Ilustração: Alice Batella |
— Esse ovo não tem pinto.
— Por quê?
— Alguns ovos vêm com pinto dentro, filho, outros ovos não vêm com pinto dentro.
— Por quê?
— Hum... Os ovos que não vêm com pinto dentro é porque o pinto não conseguiu nascer, e isso que você tem no prato é uma coisa que é quase um pinto, mas não é um pinto.
A questão vinha a toda a hora, porque o Juva adorava ovo frito com arroz, e sempre que olhava para a gema do ovo, que sua mãe, a seu pedido, deixava inteira e pronta para ser estourada com a colher, e o caldinho amarelo escorrer sobre o arroz; sempre que ele e a gema viviam esse momento, a questão voltava e ele olhava para a gema tentando entender por que é que aquela coisa amarela não era um pinto amarelo.
O sítio onde moravam era grande, e tinha até galinheiro. Naquele caos que era o galinheiro havia uma galinha velha que já não dava mais ovo. E um dia o Juva perguntou para o caseiro, que era grande e tinha um jeito estranho:
— O que é que vai acontecer com ela, Sartinho?
— Vai pra panela, menino Juva.
— Por que é que ela não pode continuar passeando, sem botar ovo?
— Galinha serve pra botar ovo, menino Juva. Ou ir pra panela...
— Hum... — o Juva desconfiava que servia para mais coisas, mas ficou quieto.
E um dia a tal galinha velha botou, e foram três ovos. A mãe do Juva achou que ali estava uma boa chance de passar à prática toda aquele blábláblá sobre o ovo e a galinha, e foi mostrar ao filho um novo mundo que tinham bem ali, à mão. Quando viram os três ovos da galinha velha na palhinha do galinheiro, fizeram uma festa. E o Juva, quando estava feliz, dava uns pulos desengonçados, e o Sartinho ao seu lado rindo um riso que o Juva nunca entendia...
— Escolhe um — disse a mãe.
— Escolher um pra quê?
— Pra tomar conta. Todo dia a gente vem aqui pra ver se ela ‘tá chocando direito esses ovos.
O Juva escolheu o ovo pequenino, meio amarelo, um com manchas vermelhas, e sua mãe ficou com os outros dois. E não havia dia em que não iam lá, depois do café. Atravessavam o sítio inteiro e entravam no galinheiro para encher o saco da galinha velha e vigiar seus ovos. O Juva já olhava para o seu de maneira diferente. O seu era diferente dos outros dois. Houve uma manhã em que apareceram bem cedo e não viram a galinha velha, só os três ovos. O Juva perguntou pro Sartinho onde é que estava a mãe do seu ovo, mas o Sartinho não respondeu, e riu aquele riso tão difícil de entender.
— Acho que ela foi pra panela — disse o Juva à mãe. — Mas por que é que ela foi pra panela se ela ‘tava botando ovo? Botou três e tudo...
— Ela ‘tava muito velhinha...
— Não era essa explicação que tinha antes...
Agora, mais do que nunca, o Juva tinha de cuidar daquele ovo, porque o pinto que nascesse dali não iria ter mãe nunca.
Uma semana antes de irem de férias para Cruz Alta, para a casa da tia — e lá em sua casa surgir a ideia da tal visita ao pai-de-santo que iria benzer o Juva —, nasceu finalmente, do seu ovo adotado e cheio de manchas vermelhas, a Chimbica, que ficou sendo, a partir dali, a galinha do Juva, que assistiu a tudo desde o início, e prendia, bastante nervoso, a mão da mãe na sua, enquanto viam o ovo rachar com umas bicadas que vinham de dentro e que iam atirando pedaços da casca para fora. Até que dele saiu, todo atrapalhado, o pinto, que o Sartinho, segurando o bichinho com aquelas mãos enormes dele, como duas tábuas, e olhando para o meio das suas perninhas, garantiu que era na verdade uma pintinha — “Isso é mulher, menino Juva” — e que quando crescesse seria então uma galinha. Havia começado a “fase pinto” da Chimbica, que o Juva aproveitou pouco, porque logo em seguida foram para Cruz Alta e ele teve de se separar dela.
Aquilo não foi fácil. A galinha tornou-se a sua alegria. Queria levá-la para a casa da tia, mas sua mãe garantiu que o Sartinho iria cuidar bem da Chimba. O Juva acabou não levando a Chimba, mas não falou de outra coisa a viagem inteira . Tudo era a Chimbica; tudo ele queria “contar” à Chimbica, e não via a hora de voltar para o sítio, para poder “contar” à Chimbica da sua viagem e do pai-de-santo que derramou guaraná na sua cabeça e cantou e dançou. E todos os presentes que ganhou não abriu na hora porque queria abrir na frente da Chimbica, porque a Chimbica era sua e ele era dela. E tudo isso era vivido bem lá dentro, no mais íntimo, porque ninguém de fora, além da mãe, da avó e da babá, entrava no Juva. Ele não era besta.
Depois da longa viagem e de passar o que ele passou com aquele pai-de-santo que derramou guaraná na sua cabeça e cantou e dançou, qual não foi a sua surpresa ao chegar ao sítio e ver a Chimbica já sem ser pinto e com cara e jeito de galinha? Estava diante da maior experiência que até então tinha vivido: ver uma coisa se transformar em outra, sendo ao mesmo tempo a mesma coisa e também uma coisa diferente. Pararam o carro, o Juva estendeu a mão à sua mãe e começou a puxá-la para o galinheiro. Estavam lá, quase como numa festa, outras galinhas, balançando as cabeças para cima e para baixo, e o Sartinho, que sempre aparecia de repente, como se aparecesse do nada, disse, bem atrás, com aquela voz:
— Lá, menino Juva. Lá...
Lá estava a Chimbica, andando de um lado para o outro, histérica, observando tudo, e mexendo a cabeça daquele jeito rápido que têm as galinhas e os passarinhos. O Juva foi para aquela confusão que é um galinheiro, pegou a Chimbica no colo...
— Galinha não se pega assim, menino Juva.
... mas ele pegou assim mesmo, e ela deve ter gostado, porque ficou bem quieta, com o pescoço levantado e olhando para ele com aqueles olhos arregalados que as galinhas têm: que olham sem olhar.
E a partir de então foi como se a Chimbica não saísse mais do seu colo. Nesse mesmo dia em que chegaram de Cruz Alta ela teve, lá pelas tantas, que ser retirada dos braços do moleque, porque era o fim da tarde e era a hora do banho — do banho do Juva; não da Chimbica.
— Mas ela vai ficar sem tomar banho?
O pai chamou a mãe num canto.
— Mulher...
— Fala...
— Vê lá o que é que tu foi inventar...
E a mãe, rindo da pergunta espantada e quase indignada do Juva sobre o banho da galinha, disse ao marido que deixasse o Juvinha viver aquela história, aquele afeto, ela disse mesmo assim — até o fim.
— Mas, querida, o guri não pode se apegar a uma galinha...
Mas ela ria menos da pergunta do garoto e mais da sua alegria de mãe, porque havia tempos ela não o via envolvido com mais alguém que não fosse ela, a avó e a babá. O que ninguém imaginava, nem a mãe, era que este “mais alguém” seria uma galinha.
— E não tem problema ela ir pra minha cama sem tomar banho?
— Cama?! — e o pai levantou os olhos.
— Não vai sujar a cama de noite? É melhor ela tomar banho. Pode tomar banho comigo... Eu dou banho nela.
— Então, filho, você tem que saber que as galinhas não tomam banho, não gostam de água e só podem dormir no galinheiro — disse a mãe, porque o pai não disse nada, e suspirava. — Você de manhã pode ir lá pegar a Chimbica, mas vocês se separam de noite.
Não foi simples, mas ele afinal se convenceu, e passaram a fazer assim: ela era a sua amiga de quase todas as horas, e ele pegava a Chimbica logo que acordava e dava um beijo de boa-noite na cabeça da Chimbica no fim do dia, antes do seu banho, depois de terem passado o dia juntos — o Juva falando, a Chimbica ouvindo; o Juva mostrando o Mundo, a Chimbica olhando para ele com um ar de quem já conhecia o Mundo, ou pelo menos um Mundo. O Juva acabou convencido também de que não seria bom para ela brincar na piscina com ele nem andar a cavalo nem ficar com ele à mesa na hora da comida.
— Será que ela não quer comer o meu ovo frito com arroz porque acha que ‘tá comendo um filhinho?
E quando tinham de ir ao Rio de Janeiro, e iam uma vez por semana, por causa do médico, o Juva ia como iam as crianças, no banco de trás e olhando sempre para a mala. Foi um custo convencerem o pai de que a galinha iria com eles, e também foi um custo o Juvenal convencer o Juva de que seria melhor ela ir na mala de trás...
— Para a galinha, Juva! É melhor para a galinha! — dizia o pai, de saco cheio daquela “chimbiquice” dos demônios. — Assim a galinha pas...
— O nome completo dela é Chimbica, pai...
— Hum... Assim a Chimbica passeia pela mala... Tu entendeu?
E o Juvenal estendia ali panos velhos e, irritado mas se contendo, atirava lá a Chimbica — que ficava no carro enquanto iam ao médico, claro, mas que não ficava no carro, claro, enquanto faziam a visita semanal à avó, para quem o Juva contava tudo e mostrava tudo, principalmente a Chimbica, que permanecia na área de serviço, dentro do tanque, à sua espera, comendo milho e cagando. E crescendo, e engordando.
Cresciam o Juva e a Chimbica, juntos e cúmplices. Conheciam-se tanto que nem precisavam falar e já entendiam tudo um do outro. Seu pai não gostava de ver o guri agarrado a uma galinha e cochichando coisas na orelha de uma galinha. Ele não gostava de ver o guri afogado em muitos afetos, e dependendo de uma galinha para ser mais feliz. Mas o Juva estava afogado, sim, em muitos afetos, e dependendo, sim, de uma galinha para ser mais feliz. Ela o punha para rir, deixava-o solto e fazia-o sentir-se forte — forte porque ele, afinal, sabia cuidar dela melhor do que ninguém, e quem cuida é sempre forte.
Até que mudaram de médico, e não se sabe se foi por causa disso ou se por causa da alegria que lhe dava a Chimbica, mas o fato é que ia melhorando das dores, e já estava bem mais parecido com os meninos da sua idade. No melhor disso tudo, porém, a Chimbica desapareceu. Antes de uma dessas viagens ao Rio o Juva foi ao galinheiro para ver se a Chimbica já estava pronta e arrumada para partir. Tinha dito a ela, antes de dormir, que no dia seguinte iriam para o médico e depois para a casa da avó, e que ela estivesse pronta e arrumada logo cedo.
— A Chimbica? Cadê? — perguntou pro Sartinho, que estava passando e olhando pro nada, mas não ouviu, ou não quis ouvir.
O Juva entrou no galinheiro, chamou, berrou, mas ela não aparecia de canto algum. Ouviu os gritos do seu pai e teve de ir correndo pro carro, e já foi correndo com os olhos úmidos. Quando chegou perto estava o Sartinho apoiado na porta, com uma cara esquisita e conversando com o pai. E então olhou para o Juva meio que sem olhar, terminou de ouvir as ordens do patrão, abaixou a cabeça e se afastou.
A mãe do Juva, durante a viagem, fez de tudo para o animar, mas como é que ela podia animá-lo se ele também estava indo para o médico, uma coisa sempre ruim, e ainda mais sem a Chimbica? E todo aquele dia estranho, o médico, as injeções e a sua ansiedade, até mesmo a visita à avó, tudo deve ter deixado o Juva muito baqueado, porque dormiu toda a viagem de volta, e quando chegaram ao sítio, já anoitecendo, foi carregado direto para a cama. Quando acordou no dia seguinte a sensação era a de que não via a Chimbica há semanas.
Não viu a Chimbica nunca mais, embora tenha procurado por ela sem parar, e por dias e dias. Não se conformava. O pai tentou fazer com que ele se afeiçoasse ao Guru, um cão fila horroroso e com cara de bunda, mas o Guru, apesar de bem manso quando o Juva chegava perto, era brutalhão. A mãe providenciou uma outra história com um outro pinto, chegou a lhe dar nome, mas o Juva nem de tocar nele teve vontade. De vez em quando, no meio de alguma coisa, um almoço, um jantar, uma festa, ou no meio de coisa nenhuma, ele parava de repente, jogava os olhos para cima e sorria, lembrando-se de um lugar ali do sítio em que ainda não tinha procurado pela Chimbica, e saía correndo feito um doido, o coração acelerado e gritando por ela.
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Alice Batella