16 de agosto de 2018

Nanopost

 
                                                                                                                                           ilustração @karinakuschnir

O escritor Ricardo Piglia escreveu a sua famosa teoria do conto, e começou referindo umas notas de Tchekhov que talvez estivessem ali para esboçar uma pequena história a ser escrita mais tarde — um autor a tomar notas para futuros textos. O argumento de Tchekhov é simples, sintético e potente: “Um homem em Montecarlo vai a um cassino, ganha um milhão, volta para o hotel e se mata”.

A partir daí Piglia monta a sua teoria segundo a qual um conto, um bom conto, sempre conta duas histórias. E as notas de Tchekhov sugerem mais: duas histórias que, dentro daquelas breves notas, não combinam. Um jogo bem sucedido e uma vontade de acabar com a própria vida são eventos que à primeira vista não se casam, e a força deste conto (não escrito) está aqui: nas duas histórias que propõe — a história do jogo e a história do suicídio.

Tchekhov, não sei se com esta intenção, acabou por escrever, a partir daquelas notas para um provável conto, um delicioso nanoconto pronto para uso — perfeito e redondo. Na verdade, duplamente perfeito: como quatro frases que podem ser preenchidas e assim gerar diferentes histórias (o que faz todo bom nanoconto), e ainda como a representação de uma ideia de conto — um texto ficcional que conta duas histórias como se fossem uma só, duas histórias caminhando lado a lado, ou uma à frente da outra.

Citei o Tchekhov porque para mim é o exemplo ideal. Mas há outros incríveis nanocontos — alguns apenas perfeitos, outros duplamente perfeitos. O famoso nanoconto de Hemingway — “Vendem-se sapatinhos de bebê sem uso” — é apenas (!) perfeito, e sua história é tão simples e óbvia quando trágica e triste.

O nanoconto é uma espécie de narrativa in medias res — começa já tendo começado e termina antes de terminar; um bonde literário andando... E o leitor, se tiver fôlego, corre atrás do bonde para imaginar onde aquela narrativa termina. O fôlego não é para correr; é para imaginar.

Há nanocontos metanarrativos, como o de Alan Moore: “Tempo. Inesperadamente, inventei uma máquina do”. O tempo manipulado numa hipotética máquina é flagrado dentro do próprio texto, que altera os termos dentro da leitura — porque a leitura só acontece dentro do tempo. Há outros, como o da Cíntia Moscovich, que brincam com espaços literais e figurados: “Uma vida inteira pela frente. O tiro veio por trás”.

Este, de Edival Lourenço, mistura as pequenas doçuras do cotidiano com eventos grandiosos e espetaculares: “Vestiu os artefatos, beijou o filho com ternura e saiu pro último trabalho sobre a Terra”. Temos um astronauta a se despedir do filho antes de embarcar para fora do planeta, ou temos um homem que sai para trabalhar e ao fim do dia morre na contramão, atrapalhando o tráfego. O Chico Buarque fez, com esta ideia, o seu belo conto-canção, “Construção”.

Kafka dá-nos um soco. E não é à toa que se aplica aqui a frase do Cortázar: um romance vence o leitor por pontos; um conto vence o leitor por nocaute. “2 de agosto: a Alemanha declarou guerra à Rússia. Natação à tarde.” Misturam-se aqui História e histórias — e tanto temos um evento único e irrepetível engolindo com violência uma prosaica atividade diurna, como esta, na sua singeleza, enfraquecendo a violência de uma data que é tudo menos ordinária.

Ocorreu-me agora uma frase que dá título a um romance do escritor Javier Marías. Para ele é o título de seu livro e também uma fala na cena III do ato V de Ricardo III; para mim, um belíssimo nanoconto. “Amanhã, na batalha, pensa em mim.” (Mañana en la batalla piensa en mí.) Quantas histórias, de amor e guerra, haverá aqui dentro? E, pensando apenas na manha da frase, a pergunta essencial: quem estará na batalha?

Talvez toda a literatura seja um inusitado bordado de nanocontos. E, enquanto escrevia isto, pensava: vou deixar para o fim o artefato do Augusto Monterroso — “Quando acordou o dinossauro ainda estava lá” —, o mais badalado nanoconto que há. Por quê? Não sei. Talvez seja pela ausência da única vírgula cabível, ausência que deixa abertas três possibilidades de sintaxe e sentido: quem acordou é um humano ou algum outro ser; quem acordou é o próprio dinossauro; e quem acordou o dinossauro... este “quem” ainda estava lá, diante do dinossauro. Isto sem falar nas interpretações de enredo da teoria da jornada do herói, e estas são muitas.

Mas o que deixo para o fim é este nanoconto de Marcelo Rota: “Morreu”.

Sim, começa e acaba assim. Se fosse: “Nasceu”, o Marcelo ainda teria de matar o personagem, e a coisa iria se alongar muito... E mais não falo, porque há textos sobre os quais nada se pode falar, justamente porque deles tudo se pode falar. Neste “Morreu” cabem todas as histórias já escritas desde que o mundo é mundo e ainda todas por escrever até que o mundo não seja mais mundo.

E, enquanto o mundo ainda é mundo, escrevamos — contos, crônicas, novelas, poesias, dramas e romances. E nanocontos, claro. Só não tentemos escrever nanoposts. Falo por mim, como é óbvio...

*

Fontes:

Alguns contos referidos aqui foram retirados da Revista Bula, coluna de Carlos Willian Leite, “De Kafka a Hemingway: 30 microcontos de até 100 caracteres”acesso 12 ago. 2018.

SHAKESPEARE, Willian, Ricardo III, Edição Ridendo Castigat Mores, trad. Carlos A. Nunes, versão para eBook: EBooksBrasil.com, fonte digital: www.Jahar.org, p. 185, acesso 14 ago. 2018.





1 de agosto de 2018

Uberlândia - Parte 2

                                                                                                                                                        ilustração @karinakuschnir


A Uberlândia é vária — e não existe nada que não exista. Não existem, portanto, os motoristas que não oferecem pasteis de nata. Não existem também os que não recitam versos ou caiam nos fados. E não existem em Santo Amaro os motoristas de Uber que nunca moraram em Massachusetts.

— O senhor Joaquim é português? Tem um jeito de falar diferente...

— Morei anos em Massachusetts, senhor Juva. Anos...

— Ah... Em... — e foi aí que percebi que não conseguia acertar a pronúncia daquilo...

— Massachusetts, senhor Juva.

E ele não foi o único a morar naquele estado. Em dois dias peguei três motoristas que também haviam morado em Massachusetts por pelo menos nove anos. A maluquice não para aí. Nesses dois dias fui perseguido três vezes pelo senhor Nuno, que ainda por cima me acusou a mim de ser eu o perseguidor. Na primeira vez, em Cascais; na segunda, em Santo Amaro; na terceira, em Lisboa. 

— O senhor Juva de novo? O senhor desculpe, mas está a me perseguir...

E o Nuno, na primeira viagem sujeito faladeiro e risonho, passou a terceira viagem em silêncio. Quem, afinal, estava a perseguir quem? E de vez em quando nossos olhares esbarravam pelo retrovisor, mutuamente desconfiados.

E há, claro, os poetas. Há sempre um poeta à espreita na curva de uma ruela lisboeta...

— Senhor Amando Pessoa?

— Senhor Juva? Para onde vamos?

— O senhor Amando pode me chamar somente de Juva. A propósito, que nome interessante o seu...

— Obrigado. Também pode me chamar de Amando. Mas o... Juva falou do meu nome... Não é lá muito fácil uma pessoa chamar-se “Amando Pessoa”, ainda mais em Lisboa...

— É verdade...

— Pois. O Juva percebeu, não é? Além de rimar com “Fernando”, ainda tenho de carregar este “Pessoa” pela vida afora...

— É verdade...

— Não haveria problema se eu fosse médico, advogado, engenheiro, psicólogo, físico ou qualquer coisa, menos... — e ele parou de falar e olhou pra trás.

— Não me diga que o Amando é poeta...

— Pois aí é que está! É muito peso nos ombros, senhor Juva... Digo, Juva. E ainda fiz a besteira de publicar um livro. E as pessoas amigas iam às livrarias e pediam pelo livro de versos do Pessoa. E tinham de explicar aos livreiros, sempre confusos os gajos, que não era o Pessôôôa, mas o Pessoa...

— O Amando...

— Pois. O Amando... Isto é bué desagradável, o Juva imagine... É um fardo... Não tenho ambições nem desejos. Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho. O Juva percebe?

— Seria pior se o Amando se chamasse Fernando...

— E foi por um triz! A minha mãe amava o Fernando, e queria Fernando, mas o meu pai disse que não, que aquilo já era demais, e para agradar à sua senhora sugeriu, como compensação, Amando. O poeta é mesmo um sofredor. Ai, Jesus...

— De fato, é complicado...

— Complicado e triste... Resultado número um: acabei detestando Fernando Pessoa, o que é bué irônico para um sujeito que se chama “Amando Pessoa”...

— De fato, é irônico...

— Resultado número dois: acabei detestando ainda mais o “Amando” do que o “Pessoa”. E hoje só assino “Pessoa”. Mas não sei se foi uma boa ideia... O Juva percebe, não?

— De fato, não foi uma boa ideia...

— Ó, senhor Juva... Já não sei quantas almas tenho... O Fernando destruiu a minha carreira... Já agora... Gostaria de ouvir uns versos meus?


*

Citações e paráfrases de poemas do Pessoa (o Fernando...):

“O guardador de rebanhos”, “Autopsicografia”, “Não sei quantas almas tenho”