17 de outubro de 2012

“A categoria do humor categórico de Campos de Carvalho” - "XIII Congresso da Sociedade Internacional para o Estudo do Humor Luso-Hispânico"

"XIII Congresso da Sociedade Internacional para o Estudo do Humor Luso-Hispânico"
17 a 19 de Outubro de 2012, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL).
Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

- Dia 17: “Evento Cultural - Mesa do CLEPUL, coordenada pelo seu Diretor”.
Apresentação de livros pelos autores Carmen Lobato (México), Onésimo Teotónio Almeida (Portugal/Estados Unidos da América), Beatriz Weigert (Brasil/Portugal), Conceição Pereira (Portugal), Juva Batella (curta dramatização).

- Dia 18: “Loucura, Nonsense e Surrealismos”.
Moderador: Maria do Carmo Cardoso Mendes (Universidade do Minho, Braga).
Com: Sofia Santos, Conceição Pereira, Rui Sousa, Juva Batella (todos do CLEPUL, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa).


"A categoria do humor categórico de Campos de Carvalho"

Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL)
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

“Eu deixei de escrever porque deixei. Deixei passar o tempo, 10 anos, 15 anos, 25 anos. Depois de 25 anos comecei a compreender que era esquecido.” Isto disse Walter Campos de Carvalho em sua última entrevista.[1] Disse que, para ele, a Bulgária continuava não existindo, “ao contrário do Estado do Piauí, por exemplo, que existe, e é um estado sofrido. A Bulgária é uma imaginação que eu tive”. Disse que ultimamente só fazia procurar aquilo que nunca precisou encontrar: o humor — “A solução é o humor”. Disse, em 1961, que o grande embaraço da literatura brasileira é a língua — “mais hermética que o mais hermético dos túmulos, quase tão desconhecida quanto o sânscrito ou o volapuque” —, e Machado de Assis, o seu grande engano — “considero Machado e seus asseclas o oposto da verdadeira literatura”. Disse que já viu o diabo, “há coisa de nove anos, aqui no Rio de Janeiro mesmo, dentro do meu quarto, às quatro horas da manhã. Não foi sonho nem alucinação, foi visão mesmo (...). Ele se limitou a fitar-me por alguns instantes, todo de preto, os olhos que eram uma maravilha: encostado à parede, perfeitamente visível na escuridão. Meu coração bateu um pouco mais forte e foi só”. Alega ter nascido em 1916, na cidade de Uberaba, em Minas Gerais, no Brasil, no dia 1º de novembro, “em plena Guerra Mundial, a primeira, num dia de Todos os Santos, a um passo do Dia de Finados. Isso explica em parte um antibelicismo, minha profunda irreligiosidade e meu pendor pelo macabro e o trágico. Local do nascimento: aquele mesmo, e de todos”. Disse que aos dezoito anos achava Marx bárbaro — “Aos trinta, (...) acabei descobrindo que cada um tem o Marx que merece. Os meus chamavam-se Groucho, Harpo e Chico”. Disse que não gosta de se considerar um autor trágico; disse que era mais fácil ele próprio existir do que Deus; “disse”, no período de 1956 a 1964, quatro romances considerados geniais, e depois não disse mais nada. Permaneceu em silêncio literário por mais de três décadas e afinal morreu, aos 82 anos, no meio de uma Semana Santa.

Raras são as histórias da literatura brasileira que falam das histórias de Campos de Carvalho, raras as antologias em que toma parte, raras as monografias, dissertações e teses. O leitor médio não o conhece, o estudante de letras mal o conhece, as livrarias não o possuem, e poucos são os alfarrábios que conseguem escondê-lo por algum tempo — o bastante para que um aficionado colecionador, tão raro quanto o exemplar que cobiça, finalmente o descubra e o leve embora para sempre. Trata-se, sim, de um marco — mas do qual não se falava há mais de trinta anos.

Durante seu decênio produtivo, 1954 a 1964, Campos de Carvalho fez sucesso e publicou por duas editoras fundamentais dentro da história editorial brasileira: José Olympio e Civilização Brasileira. Falaremos aqui de dois dos quatro que publicou: a lua vem da ásia, publicado em 1956 e que conta a história de um sujeito que se julga o hóspede de um hotel de luxo, depois o prisioneiro de um campo de trabalhos forçados, para finalmente percebermos tratar-se do interno de um hospício; e o púcaro búlgaro, seu último trabalho, de 1964, onde a tónica é o humor levado a sério, às últimas consequências, através de um grupo de esquisitos reunidos num apartamento e envolvidos na organização de uma expedição à Bulgária com vistas a verificar a sua real existência.

A importância e a atualidade da literatura de Campos de Carvalho têm residência fixa justamente em sua capacidade de representar uma crise de representação — a partir de seu núcleo: o sujeito em crise que se revolta e decide falar. Sua fala, o tempo inteiro confessional, é uma fala do contra: contra a sociedade que o esmaga, as instituições que o emparedam, a psicologia que o normaliza, a linguagem que o ensurdece e cala.

a lua vem da ásia, primeiro romance do escritor, foi o responsável por sua entrada nos salões da literatura brasileira. Chamaram-no, à época da primeira edição (1956), louco, imoral, debochado e satânico. “Há quem me tome por louco e eu mesmo já me tomei”, disse Campos de Carvalho. “Mas basta uma visita ao hospício para me convencer — desgraçadamente — do contrário. É como se fosse um lobo vestido com a pele de um cordeiro: expulsam-me só pelo faro.”

Chico Buarque de Holanda considera a lua vem da ásia seu livro mais contundente; o cineasta brasileiro Glauber Rocha o chamou “a diarreia Campos de Carvalho”; o crítico Antonio Olinto o saudou como “desconcertante”; para André Laude, da revista Nouvelles Littéraires, o livro é “manifestamente um escrito subversivo, inclassificável, irrecuperável”.

O primeiro parágrafo da lua vem da ásia, de todos os que Campos de Carvalho escreveu, é dos mais citados por toda a imprensa. “Aos dezesseis anos matei meu professor de lógica, invocando a legítima defesa.”[2] Mais adiante, aos vinte, a venda de sua alma ao diabo. O crime aos dezesseis anos marca o ingresso do narrador-personagem na independência intelectual que o caracteriza. Adilson, ou Astrogildo, nosso narrador-terrorista, ou matava o professor ou este o matava com a sua “lógica”. Eliminados ambos, estamos prontos, narrador-personagem e nós, leitores-ouvintes, para a entrada numa espécie de novo mundo, de cujo tom dão conta as duas frases que seguem: “... e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris”.

A cidade imaginária é Paris, o rio é o Sena — e a moradia, uma ponte, não poderia ser mais romântica. O poeta fuma sob o céu estrelado e, como ainda é imberbe, deixa crescer-lhe a barba, sim, mas em pensamento. Em seguida morre “tranquilamente, dentro da noite calma”. Quando acorda, um gari estende-lhe o último jornal da tarde, onde lê a respeito de uma hecatombe sobre a cidade de Melbourne. Adilson, ou Heitor, lava o rosto com o próprio pranto, entrega seu jornal a um menino cego e sai mundo afora — “até deparar com a estátua do marechal Joffre montado a cavalo”. Como o dia seguinte é de guerra, apresenta-se a um general de divisão que lá estava a passear no Bois de Boulogne e recebe dele uma corneta e cinco mil francos destinados a um uniforme — “Com a corneta toquei o Danúbio azul (...), e com os cinco mil francos fui a uma sessão de cinema”. Acaba preso como espião moscovita — “por causa de minhas barbas patriarcais e malcheirosas” — e submetido a um “conselho de guerra composto de 15 mil generais, todos eles fardados”. Inocentado, volta a perambular e a dormir sob as pontes europeias — “Foi por essa época que aprendi a tocar berimbau com um professor do Conservatório de Varsóvia, herr Hepsteimm, e quando também resolvi fazer a minha primeira comunhão, por absoluto estado de fome”. Nomeou-se, em seguida, conselheiro musical na corte de Luís II da Baviera.

Ao longo de sua atribulada vida e de suas inenarráveis viagens, ocupou incontáveis cargos, trabalhou em todos os ofícios e naturalizou-se cidadão em cada ínfimo canto do mundo, nada encontrando que se ajustasse ao seu “temperamento profundamente humano”. De espião moscovita, conselheiro musical na corte de Luís II da Baviera, coveiro na Bolívia, professor de natação na Beira, poeta futurista, caçador de elefantes na África Equatorial Francesa, tradutor de Virgílio para o alemão, filho bastardo do rei dos belgas e negociante de falsos diamantes, a traficante de cocaína em Coimbra, sacristão no Ceará, autor do Tratado da Desesperação Metafísica e membro-fundador do Partido Anarquista Nacional.

Campos de Carvalho acerca-nos do que pode haver de mais estranho no comportamento humano: a loucura do outro. Basta ouvirmos as frases de Heitor, ou Ruy Barbo, para nos convencermos disso. Em seguida, quando já se está suficientemente convencido, quando não há mais dúvidas de que estamos diante do relato de um louco e somos, ou assim gostaríamos de ser, diferentes dele, esta mesma loucura passa então a fazer parte, de algum modo, da realidade de nossa própria razão.

Quando conta retrospetivamente, Ruy Barbo, ou Astrogildo, rememora suas grandes viagens por todos os reinos do mundo. Aos dois enfoques, o retrospectivo e o presente, corresponde a divisão do livro em duas partes. Na primeira, intitulada “A vida sexual dos perus”, são descritos os seus grandes périplos. A segunda parte, “Cosmogonia”, descreve a fuga do manicômio e a entrada no mundo — um manicômio bem maior.

A partir de então não haverá mais viagens, mas uma única viagem rumo ao fim. É justamente em seu período de total imobilidade, preso naquele “hotel de luxo”, que Astrogildo, ou Adilson, mais se desloca. E seu deslocamento é obsedante, geográfica e historicamente.

“. Indo em peregrinação a Meca, (...) tive que atravessar às pressas o não sei por que chamado mar Vermelho, que me pareceu tão azul quanto o mar Negro ou o mar Amarelo (...). De Meca transportei-me, puro já de alma, para a próspera cidade de Medina, onde comprei metade da Arábia a um alto membro do governo que depois eu vim a saber ser tão árabe e tão membro do governo quanto eu mesmo (...). Reduzido a 15 milhões de arabescos, fugi de bicicleta para Damasco, onde apanhei o tifo (...).

. (...) Deportado para a Groenlândia num cargueiro que transportava 20 toneladas de alfinetes de cabeça e um pequeno elefante, ali vivi.” (Grifamos.)

Ao fim, mata-se. “O certo mesmo seria chamar a este meu suicídio de homicídio, já que em mim eu mato o homem que não me agrada e não o meu eu verdadeiro, que é até simpático.” “Aos dezesseis anos matei meu professor de lógica”, confessa Heitor, ou Ruy Barbo, logo à primeira frase do romance de Campos de Carvalho, antecipando o que nos espera.

Este diário de viagem, esta “peça” literária insólita e disparatada chamada o púcaro búlgaro, significará o término de um itinerário de angústias, através de uma espécie de redenção pelo humor. O diário do narrador-expedicionário Hilário limita-se ao registro do dia-a-dia do que seriam os preparativos para a sua expedição particularíssima à Bulgária. O texto detecta a existência de um problema aparentemente insolúvel: a dúvida “em torno dessa mirífica e cada vez mais nebulosa disputa geográfica: ou, para dizer com mais exatidão, em torno desse espanto geonomástico, como tão bem definiu um famoso historiador búlgaro”: a existência ou não da Bulgária e, consequentemente, dos búlgaros. Segue agora a descrição sumária da razão de ser de todo o diário:

No verão de 1958 o autor visitava tranquilamente o Museu Histórico e Geográfico de Filadélfia quando, ao voltar-se um pouco para a direita, avistou de repente um púcaro búlgaro. A impressão causada pelo estranho acontecimento foi tamanha que no dia seguinte ele embarcava de volta no primeiro avião, deixando a mulher no hotel sem dinheiro ao menos para pagar as despesas. (Grifamos.)

o púcaro búlgaro entra aqui de modo exemplar, porque realiza um duplo jogo surrealista. No nível estético, desbanaliza a linguagem, retirando-lhe os seus ranços e os seus lugares comuns, a sua previsibilidade e a sua acomodação. No nível existencial, apresenta um mundo ocupado por personagens que amanhecem e anoitecem inteiramente surrealistas — em todos os seus atos e pensamentos veem e fazem um mundo surrealista, regido pela credibilidade do sonho e pela vontade férrea de ver a realidade a cada momento com olhos livres.

Radamés Stepanovicinsky é, de todos os personagens, o que melhor se poderia definir como um “homem de espírito”, na aceção que lhe emprega Bergson em seu famoso estudo sobre o riso. O espírito num homem é a sua capacidade de pensar com dramaticidade, fazendo das ideias coisas que se veem, ouvem e manejam. Em sentido estrito, será a porção de comédia que um homem põe em movimento através de seus atos e, principalmente, de suas palavras.

Ri-se, mas não se sabe exatamente de quê, e esta intangibilidade daquilo que nos faz rir é o ponto de partida do estudo de Bergson. A inconsciência da própria comicidade é, em geral, uma das mais eficientes características da comicidade, e a imagem clássica da risada geral contraposta ao silêncio de uma só criatura de quem todos riem pode ser facilmente repassada: o cômico sério, e cada vez mais sério, à medida que os seus disparates se vão tornando progressivamente mais engraçados e seu semblante mais e mais fechado.

Não há no púcaro búlgaro um só personagem que ria. A seriedade é geral e crescente diante do solene projeto que têm à mão os expedicionários, sob a chefia do professor Radamés. A atitude compenetrada de todos diante de uma empreitada que, logo ao início se percebe, não dará em nada é em si mesma uma fonte inesgotável de riso, por duas razões, a serem identificadas na teoria da comicidade de Bergson.

A primeira reside na mecanicidade, e é dela uma consequência: é próprio dos mecanismos ser reversível. Situações onde a reversibilidade é a mola produzem riso, diz Bergson, e elenca inúmeros casos, entre eles o do marido angustiado que “acredita escapar de sua mulher e da sogra pelo divórcio. Casa-se de novo; e as tramas combinadas do divórcio e do casamento acabam levando-o à antiga mulher, mas em situação mais grave, pois agora ela é sua sogra”.[3] Um exemplo de reversibilidade, não sobre uma série de acontecimentos, mas sobre a superfície da linguagem:

“— Professor, como se explica que até mendigo hoje tenha rádio transístor?
— Não é o mendigo que já tem transístor, e sim o transístor que já tem o seu mendigo — respondeu Radamés, como sempre meio nebuloso.
— Então, como o sr. explica que, hoje, qualquer transístor já tenha o seu mendigo?”

Uma das consequências da reversibilidade é a nulidade do resultado. Para Herbert Spencer, “o riso seria indício de um esforço que depara de súbito com o vazio”. Para Kant, “o riso advém de uma espera que dá subitamente em nada”.[4] De nada adiantou casar-se, como de nada adiantará reunirem-se os candidatos à expedição à Bulgária, porque não haverá Bulgária alguma, quanto menos expedição, que esta, no máximo, terá lugar no próprio apartamento do narrador, assim como magistralmente o fez Xavier de Maistre.

A segunda razão alimenta-se da solenidade com que todos tratam da questão búlgara — uma solenidade que, contraposta à nulidade do resultado e à pequenez do projeto, produz riso. Esta solenidade artificial, que Bergson chama de exagero, aliada ao seu oposto, a degradação, fazem ambas parte de uma das três leis básicas da teoria da comicidade: interessa-nos aqui a transposição, que nada mais é que o deslocamento de ideias e expressões de um lugar para outro, criando assim um estranhamento qualquer: “Falar das pequenas coisas como se fossem grandes é, de modo geral, exagerar. O exagero é cômico quando é prolongado e sobretudo quando é sistemático (...)”.[5]

Toda a tríplice introdução ao púcaro búlgaro: a solenidade das palavras, entrevista no discurso em terceira pessoa com ares cientificistas; a carta ao diretor do Museu de Filadélfia; as notas de pé de página do Editor; tudo isso entrecortado por toda a sorte de disparates, são um exemplo exato deste recurso cômico.


“Isso me lembra um incunábulo que vi certa vez na Biblioteca do Vaticano, do século XIII ou XIV se não me engano, e que trazia este título (em latim) bastante sugestivo: “no que pensam os adolescentes quando não estão pensando no sexo”. Suas quatrocentas e tantas páginas vinham em branco naturalmente, um pouco amarelecidas pelo tempo, e só no final se lia a advertência finis, em belas letras góticas. Propus a tradução de obra tão erudita a um editor de Florença, mas como ele não concordasse em suprimir aquele tópico final, que me parecia uma excrescência, a ideia não foi avante.[6]

Tanto o trecho acima quanto a sua respectiva nota se encaixam ao mesmo tempo nos dois processos mencionados por Bergson — por degradação e por exagero. Se considerarmos verídicas certas informações históricas, tais como a existência do humanista florentino Niccolo de Niccoli, da Biblioteca do Vaticano, e do próprio Vaticano, está a narrativa circundante a degradar instituições e pessoas, misturando-as com assuntos de sexologia barata e, assim, produzindo riso. Neste caso o solene desce de nível e se encontra com o familiar (o sexo dos adolescentes).

Se, ao contrário, partirmos do princípio de que todo o trecho pode ser uma grande invenção, acabaremos por ficcionalizar todo o universo da narrativa e assim encontrar elementos solenes criados com o objetivo de revestir de importância papal, humanista, editorial, bibliotecária e histórica os conteúdos mentais constantes dos adolescentes de todos os tempos, que agora sobem de nível, ao encontro de uma importância que antes não tinham.

“Rosa:
— Está aí fora um sujeito que diz que não existe.
— Mande entrar assim mesmo.
Era um sujeito franzino, raquítico, como se de fato não existisse; mas ainda assim dava para enxergar.
— Chamo-me (...) Fulano C. Meireles. Esse C. até hoje não consegui descobrir o que seja.
— Sente-se.
— Não sei se o sr. sabe, mas em 1585 o papa Gregório XIII decidiu que o dia seguinte a 4 de outubro de 1582 passaria a ser 15 de outubro de 1582 — parece que para acertar um calendário qualquer. (...) Pois bem, os avós dos meus avós (...) nasceram exatamente entre 5 e 14 daquele ano (...). Eu até que, antes de descobrir esse fato, era um halterofilista razoável, com várias medalhas no peito (...). Quando descobri que não existia, perdi todo interesse de existir (...).
— Lamento muito a sua inexistência” [p. 348-349].

Ao lado do movimento rígido e mecânico de fisionomias e gestos cômicos, há na linguagem a rigidez da frase feita, que, uma vez rasgada por uma ideia absurda, a instaurar então uma coexistência dentro da mesma frase, produz riso. Bergson diz: “Obtém-se um efeito cômico quando se toma uma expressão no sentido próprio, enquanto era empregada no sentido figurado”.[7] o púcaro búlgaro presta-se por inteiro como exemplo.

“... e entrei sorrateiramente no quarto de Rosa, que dormia a sono solto. Prendi-lhe o sono entre as mãos, entre os braços, e depois entre as pernas.
Chegou o professor Radamés, com mala e tudo.
— Vi que o sr. morava sozinho e resolvi vir morar sozinho com o senhor.
— Só que há a Rosa, que também mora sozinha. Assim seremos três a morar sozinhos.”

Campos de Carvalho vai reproduzir no púcaro búlgaro o mesmo artifício cômico amplamente utilizado em a lua vem da ásia: a compulsão geográfica. Tanto o louco Adilson, ou Heitor — preso em seu hotel de luxo ou campo de concentração —, quanto o expedicionário Hilário, o professor Radamés e toda a bulgarófila trupe, mantêm contrapostas duas atitudes: a vertiginosa mobilidade de seus espíritos, observada ao longo de seus mirabolantes roteiros de viagem, e a exasperante imobilidade de seus corpos. Em ambos os livros, o mundo inteiro à disposição e onipresente. Um mundo, porém, diferente.

As narrativas da lua vem da ásia e do púcaro búlgaro dispõem dos mapas-múndi refazendo-os, e nesta “refazenda” do mundo refazem-se a si mesmos, já que não conseguem mover-se. A lua virá da Ásia ou da Bulgária, e a Ásia, como a Bulgária, pode ser encontrada em qualquer ponto do globo, desde que se crie um roteiro, seja ela qual for — “... até um náufrago agarrado à sua tábua poderia vir a descobrir a Bulgária, desde que, condição sine qua non, a Bulgária lhe aparecesse pela frente”.

O roteiro proposto pelo professor Radamés Stepanovicinsky, escrito em “um papel minúsculo, do tamanho de uma unha se tanto”, colocado com solenidade sobre uma mesa e lido atentamente com uma lupa, assemelha-se aos melhores momentos de viagem de Astrolgildo, ou Heitor, ou Ruy Barbo.

“— Eu (...) pretendia de início partir de Mar de Espanha, o suntuoso porto de Minas Gerais. Mas como, em lá chegando, constatei que aquilo não era nem nunca fora Espanha, nem tinha qualquer mar à vista, desisti do intento. Assim, partiremos mesmo de Niterói (...).

De Niterói tomaremos o rumo das Canárias (...) — engolfaremos pelo Golfo Pérsico, atingiremos (...) o mar Egeu, e costearemos (...) o litoral da Líbia. Após (...) uma lauta refeição, zarparemos de novo em direção às quedas de Massassa e (...) ao mar de Barents, quando (...) contornaremos a Groenlândia e chegaremos ao planalto Tibetano (...). Após uma copiosa refeição enfrentaremos o monte Erebus, a Tasmânia, a Trácia e, de certo modo, também o Transvaal. (...) Às dez horas do dia seguinte enfrentaremos um terrível furacão, como sempre que se realiza a travessia do equador — após o que passaremos ao largo de Constantinopla e (...) rumaremos imediatamente para o lago Tanganyika (...). Comidos e pernoitados, entraremos no Danúbio, avistaremos a Iugoslávia, a Romênia (...) e, pondo fogo nas velas do navio para poder enxergar o mar Negro, iremos fazer uma visita ao sultão de Istambul (...). Pegando o rio Jequitinhonha, (...), velejaremos (...) na direção onde muito provavelmente deverão estar Araraquara, Pindamonhangaba, Santa Rita de Passa Quatro e Belo Horizonte — o que significa que estaremos a um passo de Niterói e consequentemente de nossas casas. Cumprido esse périplo, se não tivermos avistado nenhuma Bulgária é porque a Bulgária não existe mesmo ou então somos nós que não existimos (...).”

Campos de Carvalho foi um terrorista; sua literatura, parte essencial de um projeto terrorista de renovação da linguagem e de libertação do homem. Se está hoje a um passo de entrar para as nossas estantes canónicas, isto não significa que não possamos lê-lo como se estivéssemos nós na pele de seus primeiros e assustados leitores.

Bibliografia

BERGSON, Henri, O riso — Ensaio sobre a significação do cômico, 2ª ed., Rio de Janeiro, Brasil, Guanabara, 1987.

CARVALHO, Campos de, Obra reunida — A lua vem da Ásia, Vaca de nariz sutil, A chuva imóvel, O púcaro búlgaro, Rio de Janeiro, Brasil, José Olympio, 1995.

COMODO, Roberto, “Silêncio rompido — Após 30 anos longe das livrarias, quatro romances cultuados de Campos de Carvalho são relançados”, Revista IstoÉ, Livros, Brasil, 12 abr. 1995. (Entrevista)

ENEIDA, “Campos de Carvalho”, in __________, Romancistas também personagens — Letras Brasileiras, São Paulo, Brasil, Cultrix, 1961. (Entrevista)

LAUDE, André, “Campos de Carvalho — Délire contre délire”. Nouvelles Littéraires, 1º abr., França, 1976.

PIRES, Paulo Roberto, “A paixão anarquista da liberdade — O cultuado Campos de Carvalho tem editada ‘Obra Reunida’ 30 anos depois de abandonar a literatura”, O Globo, Rio de Janeiro, Brasil, Segundo Caderno, sábado, 8 abr. 1995. (Entrevista)

PRATA, Antonio & COHN, Sergio, “Campos de Carvalho”, Revista Azougue, Brasil, s/d. (Entrevista)

PRATA, Antonio, “Não gosto de mim trágico”, O Estado de S. Paulo, São Paulo, Brasil, Caderno 2, sábado, 11 abr. 1998. (Entrevista)

SILVESTRE, Edney Célio, “Este homem é um maldito — Há quem o considere o fenômeno mais importante das artes no Brasil. A cultura oficial, entretanto, ignora-o. Os críticos temem escrever a seu respeito. Os leitores o consideram um louco, mas seus livros estão esgotados. O que vem a ser um marginal dentro da cultura brasileira?”. O Cruzeiro, Brasil, 30 out. 1969. (Entrevista)





[1] Este texto reunirá muitos trechos de entrevistas. Para evitarmos tantas notas de rodapé, a relação das fontes encontra-se na Bibliografia ao final.
[2] Também para evitar tantas notas, não detalharemos aqui as referências bibliográficas dos dois livros de Campos de Carvalho citados, A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro, listados ao final.
[3] BERGSON, Henri. “Comicidade de situações e comicidade de palavras”. In: _____. O riso — Ensaio sobre a significação do cômico. 2ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, p. 49.
[4] Citados ambos por BERGSON, Ibid.
[5] Id., p. 67.
[6] “O título exato da obra, atribuída ao célebre humanista florentino Niccolo de Niccoli, é: ‘Aquilo em que, 60 minutos por hora, 24 horas por dia, 30 dias por mês e 12 meses por ano pensam os adolescentes, as crianças e as criancinhas quando não estão pensando no sexo’. Existem pelo menos duas traduções conhecidas, uma para o venezuelano e a outra para o volapuque, sendo esta última bastante incompleta, sem o título e a advertência final. (Nota do Editor.)”
[7] BERGSON, “Comicidade de situações e comicidade de palavras”, op. cit., p. 62.

16 de outubro de 2012

"Uma homenagem à Língua Portuguesa"



17 a 19 de Outubro de 2012, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL); Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.


Juva Batella apresenta uma dramatização que tem como tema "Uma homenagem à Língua Portuguesa".

1 de outubro de 2012

“Diante do espelho”

9. “Diante do espelho”, Revista Lilica and Tigor, São Paulo, out. 2012 (data aproximada).

A vida é uma coisa que vai acontecendo aos poucos, tim-tim por tim-tim, mas às vezes não é bem assim. O programa em si, apesar de aguardado e vivido como “dia especial”, foi bem prosaico. Dizem, no entanto, que é no vai e vem das ondas desse ir e vir cotidiano que se desvelam as cenas que nos transformam – aquelas que depois, e somente depois, revelam o quanto estávamos a vivenciar, exatamente, o que se chama “a divisão das águas”.

Eu estava desde o café da manhã com a música “O xote das meninas” (Luiz Gonzaga & Zé Dantas, 1953) rebolando dentro da minha cabeça; na verdade, com uma das duas deliciosas interpretações da Marisa Monte, e em especial os primeiros versos: “Mandacaru/ Quando fulora na seca/ É o siná que a chuva chega/ No sertão/ Toda menina que enjoa/ Da boneca/ É siná que o amor/ Já chegou no coração.../ Meia comprida/ Não quer mais sapato baixo/ Vestido bem cintado/ Não quer mais vestir timão...”.

E, a partir do meio da manhã, pensando já no tal programa: o almoço com a minha filha Alice (a Pipoca), com quase 10 anos de idade, e um amigo do coração, que, além de amigo do coração, vem a ser o padrinho da miúda.

Trata-se de um rito: sempre que saímos de Lisboa e vamos para o Rio de Janeiro, reservamos um dia especial para esse prosaico almoço especial, e após o programa a três acontece o programa a dois, que significa um passeio do padrinho com a afilhada, por várias lojas e sem qualquer pressa, para que ele lhe dê, a ela, um presente ao vivo, ali na hora, e por ela escolhido — o presente do padrinho. Assim fazemos há uns anos. Eu acompanho a dupla, mas de longe e proibido de dar pitacos, impedido de me meter: um assunto lá deles, um momento de afeto, intimidade e delicadeza. Às vezes entro numa livraria para sair do mundo. E assim fiz dessa vez, esquecido da vida, metido nas páginas e sem conseguir parar de cantarolar que toda menina que enjoa da boneca é sinal de que o amor já chegou ao coração…

E chegaram os dois à livraria, uma hora depois e com o presente escolhido, comprado e dado. Foi então que percebi o quanto ele estava emocionado; o quanto desejava compartilhar comigo o que viu e sentiu quando a viu e a sentiu, a ela, Alice, diferente e mais mulher (ou mais menina), a escolher enfim o seu presente, que não era uma boneca, como sempre foi, mas algo diferente; e não era apontando o dedo e gritando “Quero esta!”, como sempre foi, mas quieta e concentrada, a passear os dedos tamborilantes entre as saias e os vestidos dependurados; retirando em silêncio as peças prováveis dos cabides; colocando-as à sua frente, também em silêncio, num ensaio de experimentação que incluía virar-se de lado, de frente, de costas, aproximando-se e afastando-se do espelho, num ritmado ir e vir, num atento, lento e intimista mirar-se a si mesma e vendo, não mais a menina-criança que antes víamos, pai e padrinho, mas a menina-mulher que passamos a ver, transformada, diante do espelho.

— E… — disse eu ao padrinho — não há um só remédio em toda a medicina... Ainda bem.