1 de janeiro de 2012

"Amantes ouvintes da madrugada"

BATELLA, Juva; KUSCHNIR, K. (ilustradora), “Amantes ouvintes da madrugada”, in: Lado 7 (Impresso), 2012, v. 4, p. 117-127. (ISSN: 2236-370X)

E agora, José, em casa, você releu se levantou, espreguiçou o corpo demoradamente, com as mãos para cima, balançou a cabeça como que para sacudir alguma poeira, desligou maquinalmente o computador, escureceu o quarto e foi para a cama. Deitou-se convicto de que não dormiria, e começou então a fuçar desta vez a memória, e entre as muitas cenas e imagens antigas, perdidas e esquecidas, espalhadas por todos os recantos de seu passado e associadas a um sem-número de outras lembranças, sentiu chegar à sua testa pouco sonolenta aquela época da vida em que ouvia uma determinada estação de rádio dedicada, em suas madrugadas, a promover encontros entre pessoas solitárias.

Você fechou os olhos, sorriu de leve no escuro e deixou-se conduzir. E lembrou-se de que era tarde e de que naquela noite você não estava conseguindo conciliar o sono. O locutor da rádio, depois de tecer um comentário óbvio acerca do destino e das misteriosas curvas da vida — Estamos sempre traçando as linhas de nosso destino, meus caros amigos! Não fazemos nada que já não esteja traçado... E por isso pensem bem nos passos que devem dar. Dêem voz aos chamados do coração, pois um detalhe pode mudar a sua vida, e por isso... —, passou a palavra a mais uma ouvinte que havia ligado para se revelar publicamente sozinha e disposta a conversar. E você se lembrou, no escuro, de que o nome que ela deu foi Angelúcia, e dizia também que tinha trinta e sete anos, que estava recentemente separada do marido, morava num bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, era loira, de estatura mediana, pesava cinqüenta e três quilos, era bonita e jovem, mas carente. — E deixo eu aqui, meus queridos ouvintes desta madrugada, o telefone de nossa amiga Angelúcia. Um pequeno passo pode mudar a sua vida, e por isso pensem bem nos passos que devem dar. A Madrugada do Amor, sempre à meia-noite. Porque estamos a toda hora traçando as linhas de nosso destino. E passo mais uma vez, para quem não anotou, o número de nossa amiga ouvinte Angelúcia. A Madrugada do Amor: nós estamos aqui, e você? Está aí? A Madrugada do Amor. Um oferecimento...

Você ligou, Angelúcia atendeu. Tinha uma voz bonita. Conversaram, ao inicio uma conversa tipo então, tudo bem, tudo bem, e você, tudo bem também, como você é, sou assim, e você, sou assim, o que é que você faz, faço isso, e você, faço isso, e está sozinha, estou, eu também, que bom, e gosta de fazer o quê, gosto disso, jura, eu também, que bom, está frio, e combinaram de se falar no dia seguinte, pelas dez da noite. Você ligou, Angelúcia atendeu. A voz continuava bonita, e dessa vez mais sexy, e a conversa seguiu o rumo do onde é que nós paramos ontem, paramos aqui, onde, aqui, eu perguntei o que é que você gostava de fazer, e você disse isso, e eu pensei naquilo, ah, eu também, você também o quê, eu também pensei naquilo, ah... e ficaram um pouquinho em silêncio, e foi ela quem perguntou, depois de um suspirinho, o que é que você está vestindo, silêncio, e você disse eu, eu, bem, eu estou na cama com um short e uma camisa, e você, eu estou na cama... silêncio. Ah, você disse, e depois disse está quente hoje..., e a partir desse dia, ao longo de duas semanas, a conversa de vocês, sempre às dez da noite, foi uma conversa sexo-confessional bastante animada, com direito a eventuais e supostas masturbações de lado a lado que resultavam cada uma em supostos orgasmos, depois dos quais desligavam, viravam cada um para o lado de suas camas e dormiam, saciados. Lembra-se, José?

Combinaram numa noite que se veriam enfim, e seria no dia seguinte, uma sexta-feira, depois do expediente. Trabalhavam ambos no centro da cidade, marcaram de se encontrar na estação de trens Central do Brasil. Você iria buscá-la de carro. E ainda na noite anterior acertaram detalhes, tais como você estará como, estarei assim, e você, estarei assim, você vai de carro, vou, e qual o carro, é o carro tal, à hora tal. E na hora tal lá estava você, José, dentro do seu carro, o coração pulando e as mãos molhadas de suor segurando e apertando a alavanca das marchas. Você não via ninguém, ou melhor, via o mundo inteiro, porque às seis da tarde, na Central do Brasil, não se vê o chão, mas apenas pés, os inúmeros pés de toda aquela gente para lá e para cá. E você, agora na cama, tentando dormir, pensou em si mesmo aquele dia, àquela hora, na Central do Brasil, e sentiu um friozinho na barriga lembrando-se de como ele começou, a cada minuto que passava e Angelúcia não aparecia, ou melhor, não aparecia diante de seus olhos a descrição que Angelúcia fizera de si mesma, de como você começou a se sentir, ali parado dentro do seu carro, vulnerável, exposto, ridículo e pateta. E não deu tempo de chegar a se arrepender de ter revelado a ela a cor e o tipo do carro com o qual a pegaria porque você a viu de longe, parada junto ao meio fio, a uns vinte e cinco metros à frente de onde vocês estavam, você e o seu carro. Você a viu, ou seja, reconheceu exatamente as cores e o tipo de roupa que ela estaria usando e viu que ela ainda não o tinha visto, e vendo isso quis ir embora, e respirou fundo. Nada o impedia de ir embora. Mas por três segundos não soube o que fazer. E se levantasse a cabeça bem alto dentro do carro, de modo a dificultar que uma pessoa do lado de fora visse seu rosto, e se colocasse o carro em movimento, avançasse e saísse dali? O trânsito não ajudava, e a fila de carros à sua frente ia bastante lenta. Não teria como não passar ao lado dela, mas manteria os vidros suspensos e não olharia para o lado de modo algum. Você ouvia o seu próprio coração. À medida que o carro se aproximava daquela mulher ainda parada e aparentemente absorta ou distraída, você ia reparando em detalhes que constituíam desvios verdadeiramente brutais daquela descrição original que fizera Angelúcia de si mesma ao telefone ao longo daquelas duas semanas de papo quente e furado. Havia apenas dois carros à sua frente, e em questão de segundos estariam emparelhados. Você empertigou-se no banco, mirou o sinal de trânsito mais adiante e assim ficou, o mais sério que pôde. Pelo rabo dos olhos viu-a sair de onde estava e se aproximar, acenando para o carro e em seguida abaixando o tronco. E você, José, depois de engatar a primeira marcha, mexeu apenas o pé esquerdo, levantando-o lentamente do pedal da embreagem e andando para a frente. A mulher olhou para dentro, sorriu e depois franziu a testa. Você continuou imóvel, na marcha lenta do trânsito, e olhando para a frente. A mulher começou a andar ao lado, acompanhando o carro, e bateu no vidro do lado do carona.

— Ei! José!

E você, José, ainda conseguiu fingir que não ouvia nada ou que não tinha nada a ver com aquilo tudo, mas se sentiu envergonhado de si mesmo, e pela segunda vez em menos de dez minutos. Ela bateu uma segunda vez no vidro, dessa vez mais forte, e você sorrindo amarelo, debruçou-se sobre o banco e girou a manivela.

— Decepcionado? — perguntou a mulher sorrindo um sorriso feio, e você, que poderia ter dito: — De modo algum, Angelúcia, mas se vim aqui foi para lhe dizer que não poderemos nos encontrar hoje, porque surgiu um imprevisto e coisa e tal —, ou então: — De modo algum, Angelúcia, mas prefiro que não avancemos mais do que já avançamos até aqui e coisa e tal —, você, José, disse afinal:

— De modo algum... Entre...

E aquele movimento de levantar o pino do carro e abrir a porta foi dos movimentos que já vez na vida o que mais tempo demorou para ser iniciado e concluído. Uma vez concluído, você se viu então em meio a uma outra realidade. Aquela desconhecida estava entrando no carro, e entrou primeiro com o pé esquerdo metido num sapato altíssimo e por cima a sua perna grossa e gorda. Depois simplesmente deixou-se cair com a grande bunda no banco, cinqüenta e três quilos..., soltando de vez todo o peso, e puxou em seguida o pé que faltava, metendo-se inteira e apertada dentro do carro, abaixando o pino e virando-se para você, que entretanto não andou com o carro porque o sinal havia fechado justamente ali, na sua vez. E você sorriu.

Angelúcia, ou aquela mulher que se dizia Angelúcia, deveria ter entre sessenta e setenta anos, era gorda o suficiente para pode ser apontada na rua assim: — Lá vai uma mulher gorda —, seus braços exibiam camadas de pele dependuradas, pele ressequida e clareada por manchas irregulares, havendo também muitas sobras de pele ao pescoço, e em cima uma cabeça pequenina cheia de um cabelo loiro embranquecido, também seco. Vestia uma roupa bonita e parecendo cara, estava excessivamente maquiada, excessivamente perfumada e, como também deveria estar nervosa e sob algum jejum, não podia abria a boca sem que você sentisse ânsias e virasse de pronto para o outro lado, tentando não respirar o ar daquele bafo. Se ao menos não tivesse descrito a si mesmo e o carro em que estaria, você pensou. Conforme haviam combinado ao telefone, iriam imediatamente a um motel.

— Tomamos alguma coisa antes?

— Não — disse ela. — Eu não bebo. Você quer beber?

Você não disse nada, e depois de quinze minutos dirigindo em silêncio estacionaram na garagem de um motel próximo ao centro. Entraram no quarto, Angelúcia jogou sua bolsa no chão com alguma teatralidade, colocou os braços à volta do seu pescoço e fechou os olhos. Você desviou o rosto, fugindo de sua boca de bafo ruim, e abraçou-a. Depois soltou-a, abriu o frigobar e, na esperança de que pelo menos aquele mau hálito fosse embora, ofereceu a ela um suco de laranja de garrafa e um salgadinho. Ela recusou os dois, fez-lhe um carinho na barba e saiu, dizendo que ia tomar um banho longo. Você respirou fundo, chegou a pensar em fugir e ainda conseguiu rir de si mesmo, tirou a roupa, foi para a cama, meteu-se nos lençóis, ligou a tv, apagou a luz e ficou assistindo, sem som, a um filme pornô. Excitou-se, depois cansou-se e sentiu sono, e em seguida viu-se ansioso com aquela demora. Chegou até a desejar, rindo para ver se aliviava a própria tensão, que ela tivesse escorregado no chão, batido a cabeça e morrido ali mesmo, em silêncio, no banheiro do motel. Você ia chamá-la quando enfim ela entrou no quarto, depois de mais de vinte e cinco minutos a preparar-se. Olhou para você, olhou para o filme pornô e perguntou se você se importaria de desligar aquilo. Você deu de ombros, ela mesma desligou, o quarto ficou de repente todo no escuro e ela disse que não, e pediu a você que acendesse a luz.

— Quero ver você sentir prazer — disse ela, e nem parecia a mesma pessoa do telefone. E ela se aproximou envolta na nuvem de um perfume doce demais, tirou uma camisola levinha que estava usando e exibiu-se totalmente nua. Você engoliu em seco, sorriu amarelo, chamou-a para a cama.

E agora, José, você acordou um pouquinho sobressaltado. Adormecera lembrando-se da história com a tal Angelúcia, e a lembrança escorregara rapidamente para o sono, transformando-se em sonho e depois em pesadelinho. Mas foi assim mesmo, pensou sorrindo, ainda deitado na cama e pouco antes de acender a luz. Ainda era quinta ou já estávamos na madrugada de sexta? Lembrava-se de tudo, ela chegando, você querendo ver um filme de sacanagem para poder excitar-se, você querendo fazer tudo no escuro para conseguir manter-se excitado, e ela? Ela querendo todas as atenções para si mesma, sem tv, sem escuro, só ela, ali, tão feia, fedida e gorda, e tão carente, tadinha, com aquelas pernas abertas. Você, José, tem boa memória. E do que mais se lembrava? Com ela já por baixo de você e você sentindo que o sangue lhe fugia, lembrou-se daquela voz ao telefone, daquela voz sexy e envolvente, e lembrou-se do exato instante em que, fechando os olhos, pediu a ela que falasse bastante e sem parar, até o fim. Você se lembrava de tudo, não é?, e não se lembrou de ter aberto os olhos uma só vez.

“Dormir é preciso”

7. “Dormir é preciso” (“Ensinar a dormir é preciso”), Revista Lilica and Tigor, São Paulo, jan. 2012 (data aproximada).

Lembro-me como se fosse hoje da noite em que, voltando de uma festa, quando ainda morávamos no Rio, encontramos eu e a minha então mulher o nosso vizinho, às quatro da manhã, a passear na pracinha ali do Leblon com o seu carrinho de bebê. Olhei para ela: “Estranho um sujeito passear com o bebê a esta hora…”. E, ainda embalados com as caipirinhas que tomamos e as música que dançamos, rimos a risada que riem os casais sem filhos.

Passados os anos, e já nascida a Pipoca (também chamada de Alice), entendemos o que é que significa um bebê acordar no meio da noite e não voltar a dormir — um bebê com mais de dez meses, entenda-se, que é a idade em que as crianças se dão conta de que dormir significa ficar longe dos pais. E sentimos isto na pele. A Pipoca adormecia com um de nós dois no quarto. E, se acordava no meio da noite e não via aquele com quem ela pegou no sono, chorava. “Onde está o papai, se estava aqui na hora em que fui dormir?” E lá ia o papai voltar a adormecer a criatura. Se acordasse novamente, novamente ia o papai adormecer a criatura. Quando a criatura em questão se acostumava a pegar no sono no carrinho, por exemplo (o caso do vizinho do Leblon), o sujeito tinha de voltar a adormecê-la no carinho. E eu sei de histórias de crianças que só pegam no sono embaladas pelo motor do carro, e no meio da madrugada lá ia o pai a passear de carro com a criatura… Adormecido o ser, carregava-o o pai para casa e para o berço.

Até que, fatigados, adquirimos o livro Nana, neném (ed. Martins Fontes). A tese é simples: do mesmo modo como ensinamos os nossos bebês a grunhir, a cair e a comer, devemos, também, ensinar os miúdos a dormir; ensinar os miúdos a conciliar o sono sozinhos, sem a nossa presença debruçada sobre o berço, a fazer “Nãna, nãna, nãna…”, enquanto passamos os dedinhos sobre a testa. Fazemos isso, em geral, durante vinte, quarenta minutos, até que as criaturinhas apaguem, e só depois que apagam é que saímos do quarto, mal disfarçando um sorriso e a alegria que experimentamos diante da possibilidade real de algumas horas de sossego total. “A criatura pegou no sono afinal?”, pergunta a mulher. “A criatura pegou no sono afinal!”, anuncia o homem, que avança, cheio de pensamentos, para a mulher, que finge que foge.

Aplicado o método, que foi sofrido e quase tortuoso — uma semana a aplicar uma tabela crescente de minutos, ao fim dos quais entrávamos no quarto para lhe dizer que estávamos ali, que a amávamos, mas que ela deveria dormir sozinha, e ela a suar e a chorar, desesperada, os olhos brilhando, a boiar em lágrimas; uma semana de choros e ranger de dentes (de leite) contrapostos à convicção de que aquilo era para o bem dela e de todos —, ensinamos, enfim, a Pipoca a conciliar o sono sem papai e mamãe no quarto.

As vantagens do método são óbvias: a última situação que a criança vive antes de pegar no sono envolve apenas o berço, onde ela está sozinha, uma chupeta e o seu ursinho amarelo (pode ser vermelho). Se ela acorda ao longo da noite (e as crianças acordam muitas vezes ao longo da noite; acordam e voltam a dormir segundos depois), a situação que encontra é a mesma que deixou ao cair no sono: a solidão do berço, a chupeta e o ursinho amarelo (pode ser cor-de-laranja). As crianças que caem no sono com os pais debruçados sobre o berço, quando acordam e não vêem os pais, protestam, porque querem a reprodução do mesmo contexto, e aí: Nossa Senhora das Noites Mal Dormidas, Nossa Senhora do Mau Humor, Nossa Senhora dos Dias Mal Vividos.