26 de fevereiro de 2010

A Era dos Descobrimentos: os pés conquistadores

"Quando não posso contemplar teu rosto,
contemplo os teus pés.

Teus pés de osso arqueado,
teus pequenos pés duros.

Eu sei que te sustentam
e que teu doce peso
sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
a duplicada púrpura
dos teus mamilos,
a caixa dos teus olhos
que há pouco levantaram voo,
a larga boca de fruta,
tua rubra cabeleira,
pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água,
até me encontrarem."

"Teus pés", Pablo Neruda

24 de fevereiro de 2010

Travessura: traduzo para saber como traduziria caso traduzisse

Springs

somewhere i have never travelled, gladly beyond
any experience, your eyes have their silence:
in your most frail gesture are things which enclose me,
or which i cannot touch
because they are too near
lá, para onde não fui, na alegria seguinte a toda
experiência, teus olhos têm aquele silêncio:
em teu mais frágil gesto há o que me envolve
ou o que não toco, de tão perto
your slightest look easily will unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petal by petal myself as Spring opens
(touching skilfully, mysteriously) her first rose


teu mais leve olhar me descerra, fácil,
ainda que me cerre como se cerram dedos,
tu abres cada pétala de mim, como ela, primavera
(em toque hábil e secreto), a sua primeira rosa
or if your wish be to close me, i and
my life will shut very beautifully, suddenly,
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending;


mas, se é teu desejo fechar-me, eu e
tudo em mim recuamos, súbita e belamente,
como quando o coração desta flor imagina
a neve, atenta, em todo canto caindo
nothing which we are to perceive in this world equals
the power of your intense fragility: whose texture
compels me with the colour of its countries,
rendering death and forever with each breathing


nada do que vemos deste mundo pode igualar-se
à potência da tua intensa fragilidade: e esta textura
me instiga, junto às cores de todas as terras,
a render a morte e o sempre, com cada respiro
(i do not know what it is about you that closes
and opens; only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody, not even the rain, has such small hands


(o que é isso em ti que fecha e abre eu não sei;
ou sei apenas que algo em mim compreende que
a voz dos teus olhos é mais profunda que rosas)
ninguém, sequer a chuva, tem mãos tão pequeninas


e. e. cummings

10 de fevereiro de 2010

Encontrando na bagunça o meu livro da Ana Cristina Cesar


"olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas"

Ana Cristina Cesar, A teus pés, Coleção "Cantadas Literárias", São Paulo, ed. Brasiliense, 1982, p. 59.

"He did not quite know what to do..." *

"Para o cristão, o primeiro segundo do tempo coincide com o primeiro segundo da Criação - fato que nos poupa o espetáculo (...) de um Deus desocupado que enovela séculos baldios na eternidade anterior."

Jorge Luis Borges, "História da eternidade", in História da eternidade, trad. Carmen Cirne Lima, São Paulo, ed. Globo, 1993, p. 22.

* Este título (referência a um antigo blog: "amanhã vou vestir-me de azul")

9 de fevereiro de 2010

Uma prenda

"Nós, de uma olhadela, percebemos três copos em cima de uma mesa; Funes, todos os rebentos e cachos e frutos que comporta uma parreira. Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do trinta de abril de mil oitocentos e oitenta e dois e podia compará-las na lembrança com as listras de um livro espanhol encadernado que vira somente uma vez e com as linhas da espuma que um remo sulcou no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho. Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada às sensações musculares, térmicas etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os entressonhos. Duas ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro; nunca havia duvidado, cada reconstrução, porém, tinha requerido um dia inteiro."

Jorge Luis Borges, "Funes, o Memorioso", in Ficções, trad. Carlos Nejar, São Paulo, ed. Globo, 1995, p. 114.

6 de fevereiro de 2010

Instruções (influências)

Preâmbulo às instruções para dormir

Encontre um espaço no chão que tenha um pouco mais do que o seu tamanho em altura e largura. Imagine-se deitado, mas não se deite ainda. É preciso antes imaginar. Para se imaginar a si mesmo deitado, pense numa grande fome e numa grande mesa cheia de comida, e pense também não tanto no que já fez na vida, mas no que ainda pretende fazer. E então, no exato instante em que se sentir cansado e sonolento, imagine-se deitado. Execute, em seguida, as manobras abaixo.

Procure certificar-se de que não será interrompido por alguém que esteja acordado, tire imediatamente os sapatos dos pés, na verdade os pés dos sapatos, pois não é educado deitar-se calçado, ponha-se de joelhos, incline-se para o chão, colocando nele as duas mãos com as palmas para baixo, vire-se de modo a conseguir sentar-se no centro do espaço encontrado ao início desta explicação e comece lentamente a reclinar-se para trás, tendo sempre em mente que o chão é o limite para a sua cabeça. O objetivo desta série de manobras é colocá-lo em posição paralela ao piso e perpendicular às paredes das casas ou às árvores mais bem feitas. Uma vez realmente deitado, procure esticar as pernas e posicionar os braços ao longo do corpo. Relaxe os músculos dos glúteos e do rosto e tire o relógio. Passemos agora às instruções para dormir.

Instruções para dormir

Feche os olhos e não tenha medo, ou seja, não pense naquela aldeia escocesa onde se vendem livros contendo uma página branca perdida ao léu que, uma vez encontrada, mata o leitor às três da tarde e não antes; não pense naquele cantinho recôndito e pouco conhecido de onde se podem ver, numa certa praça romana e em noites de lua cheia, algumas estátuas saindo sozinhas do lugar; não pense nos latidos solitários daquele cão perdido no último farol, plantado no mar e na noite em alguma zona costeira italiana; não pense no caixeiro-viajante que sentiu uma dor funda no pulso esquerdo, tirou o relógio e viu o sangue vir de uma ferida que parecia, sim, uma mordida do outro mundo; procure não pensar em nada disso que leu por aí* e que o impressionou e que justamente agora vem ofuscar-lhe o sono. Apenas feche os olhos e respire devagar. No fundo está a morte, você sabe, mas não tenha medo. Pense somente no que não leu: na árvore soltando as folhas, no barco correndo as águas, na chuva e no vento, juntos, limpando as telhas, no cheiro do pão. Desfranza a testa e comece a adormecer. E não se esqueça de sorrir antes.

O sono é chamado cochilo quando dura dez minutos; sono restaurador, durando de oito a catorze horas; sono profundo, ou valsa lenta, encompridando-se dias a fio e mesmo meses. E se é o caso de precisarmos contar os anos e os séculos, é porque nada mais conta.

* Cortázar e Borges

5 de fevereiro de 2010

O tempo, ao chegar ao coração

"Um fama tinha um relógio de parede e dava-lhe corda todas as semanas. Com grande cuidado. Passou um cronópio e ao vê-lo pôs-se a rir, foi para casa e inventou o relógio alcachofra ou alcaucil da espécie grande, preso pelo caule a um buraco da parede. As incontáveis folhas do alcaucil marcam a hora atual e além do mais todas as horas, de maneira que basta o cronópio arrancar-lhe uma folha para saber a hora. Como ele as vai arrancando da esquerda para a direita, a folha marca sempre a hora exata, e cada dia o cronópio começa a tirar uma nova rodada de folhas. Ao chegar ao coração, o tempo já não se pode medir, e na infinita rosa roxa do centro o cronópio encontra um grande prazer (...)."

Julio Cortázar, "Relógios", in Histórias de cronópios e de famas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972, p. 121-122.

3 de fevereiro de 2010

"Última palavra: sim"

"... I was a Flower of the mountain yes when I put the rose in my hair like the Andalusian girls used or shall I wear a red yes and how he kissed me under the Moorish wall and I thought well as well him as another and then I asked him with my eyes to ask again yes and then he asked me would I yes to say yes my mountain flower and first I put my arms around him yes and drew him down to me so he could feel my breasts all perfume yes and his heart was going like mad and yes I said yes I will Yes."

James Joyce, Ulysses, monólogo Molly Bloom, cap. 18.

"Última palavra: sim" - título de um livro de Nuno Júdice, 1977.