3. “Alice e Clara”, Revista Lilica and Tigor, São Paulo, out. 2010 (data aproximada).
Conto-lhes
hoje da vinda ao mundo das minhas duas meninas, Alice e Clara. A primeira
desencruou no dia 30 de setembro de 2002. Nesse dia, além da Alice, também
estrearam no mundo as óperas A flauta
mágica, do Mozart, em 1791; Os
pescadores de pérolas, do Bizet, em 1863; e Porgy and Bess, do Gershwin, em 1935. Nasceram, além da Alice, o
escritor Unamuno, em 1864; e o escritor Truman Capote, em 1924.
Nesse dia e
nesse ano, retirou-se a Alice da barriga de sua mãe e, em 1918, retirou-se a
Bulgária da Primeira Guerra, ambas as retiradas muito tensas e envolvendo
bastante sangue. Em 1966, o complexo conhecido por Bechuanalândia torna-se
independente, sob o estranho nome de Botsuana. Durante a silenciosa madrugada
do dia 30 de setembro, o complexo até então conhecido como “Alice-na-barriga-de-sua-mãe”
torna-se também, por sua vez, independente, sob o belo nome Alice-a-cara-do-pai.
O parto foi
mesmo um parto, como eram um parto as extrações de dente sem anestesia,
condição felizmente alterada para melhor nesse mesmo dia 30 de setembro do ano
da graça de 1846, num lugar chamado Charlestown, onde, pela primeira vez, foi
feita uma extração de dente sem dor... Antes, era um parto extrair um dente...
Hoje, não. Hoje, apenas os partos são um parto. Tudo o mais é menos que um
parto.
O pai,
trêmulo qual um bambuzinho na tempestade, chorou tanto e tanto se congestionou
que quase se asfixia naquelas máscaras brancas usadas nas salas hospitalares —
as chamadas máscaras-brancas-usadas-nas-salas-hospitalares.
O nascimento da Clara, 5 anos depois, foi anunciado de forma
bastante clara, cuja consequência me pareceu igualmente clara (como a luz do
sol). É clara para mim e espero que seja clara também para vocês, leitores.
O que bem no início se nos apresentou como uma série de pequenas e
médias tentativas (sete ao todo) subitamente ganhou forma e se transformou num
fato; um fato ainda embrionário, mas, vá lá..., um feto, digo, fato. O fato,
digo, feto, aos poucos, se foi formando e se avolumando, enfim, numa realidade
cuja real consequência sabíamos que só viria à luz meses depois (nove ao todo)
— uma realidade arredondada que sabíamos (sentíamos com a mão) estar prenhe de
um sentido ainda oculto mas que muito se mexeu, e em todos os sentidos, antes
de se revelar por inteiro na noite fresca do dia 10 de abril de 2007, em plena
primavera portuguesa.
O que se seguiu a partir de então está para nós gravado de forma
bem clara: contrações claramente percebidas e regulares, procedimentos técnicos
claramente executados a tempo e a contento, emoções claramente vividas, e a
vida, é claro, luminosamente refeita.
Esta minha notícia foi clara? Sim, foi clara para a mãe da Clara. Clara
para mim. Clara para todos. Clara para o mundo. E eu sou, por causa dessas duas
meninas, um homem claramente feliz.
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