidade de perpetuar os valores da comunidade que representa. É, em última instância, um herói porque resiste no cumprimento do seu papel; e resiste porque é teimoso como uma mula.


O sargento Getúlio não se limita a cumprir o seu papel: ele morre por o ter cumprido. E que papel é esse? A sua missão: levar um preso de Paulo Afonso, norte da Bahia de Todos os Santos, a Barra dos Coqueiros, em Sergipe. A ordem provém de um chefete local, um tal Acrísio Antunes, representação cristalina do coronelismo que tanto impregnou a região. Acompanham Getúlio o seu motorista Amaro, amigo de outras missões, e, claro, o próprio preso, "cachorro bexiguento", "cão da pustema apustemado", "pirobo semvergonho" e "filho de uma mãe com vinte pais", assim chamado porque Getúlio não lhe dá nome, o que equivale a dizer que o preso não tem direito a carregar nome algum. Viajam os três num carro antigo, baleado, enferrujado e lento.


A meio do caminho, Getúlio recebe uma contraordem: reconduzir o preso a Paulo Afonso, início do trajeto, e abortar a missão. Porém, ao contrário da ordem primeira, esta não é recebida direta e pessoalmente de seu chefe Acrísio, mas de mensageiros que lhe vão surgindo pelo caminho, uma vez que o chefe-ele-mesmo não pode, nem deve, aparecer. O sargento, não obstante os recados devidamente creditados, recusa-se a incorporar a nova situação, e desse modo ajustar-se à nova ordem. Dada a obstinação, a ignorância, a equina teimosia que sustenta e eterniza a sua fidelidade à palavra viva de Acrísio, Getúlio vai contra a contraordem e decide enfrentar as consequências. É este o homem que temos à frente, é esta a sua história: a linha reta de Getúlio Santos Bezerra, o mais impressionante, convincente e inesquecível personagem de João Ubaldo Ribeiro.


Este sargento configura uma espécie de amálgama de um período da infância de Ubaldo em Sergipe. Todos os sargentos que o escritor conheceu até aos onze anos, quando lá viveu por conta do trabalho do pai, Manoel Ribeiro, circularam pelos corredores da sua casa e da sua memória, para depois surgirem nas páginas da sua prosa. O mais caricato era o Getúlio original: "... um homem de bigodinho (...) fininho, de costeletas, pintava as unhas!, quer dizer, (...) com esmalte transparente (...). Naquela época era preciso ser muito macho em Sergipe para fazer isso", disse Ubaldo numa entrevista a Fernando Assis Pacheco para o JL, em 1983. O mais epopeico era o sargento Cavalcante, que tinha levado dezassete tiros e continuava vivo, vindo a morrer assassinado, décadas depois, por outras razões e outras balas. E o mais literário de todos, o sargento Tasso, a Xerazade de Ubaldo, sempre dentro de casa, com a sua submetralhadora ao colo, a conviver com a família e as crianças. "Foi o homem que me contou a maior parte dessas histórias aí no Sargento Getúlio, (...) uma pessoa boa (...) e ao mesmo tempo um facínora!", disse Ubaldo. Talvez seja por isso que se escreva tanto que a verdade, se existe mesmo, se esconde é na infância — essa espécie de quintal da literatura, onde a memória brinca connosco às escondidas.


O sergipano ignorante que dá título ao romance de Ubaldo reúne em si não apenas as imagens daquela infância, mas também os falares. As suas expressões configuram uma espécie de língua própria, que é o português mas é também o que o próprio Ubaldo chama de "sergipês": o português do interior do Sergipe pelos idos de 1950. Este "sergipês", no entanto, não será ilegível para o leitor daqui. O que um sergipano descabido e bronco como Getúlio Santos Bezerra faz é, segundo Ubaldo, deturpar, "estropiar as palavras que pertencem ao nosso património histórico".


E o mundo, quando se entra na leitura desse admirável romance, passa a ser o mundo de Getúlio, através dos olhos de Getúlio. Ler este livro significa deixar-se capturar por um ponto de vista, do qual só se conseguirá sair ao final. Toda a enunciação do romance é a fala de Getúlio em tempo presente, que se dá em vários níveis. O sargento não é apenas aquele que fala para o outro, para Amaro, o seu motorista, como também para o preso, ou o padre que surge páginas adiante, ou ainda para todos os mensageiros que lhe imploram que abandone o preso e desapareça; é também aquele que fala sozinho, aquele que pensa, aquele que rememora e aquele que delira. Getúlio fala, e nós, leitores boquiabertos, não conseguimos escapar de dentro dos seus pensamentos.


Tal efeito da intimidade produz uma consequência decisiva para toda a compreensão do que podemos chamar "o complexo Getúlio". A partir do momento em que começamos a ficar íntimos do nosso herói, habitamos o vazio da sua cabeça. A partir daí, todo o nosso julgamento moral acerca dos seus atos de violência fica dificultado, e a questão do romance deixa de ser uma questão dicotómica entre o preso (a vítima?) e Getúlio (o carrasco?). Getúlio torna-se, então, complexo, e passamos a gostar dele.


A discussão sobre o poder adquire, assim, novos contornos. Para além de símbolo de um espírito autoritário, presente na história política brasileira — o período do Estado Novo, de 1937 a 1945, e o regime militar pós-1964 —, Getúlio passa a ser também a representação microscópica de uma violência ainda maior, o que nos permitiria demarcar aqui uma pequena geografia do poder que envolve os personagens: o "poder dos donos da política" e ainda de alguns outros micros poderes espalhados entre todos: o de Getúlio sobre Amaro; o de Amaro sobre Getúlio; o de Getúlio sobre o preso; o do preso sobre Getúlio; o da terra hostil sobre todos os homens; e, por fim, o da incapacidade de Getúlio de lançar um olhar de fora sobre si mesmo e sobre e a sua absurda e intransponível condição. "Por que vosmecê não some?", pergunta-lhe o padre, um pouco depois de rogar a Getúlio que abandone a missão porque a política, afinal, havia mudado. E Getúlio, que não consegue sair de si mesmo, responde, entre o debochado e o incrédulo: "Eu, sumir? Como é que posso sumir, se primeiro eu sou eu e fico aí me vendo sempre, não posso sumir de mim e eu estando aí sempre estou, nunca que eu posso sumir. Quem some é os outros, a gente nunca".


Quando Getúlio enfim some, ou morre, morre o enunciado e morre também a enunciação. E assim morre o seu narrador, que forma, com Getúlio, o mesmo corpo. Não é à toa que o enunciado mais absurdo, na estrutura de todas as línguas, seja, afinal, o singelo "Eu morri": o único impossível de ser dito. É por isso que o romance termina com uma sentença inconclusa e sem o ponto final. Getúlio morre a falar, e não termina o que tem a dizer.



14 de outubro de 2010

Escrevi; logo, existo


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Hoje os portugueses vão poder assistir a "José e Pilar", do realizador Miguel Gonçalves Mendes. O filme tem antestreia nacional neste dia 14 de Outubro, às 21h, no Grande Auditório da Culturgest. Tenho inveja de quem ainda não viu, porque quem ainda não viu vai poder deliciar-se em ver pela primeira vez uma coisa tão bem concebida e feita com tanta paixão e competência. Parabéns ao Miguel.

1 de outubro de 2010

“Alice e Clara”

3. “Alice e Clara”, Revista Lilica and Tigor, São Paulo, out. 2010 (data aproximada).

Conto-lhes hoje da vinda ao mundo das minhas duas meninas, Alice e Clara. A primeira desencruou no dia 30 de setembro de 2002. Nesse dia, além da Alice, também estrearam no mundo as óperas A flauta mágica, do Mozart, em 1791; Os pescadores de pérolas, do Bizet, em 1863; e Porgy and Bess, do Gershwin, em 1935. Nasceram, além da Alice, o escritor Unamuno, em 1864; e o escritor Truman Capote, em 1924.

Nesse dia e nesse ano, retirou-se a Alice da barriga de sua mãe e, em 1918, retirou-se a Bulgária da Primeira Guerra, ambas as retiradas muito tensas e envolvendo bastante sangue. Em 1966, o complexo conhecido por Bechuanalândia torna-se independente, sob o estranho nome de Botsuana. Durante a silenciosa madrugada do dia 30 de setembro, o complexo até então conhecido como “Alice-na-barriga-de-sua-mãe” torna-se também, por sua vez, independente, sob o belo nome Alice-a-cara-do-pai.

O parto foi mesmo um parto, como eram um parto as extrações de dente sem anestesia, condição felizmente alterada para melhor nesse mesmo dia 30 de setembro do ano da graça de 1846, num lugar chamado Charlestown, onde, pela primeira vez, foi feita uma extração de dente sem dor... Antes, era um parto extrair um dente... Hoje, não. Hoje, apenas os partos são um parto. Tudo o mais é menos que um parto.

O pai, trêmulo qual um bambuzinho na tempestade, chorou tanto e tanto se congestionou que quase se asfixia naquelas máscaras brancas usadas nas salas hospitalares — as chamadas máscaras-brancas-usadas-nas-salas-hospitalares.

O nascimento da Clara, 5 anos depois, foi anunciado de forma bastante clara, cuja consequência me pareceu igualmente clara (como a luz do sol). É clara para mim e espero que seja clara também para vocês, leitores.

O que bem no início se nos apresentou como uma série de pequenas e médias tentativas (sete ao todo) subitamente ganhou forma e se transformou num fato; um fato ainda embrionário, mas, vá lá..., um feto, digo, fato. O fato, digo, feto, aos poucos, se foi formando e se avolumando, enfim, numa realidade cuja real consequência sabíamos que só viria à luz meses depois (nove ao todo) — uma realidade arredondada que sabíamos (sentíamos com a mão) estar prenhe de um sentido ainda oculto mas que muito se mexeu, e em todos os sentidos, antes de se revelar por inteiro na noite fresca do dia 10 de abril de 2007, em plena primavera portuguesa.

O que se seguiu a partir de então está para nós gravado de forma bem clara: contrações claramente percebidas e regulares, procedimentos técnicos claramente executados a tempo e a contento, emoções claramente vividas, e a vida, é claro, luminosamente refeita.


Esta minha notícia foi clara? Sim, foi clara para a mãe da Clara. Clara para mim. Clara para todos. Clara para o mundo. E eu sou, por causa dessas duas meninas, um homem claramente feliz.