19 de setembro de 2008

"Ulisses: uma temporada no inferno"

Andei lendo bastantes livros ultimamente, procurando nos livros um bocado da ação e da aventura que não encontro lá tanto assim aqui em Santo Amaro... E das coisas mais gostosas que há no mundo é terminar um livro e sair andando pela biblioteca da casa à procura do próximo. Fico às vezes um ou dois dias nessa procura, excitadinho, como um menino que acabou de aprender a ler. Vou folheando alguns e dizendo para mim mesmo e para ele, o folheado: “Não, ainda não é o momento para ti, talvez algum dia, quem sabe...”. E recoloco-o no lugar, o preterido, para partir em busca de um outro, com o qual flerto com simpatia, uma simpatia tamanha que quase vejo o livro alvoroçar-se na estante, à espera de ser ele o próximo escolhido, de ser ele a sair daquele aperto cruel da prateleira, cada vez mais apertada, e gozar da liberdade de andar por aí por Santo Amaro, carregado por mim para lá e para cá, acompanhando-me por alguns dias, ora no meu colo, ora na minha mesa, ora no meu carro, ora na rede da minha varanda — aquele que irá, de certeza, toda noite para a cama comigo.

Fiz todo esse caminho de flertar com as estantes, fazer a minha escolha e iniciar com um livro um relacionamento estável (leia-se: ler a criatura de cabo a rabo) em cima dos seguintes títulos, ao longo de 2007: Pelos olhos de Maisie, do Henry James; Bouvard e Pécuchet, do Flaubert; Sábado, do Ian McEwen; Complexo de Portnoy, do Philip Roth; A cidade e as serras, do Eça de Queirós: e Ulisses, do James Joyce. Tenho de me conter porque senão falo de todos — não uma crítica literária coesa, coerente, redondinha, enfim (tarefa assaz trabalhosa), mas uma conversa de mesa de jantar, cheia de “achei isto”, “achei aquilo”, “não gostei disto”, “não gostei daquilo”.

O ritmo de leitura até que não estava mal. Mas quando peguei no Ulisses foi como se o peso às minhas costas duplicasse e a velocidade, assim, caísse. Carregar aquelas 815 páginas para todo canto já foi uma tarefa. Lê-lo foi como deambular pelo inferno com os olhos vendados. A culpa foi da minha mulher, que me disse, justamente quando estava eu nesses passeiozinhos de prateleira e calhou-me de retirar do aperto da letra “J” o famosíssimo e aclamadíssimo romance, do qual, como disse o T. S. Eliot, “jamais escaparemos”. Eu disse ao livro: “Um dia ainda te pego...”, e olhei para ela, que me disse: “Acho que já são horas. És um escritor, és um doutor em Literatura, já são mesmo horas de pegares o Ulisses...”.

Aquilo foi, e ela sabe disso, um desafio. E eu, para impressionar a minha mulher (não se deve perder uma única oportunidade de impressionar uma mulher), disse, valentão: “Está certo. Vou iniciar esta viagem”. Sentei-me e abri a primeira página, excitadíssimo porque eu sabia que iria até o fim e não faria como das outras vezes, em que o abri, li a primeira página, soltei uma risadinha e voltei a fechá-lo, dizendo para mim mesmo: “Não, isto não é para o seu bico...”. Não foi o bico que cresceu; foi o destemor, ou, em outras palavras, foi o livro que diminuiu. Tive de o diminuir, retirando-lhe todo aquele caráter assustador e glorioso.

A tarefa durou sete meses, da primeira à última página. Mas eu, que não sou bobo, entrei no livro munido de algumas armas: as notas explicativas da professora Bernardina, a tradutora; um livro do Nabokov, Aulas de literatura, em que dedica umas boas cem páginas ao Ulisses; um livro do crítico Edmundo Wilson, O castelo de Axel, em que também dedica páginas e páginas a tentar amolecer e domesticar o livro, e mais um sem-número de artigos colhidos na internet. Tenho aqui no blogue, ao lado, um link (Ulysses for Dummies) dedicado ao Ulisses.

Terminei-o enfim, e confesso duas coisas: que houve momentos (vários), em que achei aquilo a coisa mais chata do mundo; e outros (raros, mas de uma intensidade literária total), em que o considerei único, dizendo a mim mesmo que nunca na vida iria encontrar espécime sequer semelhante. Mas por que é que o li? Antes de tudo por se tratar de um fetiche. Depois, por uma questão de curiosidade literária. Este livro está em todas as listas que se fazem dos melhores livros de todos os tempos. Não sei quanto dura este “de todos os tempos”, porque hoje em dia há livros escritos com desconcertante originalidade, não apenas temática mas formal. Gostaria de voltar e esse assunto do Ulisses, com mais vagar. Li-o, afinal, pensando em colocar aqui no blogue algumas coisas ótimas. Li-o como se deve ler um livro de que se gosta: com uma caneta na mão para fazer frente à borracha da memória.