"XIII Congresso da Sociedade Internacional para o Estudo do Humor Luso-Hispânico"
17 a 19 de Outubro de 2012, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL).
Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
- Dia 17: “Evento Cultural - Mesa do CLEPUL, coordenada pelo seu Diretor”.
Apresentação de livros pelos autores Carmen Lobato (México), Onésimo Teotónio Almeida (Portugal/Estados Unidos da América), Beatriz Weigert (Brasil/Portugal), Conceição Pereira (Portugal), Juva Batella (curta dramatização).
- Dia 18: “Loucura, Nonsense e Surrealismos”.
Moderador: Maria do Carmo Cardoso Mendes (Universidade do Minho, Braga).
Com: Sofia Santos, Conceição Pereira, Rui Sousa, Juva Batella (todos do CLEPUL, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa).
17 a 19 de Outubro de 2012, Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL).
Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
- Dia 17: “Evento Cultural - Mesa do CLEPUL, coordenada pelo seu Diretor”.
Apresentação de livros pelos autores Carmen Lobato (México), Onésimo Teotónio Almeida (Portugal/Estados Unidos da América), Beatriz Weigert (Brasil/Portugal), Conceição Pereira (Portugal), Juva Batella (curta dramatização).
- Dia 18: “Loucura, Nonsense e Surrealismos”.
Moderador: Maria do Carmo Cardoso Mendes (Universidade do Minho, Braga).
Com: Sofia Santos, Conceição Pereira, Rui Sousa, Juva Batella (todos do CLEPUL, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa).
"A categoria do humor categórico de Campos de Carvalho"
Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL)
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
“Eu deixei de escrever porque deixei. Deixei passar o tempo, 10 anos, 15
anos, 25 anos. Depois de 25 anos comecei a compreender que era esquecido.” Isto
disse Walter Campos de Carvalho em sua última entrevista.[1] Disse que, para ele, a Bulgária continuava não
existindo, “ao contrário do Estado do Piauí, por exemplo, que existe, e é um
estado sofrido. A Bulgária é uma imaginação que eu tive”. Disse que ultimamente
só fazia procurar aquilo que nunca precisou encontrar: o humor — “A solução é o
humor”. Disse, em 1961, que o grande embaraço da literatura brasileira é a
língua — “mais hermética que o mais hermético dos túmulos, quase tão desconhecida
quanto o sânscrito ou o volapuque” —, e Machado de Assis, o seu grande engano —
“considero Machado e seus asseclas o oposto da verdadeira literatura”. Disse
que já viu o diabo, “há coisa de nove anos, aqui no Rio de Janeiro mesmo,
dentro do meu quarto, às quatro horas da manhã. Não foi sonho nem alucinação,
foi visão mesmo (...). Ele se limitou a fitar-me por alguns instantes, todo de
preto, os olhos que eram uma maravilha: encostado à parede, perfeitamente
visível na escuridão. Meu coração bateu um pouco mais forte e foi só”. Alega
ter nascido em 1916, na cidade de Uberaba, em Minas Gerais, no Brasil, no dia
1º de novembro, “em plena Guerra Mundial, a primeira, num dia de Todos os
Santos, a um passo do Dia de Finados. Isso explica em parte um antibelicismo,
minha profunda irreligiosidade e meu pendor pelo macabro e o trágico. Local do
nascimento: aquele mesmo, e de todos”. Disse que aos dezoito anos achava Marx
bárbaro — “Aos trinta, (...) acabei descobrindo que cada um tem o Marx que
merece. Os meus chamavam-se Groucho, Harpo e Chico”. Disse que não gosta de se
considerar um autor trágico; disse que era mais fácil ele próprio existir do
que Deus; “disse”, no período de 1956 a 1964, quatro romances considerados
geniais, e depois não disse mais nada. Permaneceu em silêncio literário por
mais de três décadas e afinal morreu, aos 82 anos, no meio de uma Semana Santa.
Raras são as histórias da literatura brasileira que falam das histórias de
Campos de Carvalho, raras as antologias em que toma parte, raras as
monografias, dissertações e teses. O leitor médio não o conhece, o estudante de
letras mal o conhece, as livrarias não o possuem, e poucos são os alfarrábios
que conseguem escondê-lo por algum tempo — o bastante para que um aficionado
colecionador, tão raro quanto o exemplar que cobiça, finalmente o descubra e o
leve embora para sempre. Trata-se, sim, de um marco — mas do qual não se falava
há mais de trinta anos.
Durante seu decênio produtivo, 1954 a 1964, Campos de Carvalho fez sucesso
e publicou por duas editoras fundamentais dentro da história editorial
brasileira: José Olympio e Civilização Brasileira. Falaremos aqui de dois dos
quatro que publicou: a lua vem da ásia,
publicado em 1956 e que conta a história de um sujeito que se julga o hóspede
de um hotel de luxo, depois o prisioneiro de um campo de trabalhos forçados,
para finalmente percebermos tratar-se do interno de um hospício; e o púcaro búlgaro, seu último trabalho,
de 1964, onde a tónica é o humor levado a sério, às últimas consequências,
através de um grupo de esquisitos reunidos num apartamento e envolvidos na
organização de uma expedição à Bulgária com vistas a verificar a sua real existência.
A importância e a atualidade da literatura de Campos de Carvalho têm
residência fixa justamente em sua capacidade de representar uma crise de
representação — a partir de seu núcleo: o sujeito em crise que se revolta e
decide falar. Sua fala, o tempo inteiro confessional, é uma fala do contra: contra a sociedade que o
esmaga, as instituições que o emparedam, a psicologia que o normaliza, a
linguagem que o ensurdece e cala.
a lua vem da ásia, primeiro romance do escritor, foi o responsável por sua
entrada nos salões da literatura brasileira. Chamaram-no, à época da primeira
edição (1956), louco, imoral, debochado e satânico. “Há quem me tome por louco
e eu mesmo já me tomei”, disse Campos de Carvalho. “Mas basta uma visita ao
hospício para me convencer — desgraçadamente — do contrário. É como se fosse um
lobo vestido com a pele de um cordeiro: expulsam-me só pelo faro.”
Chico Buarque de Holanda considera a
lua vem da ásia seu livro mais contundente; o cineasta brasileiro Glauber
Rocha o chamou “a diarreia Campos de Carvalho”; o crítico Antonio Olinto o
saudou como “desconcertante”; para André Laude, da revista Nouvelles Littéraires, o livro é “manifestamente um escrito
subversivo, inclassificável, irrecuperável”.
O primeiro parágrafo da lua vem da
ásia, de todos os que Campos de Carvalho escreveu, é dos mais citados
por toda a imprensa. “Aos dezesseis anos matei meu professor de lógica, invocando a legítima
defesa.”[2] Mais adiante, aos vinte, a venda de sua alma ao diabo. O
crime aos dezesseis anos marca o ingresso do narrador-personagem na independência
intelectual que o caracteriza. Adilson, ou Astrogildo, nosso
narrador-terrorista, ou matava o professor ou este o matava com a sua “lógica”.
Eliminados ambos, estamos prontos, narrador-personagem e nós,
leitores-ouvintes, para a entrada numa espécie de novo mundo, de cujo tom dão
conta as duas frases que seguem: “... e fui morar sob uma ponte do Sena, embora
nunca tenha estado em Paris”.
A cidade imaginária é Paris, o rio é o Sena — e a moradia, uma ponte, não
poderia ser mais romântica. O poeta fuma sob o céu estrelado e, como ainda é
imberbe, deixa crescer-lhe a barba, sim, mas em pensamento. Em seguida morre
“tranquilamente, dentro da noite calma”. Quando acorda, um gari estende-lhe o
último jornal da tarde, onde lê a respeito de uma hecatombe sobre a cidade de
Melbourne. Adilson, ou Heitor, lava o rosto com o próprio pranto, entrega seu
jornal a um menino cego e sai mundo afora — “até deparar com a estátua do
marechal Joffre montado a cavalo”. Como o dia seguinte é de guerra,
apresenta-se a um general de divisão que lá estava a passear no Bois de
Boulogne e recebe dele uma corneta e cinco mil francos destinados a um uniforme
— “Com a corneta toquei o Danúbio azul
(...), e com os cinco mil francos fui a uma sessão de cinema”. Acaba preso como
espião moscovita — “por causa de minhas barbas patriarcais e malcheirosas” — e
submetido a um “conselho de guerra composto de 15 mil generais, todos eles
fardados”. Inocentado, volta a perambular e a dormir sob as pontes europeias —
“Foi por essa época que aprendi a tocar berimbau com um professor do
Conservatório de Varsóvia, herr
Hepsteimm, e quando também resolvi fazer a minha primeira comunhão, por
absoluto estado de fome”. Nomeou-se, em seguida, conselheiro musical na corte
de Luís II da Baviera.
Ao longo de sua atribulada vida e de suas inenarráveis viagens, ocupou
incontáveis cargos, trabalhou em todos os ofícios e naturalizou-se cidadão em
cada ínfimo canto do mundo, nada encontrando que se ajustasse ao seu
“temperamento profundamente humano”. De espião moscovita, conselheiro musical
na corte de Luís II da Baviera, coveiro na Bolívia, professor de natação na
Beira, poeta futurista, caçador de elefantes na África Equatorial Francesa,
tradutor de Virgílio para o alemão, filho bastardo do rei dos belgas e
negociante de falsos diamantes, a traficante de cocaína em Coimbra, sacristão
no Ceará, autor do Tratado da
Desesperação Metafísica e membro-fundador do Partido Anarquista Nacional.
Campos de Carvalho acerca-nos do que pode haver de
mais estranho no comportamento humano: a loucura do outro. Basta ouvirmos as
frases de Heitor, ou Ruy Barbo, para nos convencermos disso. Em seguida, quando
já se está suficientemente convencido, quando não há mais dúvidas de que
estamos diante do relato de um louco e somos, ou assim gostaríamos de ser,
diferentes dele, esta mesma loucura passa então a fazer parte, de algum modo,
da realidade de nossa própria razão.
Quando conta retrospetivamente, Ruy Barbo, ou
Astrogildo, rememora suas grandes viagens por todos os reinos do mundo. Aos
dois enfoques, o retrospectivo e o presente, corresponde a divisão do livro em
duas partes. Na primeira, intitulada “A vida sexual dos perus”, são descritos os
seus grandes périplos. A segunda parte, “Cosmogonia”, descreve a fuga do
manicômio e a entrada no mundo — um manicômio bem maior.
A partir de então não haverá mais viagens, mas uma
única viagem rumo ao fim. É justamente em seu período de total imobilidade,
preso naquele “hotel de luxo”, que Astrogildo, ou Adilson, mais se desloca. E
seu deslocamento é obsedante, geográfica e historicamente.
“. Indo em peregrinação a
Meca, (...) tive que atravessar às pressas o não sei por que chamado mar Vermelho,
que me pareceu tão azul quanto o mar Negro ou o mar Amarelo (...). De Meca
transportei-me, puro já de alma, para a próspera cidade de Medina, onde comprei
metade da Arábia a um alto membro do governo que depois eu vim a saber ser tão
árabe e tão membro do governo quanto eu mesmo (...). Reduzido a 15 milhões de
arabescos, fugi de bicicleta para
Damasco, onde apanhei o tifo (...).
. (...) Deportado para a
Groenlândia num cargueiro que
transportava 20 toneladas de alfinetes de cabeça e um pequeno elefante, ali
vivi.” (Grifamos.)
Ao fim, mata-se. “O certo mesmo seria chamar a este meu suicídio de
homicídio, já que em mim eu mato o homem que não me agrada e não o meu eu
verdadeiro, que é até simpático.” “Aos dezesseis anos matei meu professor de lógica”, confessa Heitor, ou Ruy
Barbo, logo à primeira frase do romance de Campos de Carvalho, antecipando o
que nos espera.
Este diário de viagem, esta “peça” literária insólita e disparatada chamada
o púcaro búlgaro, significará o
término de um itinerário de angústias, através de uma espécie de redenção pelo
humor. O diário do narrador-expedicionário Hilário limita-se ao registro do
dia-a-dia do que seriam os preparativos para a sua expedição particularíssima à
Bulgária. O texto detecta a existência de um problema aparentemente insolúvel:
a dúvida “em torno dessa mirífica e cada vez mais nebulosa disputa geográfica:
ou, para dizer com mais exatidão, em torno desse espanto geonomástico, como tão bem definiu um famoso historiador
búlgaro”: a existência ou não da Bulgária e, consequentemente, dos búlgaros. Segue agora a descrição sumária
da razão de ser de todo o diário:
No verão
de 1958 o autor visitava tranquilamente o Museu Histórico e Geográfico de
Filadélfia quando, ao voltar-se um
pouco para a direita, avistou de repente um púcaro búlgaro. A impressão causada
pelo estranho acontecimento foi tamanha que no dia seguinte ele embarcava de
volta no primeiro avião, deixando a mulher no hotel sem dinheiro ao menos para
pagar as despesas. (Grifamos.)
o púcaro búlgaro entra aqui de modo exemplar, porque realiza um duplo
jogo surrealista. No nível estético, desbanaliza a linguagem, retirando-lhe os seus
ranços e os seus lugares comuns, a sua previsibilidade e a sua acomodação. No
nível existencial, apresenta um mundo ocupado por personagens que amanhecem e
anoitecem inteiramente surrealistas — em todos os seus atos e pensamentos veem
e fazem um mundo surrealista, regido pela credibilidade do sonho e pela vontade
férrea de ver a realidade a cada momento com olhos livres.
Radamés Stepanovicinsky é, de todos os personagens, o que melhor se poderia
definir como um “homem de espírito”, na aceção que lhe emprega Bergson em seu
famoso estudo sobre o riso. O espírito num homem é a sua capacidade de pensar
com dramaticidade, fazendo das ideias coisas que se veem, ouvem e manejam. Em
sentido estrito, será a porção de comédia que um homem põe em movimento através
de seus atos e, principalmente, de suas palavras.
Ri-se, mas não se sabe exatamente de quê, e esta intangibilidade daquilo
que nos faz rir é o ponto de partida do estudo de Bergson. A inconsciência da
própria comicidade é, em geral, uma das mais eficientes características da
comicidade, e a imagem clássica da risada geral contraposta ao silêncio de uma só
criatura de quem todos riem pode ser facilmente repassada: o cômico sério, e
cada vez mais sério, à medida que os seus disparates se vão tornando
progressivamente mais engraçados e seu semblante mais e mais fechado.
Não há no púcaro búlgaro um só
personagem que ria. A seriedade é geral e crescente diante do solene projeto
que têm à mão os expedicionários, sob a chefia do professor Radamés. A atitude
compenetrada de todos diante de uma empreitada que, logo ao início se percebe,
não dará em nada é em si mesma uma fonte inesgotável de riso, por duas razões,
a serem identificadas na teoria da comicidade de Bergson.
A primeira reside na mecanicidade, e é dela uma consequência: é próprio dos
mecanismos ser reversível. Situações onde a reversibilidade é a mola produzem
riso, diz Bergson, e elenca inúmeros casos, entre eles o do marido angustiado
que “acredita escapar de sua mulher e da sogra pelo divórcio. Casa-se de novo;
e as tramas combinadas do divórcio e do casamento acabam levando-o à antiga
mulher, mas em situação mais grave, pois agora ela é sua sogra”.[3] Um exemplo de reversibilidade, não sobre uma série de
acontecimentos, mas sobre a superfície da linguagem:
“—
Professor, como se explica que até mendigo hoje tenha rádio transístor?
— Não é o
mendigo que já tem transístor, e sim o transístor que já tem o seu mendigo —
respondeu Radamés, como sempre meio nebuloso.
— Então,
como o sr. explica que, hoje, qualquer transístor já tenha o seu mendigo?”
Uma das consequências da reversibilidade é a
nulidade do resultado. Para Herbert Spencer, “o riso seria indício de um
esforço que depara de súbito com o vazio”. Para Kant, “o riso advém de uma
espera que dá subitamente em nada”.[4] De nada adiantou casar-se, como
de nada adiantará reunirem-se os candidatos à expedição à Bulgária, porque não
haverá Bulgária alguma, quanto menos expedição, que esta, no máximo, terá lugar
no próprio apartamento do narrador, assim como magistralmente o fez Xavier de
Maistre.
A segunda razão alimenta-se da solenidade com que todos tratam da questão búlgara — uma solenidade que,
contraposta à nulidade do resultado e à pequenez do projeto, produz riso. Esta
solenidade artificial, que Bergson chama de exagero,
aliada ao seu oposto, a degradação,
fazem ambas parte de uma das três leis básicas da teoria da comicidade: interessa-nos
aqui a transposição, que nada mais é
que o deslocamento de ideias e expressões de um lugar para outro, criando assim
um estranhamento qualquer: “Falar das pequenas coisas como se fossem grandes é,
de modo geral, exagerar. O exagero é
cômico quando é prolongado e sobretudo quando é sistemático (...)”.[5]
Toda a tríplice introdução ao púcaro
búlgaro: a solenidade das palavras, entrevista no discurso em terceira
pessoa com ares cientificistas; a carta ao diretor do Museu de Filadélfia; as
notas de pé de página do Editor; tudo isso entrecortado por toda a sorte de
disparates, são um exemplo exato deste recurso cômico.
“Isso me
lembra um incunábulo que vi certa vez na Biblioteca do Vaticano, do século XIII
ou XIV se não me engano, e que trazia este título (em latim) bastante
sugestivo: “no que pensam os adolescentes
quando não estão pensando no sexo”. Suas quatrocentas e tantas páginas
vinham em branco naturalmente, um pouco amarelecidas pelo tempo, e só no final
se lia a advertência finis, em
belas letras góticas. Propus a tradução de obra tão erudita a um editor de
Florença, mas como ele não concordasse em suprimir aquele tópico final, que me
parecia uma excrescência, a ideia não foi avante.[6]”
Tanto o trecho acima quanto a sua respectiva nota se encaixam ao mesmo tempo
nos dois processos mencionados por Bergson — por degradação e por exagero. Se
considerarmos verídicas certas informações históricas, tais como a existência
do humanista florentino Niccolo de Niccoli, da Biblioteca do Vaticano, e do
próprio Vaticano, está a narrativa circundante a degradar instituições e
pessoas, misturando-as com assuntos de sexologia barata e, assim, produzindo
riso. Neste caso o solene desce de nível e se encontra com o familiar (o sexo
dos adolescentes).
Se, ao contrário, partirmos do princípio de que todo o trecho pode ser uma
grande invenção, acabaremos por ficcionalizar todo o universo da narrativa e
assim encontrar elementos solenes criados com o objetivo de revestir de
importância papal, humanista, editorial, bibliotecária e histórica os conteúdos
mentais constantes dos adolescentes de todos os tempos, que agora sobem de
nível, ao encontro de uma importância que antes não tinham.
“Rosa:
— Está aí
fora um sujeito que diz que não existe.
— Mande
entrar assim mesmo.
Era um
sujeito franzino, raquítico, como se de fato não existisse; mas ainda assim
dava para enxergar.
—
Chamo-me (...) Fulano C. Meireles. Esse C. até hoje não consegui descobrir o que
seja.
—
Sente-se.
— Não sei
se o sr. sabe, mas em 1585 o papa Gregório XIII decidiu que o dia seguinte a 4
de outubro de 1582 passaria a ser 15 de outubro de 1582 — parece que para
acertar um calendário qualquer. (...) Pois bem, os avós dos meus avós (...)
nasceram exatamente entre 5 e 14 daquele ano (...). Eu até que, antes de
descobrir esse fato, era um halterofilista razoável, com várias medalhas no
peito (...). Quando descobri que não existia, perdi todo interesse de existir
(...).
— Lamento
muito a sua inexistência” [p. 348-349].
Ao lado do movimento rígido e mecânico de
fisionomias e gestos cômicos, há na linguagem a rigidez da frase feita, que,
uma vez rasgada por uma ideia absurda, a instaurar então uma coexistência
dentro da mesma frase, produz riso. Bergson diz: “Obtém-se um efeito cômico
quando se toma uma expressão no sentido próprio, enquanto era empregada no
sentido figurado”.[7] o
púcaro búlgaro presta-se por inteiro como exemplo.
“... e
entrei sorrateiramente no quarto de Rosa, que dormia a sono solto. Prendi-lhe o sono entre as mãos, entre os braços, e
depois entre as pernas.
Chegou o
professor Radamés, com mala e tudo.
— Vi que
o sr. morava sozinho e resolvi vir
morar sozinho com o senhor.
— Só que
há a Rosa, que também mora sozinha. Assim seremos três a morar sozinhos.”
Campos de Carvalho vai reproduzir no
púcaro búlgaro o mesmo artifício cômico amplamente utilizado em a lua vem da ásia: a compulsão geográfica. Tanto o louco Adilson, ou Heitor — preso em
seu hotel de luxo ou campo de concentração —, quanto o expedicionário Hilário,
o professor Radamés e toda a bulgarófila trupe, mantêm contrapostas duas
atitudes: a vertiginosa mobilidade de seus espíritos, observada ao longo de
seus mirabolantes roteiros de viagem, e a exasperante imobilidade de seus
corpos. Em ambos os livros, o mundo inteiro à disposição e onipresente. Um
mundo, porém, diferente.
As narrativas da lua vem da ásia
e do púcaro búlgaro dispõem dos
mapas-múndi refazendo-os, e nesta “refazenda” do mundo refazem-se a si mesmos,
já que não conseguem mover-se. A lua virá da Ásia ou da Bulgária, e a Ásia,
como a Bulgária, pode ser encontrada em qualquer ponto do globo, desde que se
crie um roteiro, seja ela qual for — “... até um náufrago agarrado à sua tábua
poderia vir a descobrir a Bulgária, desde que, condição sine qua non, a Bulgária lhe aparecesse pela frente”.
O roteiro proposto pelo professor Radamés
Stepanovicinsky, escrito em “um papel minúsculo, do tamanho de uma unha se
tanto”, colocado com solenidade sobre uma mesa e lido atentamente com uma lupa,
assemelha-se aos melhores momentos de viagem de Astrolgildo, ou Heitor, ou Ruy
Barbo.
“— Eu
(...) pretendia de início partir de Mar de Espanha, o suntuoso porto de Minas Gerais.
Mas como, em lá chegando, constatei que aquilo não era nem nunca fora Espanha,
nem tinha qualquer mar à vista, desisti do intento. Assim, partiremos mesmo de
Niterói (...).
De
Niterói tomaremos o rumo das Canárias (...) — engolfaremos pelo Golfo Pérsico,
atingiremos (...) o mar Egeu, e costearemos (...) o litoral da Líbia. Após
(...) uma lauta refeição, zarparemos de novo em direção às quedas de Massassa e
(...) ao mar de Barents, quando (...) contornaremos a Groenlândia e chegaremos
ao planalto Tibetano (...). Após uma copiosa refeição enfrentaremos o monte
Erebus, a Tasmânia, a Trácia e, de certo modo, também o Transvaal. (...) Às dez
horas do dia seguinte enfrentaremos um terrível furacão, como sempre que se
realiza a travessia do equador — após o que passaremos ao largo de
Constantinopla e (...) rumaremos imediatamente para o lago Tanganyika (...).
Comidos e pernoitados, entraremos no Danúbio, avistaremos a Iugoslávia, a
Romênia (...) e, pondo fogo nas velas do navio para poder enxergar o mar Negro,
iremos fazer uma visita ao sultão de Istambul (...). Pegando o rio
Jequitinhonha, (...), velejaremos (...) na direção onde muito provavelmente
deverão estar Araraquara, Pindamonhangaba, Santa Rita de Passa Quatro e Belo
Horizonte — o que significa que estaremos a um passo de Niterói e consequentemente
de nossas casas. Cumprido esse périplo, se não tivermos avistado nenhuma
Bulgária é porque a Bulgária não existe mesmo ou então somos nós que não
existimos (...).”
Campos de Carvalho foi um terrorista; sua literatura, parte essencial de um
projeto terrorista de renovação da linguagem e de libertação do homem. Se está
hoje a um passo de entrar para as nossas estantes canónicas, isto não significa
que não possamos lê-lo como se estivéssemos nós na pele de seus primeiros e
assustados leitores.
Bibliografia
BERGSON, Henri, O riso — Ensaio sobre
a significação do cômico, 2ª ed., Rio de Janeiro, Brasil, Guanabara, 1987.
CARVALHO, Campos de, Obra reunida — A
lua vem da Ásia, Vaca de nariz sutil, A chuva imóvel, O púcaro búlgaro, Rio
de Janeiro, Brasil, José Olympio, 1995.
COMODO, Roberto, “Silêncio rompido — Após 30 anos longe das livrarias,
quatro romances cultuados de Campos de Carvalho são relançados”, Revista IstoÉ, Livros, Brasil, 12 abr.
1995. (Entrevista)
ENEIDA, “Campos de Carvalho”, in __________, Romancistas também personagens — Letras Brasileiras, São Paulo, Brasil,
Cultrix, 1961. (Entrevista)
LAUDE, André, “Campos de Carvalho — Délire contre délire”. Nouvelles Littéraires, 1º abr., França,
1976.
PIRES, Paulo Roberto, “A paixão anarquista da liberdade — O cultuado Campos
de Carvalho tem editada ‘Obra Reunida’ 30 anos depois de abandonar a literatura”,
O Globo, Rio de Janeiro, Brasil, Segundo
Caderno, sábado, 8 abr. 1995. (Entrevista)
PRATA, Antonio & COHN, Sergio, “Campos de Carvalho”, Revista Azougue, Brasil, s/d.
(Entrevista)
PRATA, Antonio, “Não gosto de mim trágico”, O Estado de S. Paulo, São Paulo, Brasil, Caderno 2, sábado, 11 abr.
1998. (Entrevista)
SILVESTRE, Edney Célio, “Este homem é um maldito — Há quem o considere o
fenômeno mais importante das artes no Brasil. A cultura oficial, entretanto, ignora-o.
Os críticos temem escrever a seu respeito. Os leitores o consideram um louco,
mas seus livros estão esgotados. O que vem a ser um marginal dentro da cultura
brasileira?”. O Cruzeiro, Brasil, 30
out. 1969. (Entrevista)
[1] Este texto reunirá
muitos trechos de entrevistas. Para evitarmos tantas notas de rodapé, a relação
das fontes encontra-se na Bibliografia ao final.
[2] Também para evitar
tantas notas, não detalharemos aqui as referências bibliográficas dos dois
livros de Campos de Carvalho citados, A
lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro,
listados ao final.
[3] BERGSON, Henri.
“Comicidade de situações e comicidade de palavras”. In: _____. O riso — Ensaio sobre a significação do
cômico. 2ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987, p. 49.
[4] Citados ambos por BERGSON,
Ibid.
[5] Id., p. 67.
[6] “O título exato da
obra, atribuída ao célebre humanista florentino Niccolo de Niccoli, é: ‘Aquilo
em que, 60 minutos por hora, 24 horas por dia, 30 dias por mês e 12 meses por
ano pensam os adolescentes, as crianças e as criancinhas quando não estão pensando
no sexo’. Existem pelo menos duas traduções conhecidas, uma para o venezuelano
e a outra para o volapuque, sendo esta última bastante incompleta, sem o título
e a advertência final. (Nota do Editor.)”
[7] BERGSON, “Comicidade
de situações e comicidade de palavras”, op.
cit., p. 62.