1 de janeiro de 2007

“O SEF nosso de cada dia”

[Sem data definida.]
“O SEF nosso de cada dia”, JL — Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, Portugal, p. 39.

Um brasileiro em Portugal, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de Lisboa, os angolanos, marroquinos, botsuanos, argelinos e chineses, os documentos, o tempo, a espera, a fome, a literatura, o caos.

E, num belo dia de setembro, mudei-me para Portugal...

Mas eu sempre soube que nunca seria um alfacinha, porque um alfacinha é aquele sujeito que nasce em Lisboa. Nunca serei um alfacinha porque sou, antes de tudo, um carioca. Mas, se for um carioca que mora nos arredores de Lisboa, posso ser um carioca e estar um “alfacinha-de-arredores”? Posso alcançar uma condição intermediária, entre o carioca e o alfacinha? Se calhar posso.

E porque estou morando ao pé de Lisboa em condições, digamos, turístico-clandestinas, sou, para todos os efeitos legais, um brasileiro que está cá uns tempos e que de três em três meses retorna ao Brasil — situação que não pode perdurar porque eu, afinal, estou mesmo residindo aqui por estas terras e preciso do que se chama um visto de residência. Preciso, na verdade, de uma autorização de residência, e porque eu não me contento com pouco: uma autorização permanente de residência.

Imbuído, pois, desse desejo de estar um alfacinha-de-arredores, ou ao menos um residente nos termos da Lei, dirigi-me ao órgão aqui em Lisboa que trata de assuntos dessa envergadura, o chamado SEF — Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. E, porque não sou bobo, levei um livro para ler, provavelmente de cabo a rabo, enquanto esperava a minha vez de ser atendido e entrevistado. Fiquei na dúvida entre Guerra e Paz ou Crime e Castigo e optei pelo primeiro — embora tenha carregado também o segundo, para o caso de ficar sem ter o que ler... —, e para lá me encaminhei.

Lá no SEF, em muito pouco tempo, deduzi que afinal aquele dia se firmaria em minha memória como um dia singular e sobre o qual eu um dia escreveria. E eu estava otimista, é verdade, e cheio de razão, pois sou casado com uma portuguesa há dez anos, tenho uma filha brasileira e portuguesa, temos cá uma casa própria, uma casa portuguesa com certeza, temos cá condições de habitabilidade, meios de subsistência e vinho na adega. Por que não me dariam uma autorização permanente de residência?

Adentrei o SEF e caiu-me o queixo. Um lugar de teto baixo e pleno de gente, muitos angolanos e argelinos e marroquinos e botsuanos e... (quem nasce na Guiné-Bissau é o quê?), e ainda cidadãos de outros países da África, mais especialmente, presumo, países de língua portuguesa, e também muitos chineses e pessoas de lugares estranhos e de línguas engraçadas de se ouvir. Havia poucos assentos e muitos candidatos a disputar os assentos, e sobre as nossas cabeças a chamada zoeira dos demônios. E todas essas pessoas tão diferentes, com diferentes histórias de vida, se vêem de repente ali, aglomeradas, e todas aquelas histórias de vida apresentariam, caso fossem escritas, esse episódio comum: estiveram um dia inteiro de suas vidas lá no SEF, a esperar a vez de conseguir um assento e em seguida ser atendidas e entrevistadas pelas moças do balcão. Peguei a minha senha às 8h15m da manhã de uma quinta-feira, dia 20 de abril último, e li no papelzinho que a previsão de atendimento apontava para as 10h11m, uma previsão formulada, creio, por um programa de computador que calcula médias de horários sob a luz de uma espécie de otimismo digital. Peguei o meu Guerra e Paz, feliz por ter trazido também o meu Crime e Castigo, e fiquei zanzando com o livro na mão, à espera de um lugar ao chão...

E me distraí olhando ao redor, e olhando pensei que todos os países do mundo têm lá o seu SEF, e todos os SEFs do mundo devem ser iguais, ou piores — piores que o SEF do quinto dos infernos, sem dúvida, porque o SEF do quinto dos infernos pelo menos está sempre vazio, ao passo que o SEF de Lisboa, que é a bela e apaixonante cidade de um belo e apaixonante país para se morar, está sempre cheio de gente de vários lugares da África e cheio de chineses e outras gentes de língua engraçada de se ouvir. Uma pessoa à espera no SEF deve observar tudo e com tudo se distrair, pensei eu, ainda mais sendo essa pessoa um dono-de-casa-que-escreve, o meu caso. Ao trabalho etnográfico, pois. Mas, antes, a minha autorização permanente de residência, se faz favor.

Tenho todos os papéis cá comigo, que conferi minuciosamente e com grande requinte, mas nunca será demais reconferir, e decido enfim me sentar no chão mesmo, num canto mais limpinho que encontrei perto de uma parede, onde me encostei com um suspiro de alívio por estar a descansar as minhas fatigadas pernas de estrangeiro, e peguei o meu requerimento principal e a sua cópia, e o meu passaporte e a sua cópia, cópia de todas as folhas, não bastando das primeiras três, segredaram-me, e a certidão de casamento brasileira e ainda a sua cópia, seguida do assento de casamento que tiramos lá no consulado português no Brasil e a sua cópia, e quando eu digo cópia eu digo cópia certificada, e também a legitimação desse assento de casamento pela Conservatória do Registro Civil de Santo Amaro de Oeiras, local onde moramos, ao pé de Lisboa, e com data recente, porque eu tinha um certificado com data antiga que é antiga demais, e sabe-se lá, podiam imaginar que a minha mulher, ou eu, se casou ou casei, novamente com outro ou outra, e agora um formulariozinho assinado por ela, que aqui em Portugal se torna então responsável por este estrangeiro que vos fala, e todas as suas identificações de esposa, e agora vejamos as provas de que moramos juntos, e para isso uma declaração do Imposto de Renda de 2006 aqui de Portugal, ano-base 2005, será suficiente, e agora, para garantir, lá tenho eu também em cópias certificadas e em originais as certidões de nascimento brasileira e portuguesa da linda filha que temos, e estamos com tudo em cima, não esquecendo de conferir os meus registros criminais no Brasil, garantidos pelo Departamento de Polícia Federal e pela Delegacia de Defesa Institucional e ainda, em Portugal, pela Direção-Geral da Administração da Justiça, que atestam ambos os meus antecedentes, que são ótimos e até mesmo invejáveis..., e será ainda preciso provar que temos onde habitar, e para isso cá está a escritura de compra de nossa ótima casa, que nos deram de presente os meus sogros, e como vamos nos sustentar?, será a pergunta seguinte, e eu então mostrarei à moça do balcão o contrato de trabalho da pessoa-cônjuge e também os seus recibos de salário, que provarão às autoridades portuguesas que temos dinheiro para viver e ainda comprar livros, cds e vinhos, porque este que aqui fala não trabalha fora, embora escreva, como se vê (lê). Tudo isso e as suas cópias autenticadas e certificadas e mais que legitimadas, e quanto tempo falta para eu ser atendido?

Muito, e decidi então, porque eu não estava satisfeito com a minha checagem de documentos, reorganizá-los melhor, e por categorias, e fui a um bazar chinês ali perto, não sem antes conferir qual era a senha da vez, era a 36-G, e o meu número, meu e de mais ninguém, claro está, era o 56-G. Será que vai andar rápido agora? Não, o 35-G demorou uns vinte minutos. Fui à loja correndo, comprei clipses coloridos para ajudar na catalogação, e correndo retornei ao meu posto; correndo é modo de dizer porque eu estava mancando, e algumas pessoas lá do SEF, sentadas, até me olharam com alguma comiseração, embora ninguém tenha cedido o próprio lugar a um estrangeiro náfego (e eu cederia?). O número? O mesmo 36-G. Fiz cara de choro mas não chorei. Não se deve chorar no SEF, pega mal. Encaminhei-me ao meu canto, mas ele estava ocupado por uma família de cinco membros chineses, todos sentados a rir de alguma coisa. Procurei o que poderia ser aquela coisa de que se riam mas não encontrei. Catei outro canto e desatei a reorganizar os papéis, desta vez clipsando-os nas categorias Eu, Esposa, Casamento, Moradia, Sustento, Filha e, por fim, Antecedentes criminais.

Detive-me longamente nessa recatalogação, o que tenho é tempo, pensei, e olhei para o marcador eletrônico para ver novamente o 36-G, e, aproximando-se de mim, uma senhora gorda sustentada por duas muletas de madeira e a carregar um pé inchadíssimo envolto nuns esparadrapos empretecidos, avermelhados e também amarelecidos com sujeira, sangue e pus. E baixei meus papéis para acompanhar o trajeto daquela senhora quem sabe de algum dos 54 países da África, se não me engano, que atravessou toda a grande sala em busca de uma cadeira, e não houve cadeira que se apresentasse, e ela retornou ao ponto de origem, que eu dali de meu canto no chão não podia ver, e mentalmente dei de ombros, aliviado por não ter qualquer obrigação de lhe ceder meu lugar no chão, porque chão ali havia muito, e dos bons. Horas passando, tic-tac, tic-tac, eu já bastante avançado no meu Guerra e Paz, e senti fome. E decidi sair correndo a uma tasquinha ali perto para comer um sanduíche com um suco de laranja. Olhei o número, agora era o 39-G, saí à rua e entrei na tasca e comi aquilo tudo com o coração aos saltos, total e repentinamente dominado pela certeza de que, por uma razão desconhecida ou então porque os portadores dos números posteriores ao 39-G se tinham cansado e abandonado a arena, os atendimentos seguintes àquele 39-G seriam rapidíssimos, e eu acabaria então ultrapassado sob a alegação: “56-G não presente! O próximo!”. E aquela imagem me foi dominando a um tal ponto que pedi ao moço da tasca que colocasse num copinho de plástico o meu suco e aceitasse por favor aqueles três euros naquele mesmo minuto, porque eu precisava ir embora o quanto antes. E, ainda que manco, ganhei as ruas às carreiras e adentrei o SEF munido de meu copo e meu pão, para ver, atônito, que nada, nada, nada havia mudado: estava lá o 39-G a brilhar no marcador, e estava lá, a representar aquele número 39-G, uma família nuclear de dois adultos e duas crianças, cidadãos de algum país longínquo onde os cidadãos usam turbantes coloridos sobre a cabeça. Voltei ao meu Guerra e Paz e ao tic-tac do meu coração, arrependido de não ter tomado na tasca, com calma e decência, nem ao menos um cafezinho merecido.

Quatro horas e quinze minutos mais tarde, e mais nervoso e ansioso do que quando defendi a minha tese de doutorado ou quando um dia fui entrevistado na tv para um programa cultural, apresentei-me enfim ao chamado do número 56-G. E tudo transcorreu de modo tão eficiente e tão pouco dramático, que me senti um pouco lesado, e me indignei, e cheguei ao ponto de pedir à moça que pelo menos me deixasse ficar ali à frente dela mais um pouquinho, “só mais uns minutinhos...”, pedi. “O número 35-G demorou vinte minutos, o 36-G também, e o 39-G no mínimo quarenta”, eu disse, mas ela só me olhou um olhar debruçado e exausto, tendo me pedido apenas um terço de todos aqueles papéis que eu trazia na bolsa; não me pedindo, se calhar porque eu estava naquele dia com a chamada “cara boa”, os meus antecedentes criminais e me dizendo apenas: “Vá o senhor para casa e espere uma notificação”. “Mas...”, comecei, e ela já gritava: “O próximo! O 57-G, se faz favor!”. Insisti: “Mas e os meus anteceden...”. E ela: “Vá o senhor para casa e espere uma notificação, a chegar pelos correios”.

Enquanto espero, escrevo que espero.

“Lugares simbólicos: Ilha do Pavão”

BATELLA, Juva; BERND, Z., “Lugares simbólicos: Ilha do Pavão”, in: Dicionário de figuras e mitos literários dasAméricas, 1. ed., Porto Alegre, ed. Tomo Editorial, editora da UFRGS, 2007, v. 1, p. 325-329 (ISBN: 9788586225512).

1. Apresentação

O pavão, tal como o conhecemos, ou seja, ornado de sua longa cauda, toda ela pontilhada de círculos coloridos semelhantes a olhos a espalharem-se por uma gigantesca plumagem, vem da família dos faisões, é pássaro macho, da espécie P. Cristatus, e não pouco exibido: abre-se e fecha-se como um leque, caminha com uma altivez um tanto desajeitada e pia desagradavelmente. A descrição — não menos exuberante — que lhe faz o dicionário Aurélio é a de uma “grande ave galinácea, fasianídea, cujo macho apresenta crista, plumagem brilhante azul ou verde, e grandes plumas caudais com manchas oculares iridescentes...” (Ferreira, 1999).

O verbete em pauta não é propriamente Pavão, mas uma ilha que leva o seu nome e — veremos — com ele se relaciona. A descrição que faz o escritor João Ubaldo Ribeiro de sua própria ilha imaginária, cenário de seu romance O feitiço da ilha do Pavão, é tão sedutora que a ela não resistiram Alberto Manguel e Gianni Guadalupi. Lá está a ilha, em seu Dicionário dos Lugares Imaginários (Manguel & Guadalupe, 2003, p. 333-335); lá está a descrição de João Ubaldo Ribeiro, como o único texto a ilustrar todo o verbete. A “verdadeira” ilha do Pavão, na área da cidade de Porto Alegre, no estado brasileiro do Rio Grande do Sul — uma das 28 ilhas de um grande arquipélago situado na confluência das águas do Guaíba com os rios Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí —, está um bocado longe e em nada se assemelha à ilha de João Ubaldo Ribeiro, “uma barreira de granito, amalgamada com os contrafortes do Recôncavo e os costados de Itaparica” (Ribeiro, 1997, p. 12).

"... uma ilha que inventei no meio da Baía de Todos os Santos, que se existisse talvez ocupasse uma área superior à própria baía. É uma ilha misteriosa, de difícil acesso e sobre a qual ninguém fala (...). Fiz uma espécie de fantasia. Descrevo uma sociedade no Brasil do século XVIII. Um Brasil completamente isolado do resto da colônia, embora partilhe da herança ibérica que todos nós recebemos. É a história de uma ilha que se desenvolve autonomamente. Não sei em que vai dar (Entrevista à Revista IstoÉ, 19 mar. 1997)."

Isso disse o autor ainda às voltas com a escrita. Ademais, ninguém, antes de João Ubaldo Ribeiro, falou nessa ilha do Pavão — “Jamais se escutou alguém dizer ter ouvido falar na ilha do Pavão, muito menos dizer que a viu, pois quem a viu não fala nela e quem ouve falar nela não a menciona a ninguém” (Ribeiro, 1997, p. 9). A ilha, no entanto, existe, “com sua história, sua gente, sua terra amanhada e seus matos brabos, seus bichos e seu próprio tempo, que é diverso dos outros tempos, embora ninguém saiba explicar de que maneira ou por que razão” (Ribeiro, 1997, p. 12).

2. Histórico

A ilha do Pavão — falemos dela — abriga, no século dezoito, uma sociedade de classes, sim, mas embaralhadas e comunicantes; uma sociedade em que “elementos saídos da cultura popular, massiva e culta se entrelaçam e interagem”, escreve Zilá Bernd, “sem que o autor intervenha para hierarquizá-los” (1999). Às representações ordinárias dos diversos elementos formadores do que se convencionou chamar “o povo brasileiro”, João Ubaldo contrapõe outras: são as representações rebeldes, para ficarmos em apenas três, do índio que não quer ser índio e não quer viver no mato, do negro que não tolera negros de outras origens e, sentindo-se superior, se organiza para escravizá-los, do branco colonizador e rico que não quer mandar em ninguém, não é arrogante e não se vê como superior nem credor de nada — é o caso, respectivamente, de Balduíno Galo Mau, índio mentiroso, conhecedor de todas as matreirices e avesso à idéia sedimentada de um ser inocente, ingênuo e organicamente ligado à natureza; caso de Afonso Jorge II, negro nobre do reino do Congo, filho do majestoso Afonso Jorge I, conhecidos traficantes de negros de raças “muito justamente apelidadas de infectas, raças porcas, estúpidas, atrasadas e fedorentas” (Ribeiro, 1997, p. 92), chefes sucessivos do grande Quilombo do Mani (Rei) Banto, quilombo não de negros fugidos, mas de negros cativos; caso de Capitão Cavalo, senhor de muitas terras, branco, bastante poderoso e no entanto avesso ao poder e aos seus exigentes caprichos, acolhedor de escravos fugidos, estimulador de casamentos multi-étnicos, defensor do trabalho justo e da justa divisão do produto do trabalho, socialista dos bons, revolucionário como poucos, odiado por alguns e muito cioso de seu sossego e de sua boa consciência. A sociedade que vamos encontrar na ilha do Pavão é, como vimos e para dizer o mínimo, diferente, porosa e multi-étnica.

"Possivelmente [o viajante apressado] também estranhará ver negros calçando botas, sentando-se à mesa com brancos, tuteando-os com naturalidade e agindo em muitos casos como homens do melhor estofo e posição financial, além de negras trajadas como damas e de braços dados com moços alvos como príncipes do norte (Ribeiro, 1997, p. 17)."

O lugar imaginário ocupado pela ilha do Pavão pode ter recorrências em várias literaturas, uma vez que se trata de um espaço utópico a seguir um tempo diferente, prenhe de possibilidades históricas e existenciais, uma vez que se trata, antes de tudo, de uma ilha, pedaço de terra cercado de água e já nascido como um tropo. Contudo, a ilha do Pavão, ela mesma, configura uma criação exclusiva de João Ubaldo Ribeiro, sendo único seu local de nascença: o livro que lhe dá título.

3. Campos de aplicação

3.1. A ilha (fora do) Brasil

Não se manteria como singular — embora sendo diferente, poroso e multi-étnico — um povo que não estivesse de algum modo apartado. O espaço insular presta-se muito mais a um exercício de recriação que se pretenda mítico do que a grandiosidade dos espaços já formados. Nada melhor, para se inventar um Brasil, do que um outro lugar, “fora” do Brasil, onde se irá plantar um projeto de Brasil. A ilha do Pavão situa-se nalgum ponto do Recôncavo Baiano, dentro do território brasileiro mas inacessível à maioria dos brasileiros, que dela terão pavor. Ela será sempre, neste sentido, o “outro Brasil” — ilha dentro da qual se vive bem, mas “da qual não se conhece navegante que não haja fugido”, diz o narrador, “dela passando a abrigar a mais acovardada das memórias” (Ribeiro, 1997, p. 9). E diz agora o escritor: “Fiz uma brincadeira e resolvi imaginar (...) alternativas para aquele Brasil, como se um outro país se desenvolvesse paralelamente ao que conhecemos” (entrevista ao jornal O Globo, 3 ago. 1997).

Não bastará, no entanto, ser a vida na ilha do Pavão boa para todos aqueles de todas as cores; não bastará funcionar a ilha como uma espécie de paraíso contraposto ao continente desigual e totalitário. O espaço insular de João Ubaldo Ribeiro é produtivo, como escreve Elisalva Oliveira-Joué (1999), na medida em que “remete constantemente para o começo de tudo, do país e do povo, forjados pelo encontro, na maior parte das vezes forçado, das três etnias”. Se permanecesse ancorada à condição de paraíso paralelo, a reunir as condições ideais de um Brasil que poderia ter sido, mas acabou não sendo, não estaríamos a falar da ilha do Pavão como lugar mítico, mas como lugar utópico, e uma das tarefas dos lugares míticos é esta: devem funcionar como simulações de inícios. A ilha do Pavão torna-se então, sob essa idéia, o lugar da gênese, por excelência, de uma alternativa de sociedade brasileira.

"O mito deve ser ainda distinguido da utopia (projeção de um futuro ideal), da lenda (que tem fundamento ou caráter de certo modo histórico), do conto (uma forma dessacralizada) etc. Mas o vocabulário é hesitante, mesmo quando se trata de especialistas, como sucede por exemplo com K. Mannheim, que designa sob o nome de utopia aquilo que entendemos aqui como mito. Além do mais, pode acontecer mais de uma vez que tal forma narrativa se situe a meio caminho do mito com relação à lenda, ou do mito com relação ao conto e à utopia (Dabezies, 1998, p. 732)."

A ilha do Pavão brilha na mente dos que não a conhecem e que nela nunca pisaram como um lugar, tal como um mito, de existências não vivenciadas — “paisagens adivinhadas, sonhos aos quais dar vida, sensações apenas entrevistas, lembranças vívidas do que não se passou” (Ribeiro, 1997, p. 12). A ilha do Pavão, no tempo narrativo do romance, é capaz de engendrar, para os seus personagens, muitos prováveis futuros. A história de seus habitantes, no entanto, está confinada à ilha, e, mesmo que o leitor possa, e deva, aumentar para níveis continentais o diâmetro de sua leitura, os acontecimentos narrados não se esparramam para o resto do Brasil. João Ubaldo Ribeiro não está a brincar com a história do país, imaginando o que poderia ter acontecido conosco se... os portugueses tivessem abandonado a tarefa colonizadora e os padres católicos desistido da missão catequética, os holandeses afinal se firmado na terra, os negros escravos conseguido organizar-se e lutar... Não. A sociedade que vamos conhecer lendo o romance de João Ubaldo Ribeiro é a sociedade brasileira na medida em que todos os nossos antepassados étnicos lá estão, sim, mas nem sempre mantendo preservadas as suas características como classe. A sua configuração e os seus níveis de relacionamento desenvolveram-se de modo diverso e afastaram-se totalmente da experiência “continental”. A ilha permanece isolada, e é esse isolamento que lhe confere características míticas.
           
"A metáfora do ilhamento é um dos recursos estilísticos utilizados pelo autor para impedir que os seus relatos deslizem para uma literatura panfletária, pois, ao situar a narrativa entre dois espaços, o insular de Itaparica ou da imaginária ilha do Pavão e o resto do Brasil (...), o autor planta as raízes, afirma a legitimidade dos componentes negro e índio do povo brasileiro e deixa o caminho aberto para que brotem do texto a negação do Único — a cultura européia e o tipo branco — e a valorização do Múltiplo e do Outro — o branco, o negro, o índio e o mestiço (Oliveira-Joué, 1999)."

3.2. O tempo atocaiado

Mas não só. A ilha do Pavão pode não ser ainda um mito. Como já se disse, João Ubaldo Ribeiro, ou seu narrador, é o primeiro a nomeá-la. Trata-se de uma criação exclusivamente ubaldiana e presente apenas em seu romance de 1997. Do mesmo que podemos dizer, citando André Dabezies, que um mito “tampouco é identificável com um texto. O texto literário não é em si um mito: ele retoma e reedita imagens míticas” (Dabezies, 1998, p. 732), podemos ir além e afirmar também que a ilha do Pavão, em si, não constitui um mito, mas um lugar de mitos.

João Ubaldo Ribeiro revela ao leitor que a ilha do Pavão possui escondida em seu centro uma gigantesca esfera mágica a funcionar como uma espécie de toca do tempo. Inicia-se então, dentro da história, um desfile de experimentações: os personagens protagonistas, ao entrar e sair da esfera, conseguem paralisar o andamento dos eventos e produzir, durante a paralisação, futuros latentes. Os prováveis futuros que aquela sociedade do século XVIII vivenciou correspondem, para o leitor de hoje, aos passados que tivemos ou que poderíamos ter tido. A brincadeira remete a nossa imaginação às inúmeras possibilidades de sociedade brasileira.

"E foi assim que começaram a usar de fato a toca do tempo, sobre a qual aprendiam cada vez mais, embora não entendessem nada de seus mecanismos misteriosos. Agora tinham certeza de que, enquanto o presente parava, ilimitados e indefinidos futuros ficavam em perpétua gestação e o tempo os recebia ao acaso, não tinha preferências. Ou podia ser levado a tê-las, pelo menos por exclusão, embora não por inclusão. Escolher um dos futuros disponíveis, sim; plasmar esse futuro, não, não parecia ser possível. Como não? Cada mudança mudava tudo mais, mas como saber? (Ribeiro, 1997, p. 313)."

4. Síntese crítica

4.1. O que faz um mito?

O mito situa-se fora do tempo. A ilha do Pavão abandona o seu espaço em meio às águas do Recôncavo, e é como se deixasse de existir. O mito suspende o tempo. Mal um personagem adentra a esfera mágica, a ilha do Pavão transforma-se, e um gigantesco Pavão abre a sua cauda e se ilumina, produzindo à sua volta luz e ofuscamento. Em seguida o breu e a suspensão efetiva do tempo — uma suspensão grávida. O mito recria passados e inventa futuros.

"Portanto, o tempo parava, quando o pavão acendia. E o pavão acendia quando algum deles entrava na bola. (...) E o povo via o pavão fulgurar, mas depois não se lembrava, só se lembrava de que, repentinamente, a lua sumira, tudo escurecera, a ilha parecera ser a única terra no meio do mar, para depois voltar tudo a como estava antes (Ribeiro, 1997, p. 299-300)."

Mas o mito tem também uma verdade, que não é apenas poética ou simbólica, como o era para os antigos, mas uma verdade híbrida — “... nos dias de hoje, o mito deve travar um diálogo”, diz-nos André Dabezies, “e ter uma relação de simbiose com a racionalidade metafísica ou cotidiana” (1998, p. 734). A ilha do Pavão é a morada do tempo; um lugar literário que possui uma esfera mágica literária que, no entanto, foi inspirada pelo que João Ubaldo Ribeiro chamou de a “toca do tempo”, tradução livre de “wormhole” (buraco de verme), um conceito da ciência, fruto de um raciocínio operado com teorias da ciência, sim, mas que se reporta, pela via da literatura, à aventura mítica do viajante do tempo (ver bibliog. eletrônica1). O mito provoca a ciência, que inspira a literatura, que se volta para o mito, mas alimentada, desta vez — num diálogo específico e mais ou menos verossímil —, pela ciência.

"Vem de uma especulação já conhecida de cosmólogos sobre a possibilidade de uma viagem no tempo. Isso tem alguns fundamentos científicos. Como eu não escrevo ficção científica nem sou cientista, não me senti obrigado a me restringir às limitações e normas que existem para que isso aconteça. (...) ... essa esfera é chamada por um cientista americano de “wormhole” (...). É uma complicação. Seria uma dobra na curvatura espaço-tempo, que permitiria a você atravessar o tempo. Como eu quis dar uma verossimilhança ao fato de a ilha aparecer e desaparecer, recorri a isso (Entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, 22 nov. 1997)."

 4.2. O pavão ruante

A provável razão para se chamar a ilha “do Pavão” pode dever-se à própria imagem do pavão em efetivo pavoneamento, ou seja, erguido e com a sua cauda cheia de olhos aberta em leque — infindáveis olhos vigilantes diante do leque aberto e prenhe de acontecimentos e possibilidades de história. Remonta ao universo arcaico grego a associação que se faz entre a cauda do Pavão e a idéia da onisciência, e especificamente às peripécias da deusa Hera, a orgulhosa, briguenta e vingativa mulher de Zeus. Diz o mito que Hera, ou Juno, enciumada do licencioso marido, encarcera a bela Io, deixando-a sob a guarda infalível de Argo, o ser dos cem olhos, o que tudo vê. Zeus, no entanto, que não nasceu ontem mas muito antes, encarregou o espertíssimo Hermes da tarefa de libertar Io daquela vigilância aparentemente imbatível. Bateram-se, e morre Argo com uma pedrada.

Hera, consternada, rende-lhe a homenagem final, retirando-lhe um a um os cem olhos e recolocando-os espalhados ao longo da cauda aberta de um pavão — que se torna a partir daí a ave consagrada a Hera e às suas saudades de Argo. Dizer ilha do Pavão é dizer ilha da ave dos cem olhos, a ave da onisciência e da clarividência, através da qual se vê tudo, até mesmo, e principalmente, o futuro, ou seja, o passado.

O pavão fêmea não tem plumagem e, portanto, não tem graça.

5. Autor: Juva Batella

6. Ver também: Democracia racial; Escravo; Índio degradado; Paraíso; Senhor de escravos.

7. Bibliografia

7.1. Bibliografia crítica

Bernd, Zilá. “Identidades compósitas: escrituras híbridas”. Matraga, no 12, 2o semestre, 1999, Apresentado no Congresso da Anpoll, 12 jun. 1998.2

Dabezies, André. “Mitos primitivos a mitos literários”, in Brunel, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários, 2a ed. Trad. Carlos Sussekind, Jorge Laclette, Maria Thereza Rezende Costa e Vera Whately. Prefácio de Nicolau Sevcenko. Rio de Janeiro: José Olympio, Editora UnB, 1998.

Manguel, Alberto & Guadalupi, Gianni. Dicionário dos lugares imaginários. Trad. Pedro Maia Soares, Ilustr. Graham Greenfield e Erik Beddows. Mapas e plantas James Cook. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.Oliveira-Joué, Elisalva. “Identidade mestiça e ilhamento na obra de João Ubaldo Ribeiro”, 1999.3

7.2. Bibliografia literária

Ribeiro, João Ubaldo. O feitiço da ilha do Pavão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

7.3. Bibliografia de imprensa

Ribeiro, João Ubaldo. Entrevista à Revista IstoÉ, 19 mar. 1997.

__________. Entrevista a Daniela Name, O Globo, 3 ago. 1997.

__________. Entrevista a Bernardo Carvalho, Folha de S. Paulo, 22 nov. 1997.

7.4. Bibliografia eletrônica

* , acesso em março de 2005.

**, acesso em agosto de 2004.


***, acesso em agosto de 2004.

“Poder: Sargento"

BATELLA, Juva; BERND, Z., “Poder: Sargento”, in: Dicionário de figuras e mitos literários das Américas, 1. ed., Porto Alegre, ed. Tomo Editorial, editora da UFRGS, 2007, v. 1, p. 559-563 (ISBN: 9788586225512).

1. Apresentação

De certo que existem, em todas as literaturas, assim como na vida, mais sargentos que tenentes, mais tenentes que generais e mais generais que almirantes, para simplificarmos o longo e detalhado quadro da hierarquia militar (ver verbete “hierarquia”, Ferreira, 1999). Interessa-nos menos, no entanto, o sargento como patente, e mais o sargento como status social, papel no mundo, imagem de autoridade, estereótipo, símbolo de poder e mesmo estado de espírito. A palavra vem do francês antigo, sergent, que significa servidor. Ser sargento é ser mandado e saber mandar; é ter um chefe e vários subordinados; é estar com os pés no mundo de quem obedece e a cabeça no universo de quem dá as ordens, razão pela qual está aquele que é sargento muito mais próximo da gente do povo do que das elites. “Manda quem pode e obedece quem tem juízo”, diz o preceito popular. O sargento tanto pode quanto tem juízo suficiente para saber que não pode tanto assim. A língua portuguesa ainda registra a palavra sargentão, de sentido depreciativo e referindo-se ao “oficial sem curso, ou que, tendo-o, possui cultura reduzida” (Ferreira, 1999). E pergunta-se: os sargentos latino-americanos condecoram a literatura, ou são quase todos a imagem falida, patética e risível dos caudilhismos que se instalaram em vários países do continente?

2. Histórico

Las aventuras del sargento Mike Goodness y el cabo Chocorrol, de 1995, do escritor e cartunista mexicano Rafael Barajas, conhecido como “El Fisgón”, é o retrato de uma espécie de Hitler mexicano acompanhado de seu estúpido assecla, o cabo Chocorrol. Outra aventura, esta mais antiga, porém não menos impiedosa em sua crítica ao militarismo, chama-se El sargento Felipe, novela de 1899 do escritor venezuelano Gonzalo Picón Febres (1860-1918), diplomata, cônsul em vários países e membro da Academia Venezuelana. Ainda encontraremos, se recuarmos dois séculos, o famosíssimo e engraçadíssimo El sargento Canuto, comédia de 1839, do peruano Manuel Ascensio Segura (1805-1871), dramaturgo considerado dos mais importantes do século XIX. Ascensio não apenas descreveu a vida militar de fora; viveu-a, e bravamente, quando combateu ao lado de seu pai na batalha de Ayacucho e quando se tornou capitão em 1831. Logo depois começou a escrever. Ainda veio a tornar-se, mais tarde, em 1842, e passadas outras batalhas, tenente coronel da Guarda Nacional. Sua produção literária inspirou-se, sobretudo, na consecução de um único plano: retratar a sociedade peruana do século XIX e, principalmente, o segmento militar, com a sua prepotência, o seu pendor para as intrigas e a sua força de corrupção. Ascensio Segura representou, em suas comédias, muitos personagens reais, sim, mas, como adverte Bella Josef, “como tipos sociais, entenda-se, não como caracteres individuais” (Josef, 1971, p. 56). O seu sargento Canuto não passa, é claro, de mais um militar ignorante, bufão e orgulhoso — um tipo social.

A condição da figura do sargento como mito latino-americano é, no entanto, fugidia, à exceção, talvez, de um específico personagem, o protagonista do romance Sargento Getúlio, do escritor João Ubaldo Ribeiro. Dada a sua história de vida, sintetizada toda ela no percurso de uma travessia pelo sertão por conta de uma importante tarefa, Getúlio consegue atingir para nós, aqui, a dimensão mítica que procuramos — razão pela qual o encaixamos no centro deste verbete.

3. Campos de aplicação

Getúlio Santos Bezerra é o narrador-protagonista da novela de João Ubaldo, que começa com uma esclarecedora epígrafe: “Nesta história, o Sargento Getúlio leva um preso de Paulo Afonso a Barra dos Coqueiros. É uma história de aretê”. Uma história de aretê é uma história em que honra e virtude, juntas, contribuem decisivamente para a consecução de uma tarefa. Segundo Maria Lúcia Aragão, citada por Zilá Bernd, em seu artigo “Um certo Sargento Getúlio” (Bernd, 2001, p. 13), aretê traz a marca do herói — aquele que tem consciência de seu valor e do valor da missão a ser cumprida. O herói carrega às costas a responsabilidade de perpetuar os valores da comunidade que representa e que lhe atribuiu a marca e o papel de herói. “Sua missão maior”, escreve Maria Lúcia, “é lutar pela honra de sua raça e defender com a própria vida os seus princípios éticos” (Aragão, 1988, p. 104, cit. por Bernd, 2001, p. 13).

O personagem sargento Getúlio não apenas cumpre seu papel, como morre justamente por tê-lo cumprido. E que papel é esse? Sua simples missão: levar um preso daqui para lá, de Paulo Afonso, norte da Bahia, a Barra dos Coqueiros, em Sergipe, Brasil. Emana a ordem de levar o preso de um chefete local, um tal Acrísio Antunes, representação cristalina do coronelismo que tanto marcou e ainda marca a região. Acrísio, embora não apresente voz própria em todo o romance e mesmo no filme homônimo do diretor Hermano Penna,[1] teve sua etimologia rastreada por Zilá Bernd, que assim esclarece: “Acrísio, cujo nome significa, etimologicamente, ‘o que não sabe julgar ou discernir’” (Bernd, 2001, p. 20). O nome Acrísio, levando-se em conta este sentido, cairia melhor na pele do próprio Getúlio, perdido em si mesmo, cego para o que sucede à sua volta e para as mudanças do mundo. Getúlio, como bem observou Stella Costa de Mattos, é representante da classe dos mandados e conduz o seu preso, representante, por sua vez, da classe dos mandantes (Mattos, 1985, p. 46).

Acompanham Getúlio seu motorista Amaro, amigo de longa data, e o próprio preso, o “cachorro bexiguento”, “cão da pustema apustemado”, “pirobo semvergonho, pirobão sacano xibungo bexiguento chuparino do cão da gota do estupor balaio” (Ribeiro, 1982, p. 27) — assim chamado porque Getúlio não lhe dá nome, o que equivale a dizer que o preso, de fato, não carrega nome algum. O sargento, além dos xingamentos, ainda se refere ao seu “pirobo semvergonho” como o “filho de uma mãe com vinte pais” (Ribeiro, 1982, p. 68). Viajam os três num carro antigo, baleado, enferrujado e lento, referido como um velho hudso (Hudson). No meio do caminho, Getúlio recebe uma contra-ordem: reconduzir o preso a Paulo Afonso e abortar a missão. A contra-ordem, recebe-a não pessoalmente, de seu chefe Acrísio, origem da ordem inicial, mas de mensageiros que lhe vão surgindo pelo caminho. O sargento, não obstante os recados vindos diretamente do chefe, recusa-se a incorporar a nova ordem — e desse modo incorporar-se à nova ordem. Dada a sua obstinação, a sua ignorância, a sua fidelidade à palavra viva de Acrísio, Getúlio vai contra a contra-ordem e decide enfrentar as conseqüências. É este o argumento do livro.

Que não se pense, porém, que a recusa de Getúlio advém de um impulso de livre vontade. Não. Getúlio, e neste aspecto reside uma boa parte de sua condição mítica, está encerrado em um destino traçado, onde pouca ou nenhuma liberdade de ação lhe é outorgada. “Imerso no continuum mítico”, escreve Stella Costa de Mattos, “o devir humano se reveste de segurança, por seguir o que o modelo prescreve, mas se despe, em conseqüência, de um certo grau de liberdade” (Mattos, 1985, p. 25). O modelo de Getúlio é o macho-herói.

Getúlio está sempre a meio caminho. O que se disse ao início acerca da posição indecisa e ambígua da patente de sargento no quadro do poder militar, aliado à circunstância de o personagem Getúlio estar, na história, sempre a caminho, e justamente no meio do trajeto quando toda a conjuntura se transforma, constitui mais uma peça a ser levada em conta na construção de sua roupagem mítica, porque Getúlio não suporta, e não sabe, estar a meio caminho do que quer que seja. E, no entanto, está. “Não gosto que o mundo mude”, diz ele, “me dá uma agonia” (Ribeiro, 1982, p. 94). Getúlio é sargento (sergent), e se imbui com tamanha obstinação (que não deixa de ser uma equivalente da hybris grega, aponta Zilá Bernd) da condição de servidor de seu chefe, que chega ao ponto de o trair justamente por pretender servi-lo de modo absoluto, ou seja, servir unicamente à presença viva de Acrísio, sem intermediações ou representações. Servir à palavra do chefe, como resumiu tão bem Zilá Bernd, é uma razão de existir, e “aceitar a anulação da missão (...), uma impossibilidade existencial, pois implica renunciar à sua razão de existir” (Bernd, 2001, p. 16). Se as razões para Getúlio estar ali são todas ligadas à sua missão de levar o preso e assim cumprir a ordem, como lidar com o desaparecimento dessa missão? As conseqüências existenciais não são menos existenciais por estarem atreladas à manutenção de um determinado papel social, fadado à extinção. Getúlio sabe “que a ordem de abortar a missão representa o desaparecimento de sua ‘profissão’”, escreve Zilá Bernd, e conclui: “... não haverá mais espaço para o papel que desempenha no cenário do sertão” (2001, p. 16).

Getúlio encontra-se também a meio caminho entre a sua consciência e uma determinada lei, que não está escrita, mas no mínimo consolidada pelo chamado “espírito político local”, que não é outra coisa senão a capacidade de transitar entre ideologias mais ou menos convenientes, à margem de qualquer consciência. Acrísio, não pessoalmente, remete a contra-ordem baseado não mais na sua lei, que Getúlio conhece e vem aplicando a valer, mas em uma outra, segundo a qual passa a ser mais importante, politicamente, soltar o preso e esquecer a coisa. Getúlio aferra-se à primeira lei. A partir dessa configuração, Zilá Bernd aponta para o mito de Antígona e o relaciona ao sargento de Ubaldo, que não acata a contra-ordem de Acrísio do mesmo modo como a irmã de Polinices não obedece ao furioso Creonte. Estão ambos movidos por aretê, seja procedendo aos ritos fúnebres proibidos pela nova lei, seja procedendo à entrega do preso, também cancelada por uma nova conveniência. Getúlio e Antígona sabem que vão morrer, e sabem também que não suportariam não morrer. “Deus me livre que eu não leve o coisa comigo e não entregue, o que é que eu vou ficar pensando depois, se já tenho pouco para pensar e o pouco que eu tenho vai inchando na minha cabeça” (Ribeiro, 1982, p. 101).

A desobediência de Getúlio, no entanto, antes de o levar à destruição, leva-o a uma espécie de existência nova e amplificada. “O que é que eu fiz até agora? Nada. Eu não era eu, era um pedaço de outro, mas agora eu sou eu e sempre e quem pode?” (Ribeiro, 1982, p. 141). Obedeço, existo; se não obedeço, existo mais ainda..., antes de deixar de existir totalmente. “Aquele homem que o senhor mandou não é mais aquele. Eu era ele, agora eu sou eu” (Ribeiro, 1982, p. 152), diz Getúlio, já se sentindo abandonado e perdido, sim, mas, pela primeira vez, sabendo de si: “Agora eu sei quem eu sou” (Ribeiro, 1982, p. 154). Este “agora” configura, na história, um divisor de águas. Zilá Bernd aponta a migração de Getúlio, “da condição de herói épico a herói trágico” (2001, p. 19). Stella Costa de Mattos, referindo-se a uma análise de Kolakowski, observa a emergência, em Getúlio, de uma consciência reflexiva a se impor sobre a consciência mítica de outrora. A consciência reflexiva de Getúlio, no entanto, é epidérmica e embrionária, o que o faz migrar “da plenitude da segurança à precariedade e à progressiva solidão” (Mattos, 1985, p. 77).

4. Síntese crítica

Mas Getúlio Santos Bezerra é um personagem da literatura. Em que momento a sua história de vida se torna aquele modelo de que todo mito é portador? No momento em que a única saída para a sua condição dúbia insuportável se revela como sendo a morte? Ou Getúlio é, desde o início, um personagem mítico? Getúlio, menos que um mito, talvez constitua aquele que vive imerso num mundo mítico e nele se afoga — um mundo mítico cujos elementos coincidem com aqueles que caracterizam o mundo do sargento. Getúlio, talvez não menos, mas antes que um mito, vive o mito de si mesmo e somente para si mesmo.

Enquanto não está diante do impasse, enquanto sua missão permanece uma linha reta sem qualquer dilema, Getúlio é o herói épico e o seu mundo é perfeito, transparente e coeso. Sua familiaridade com Sergipe abarca o mundo todo, porque Sergipe é o centro do mundo e, tal como o universo mítico, acessível em seu todo através da referência ou do pertencimento a uma de suas partes. Getúlio vive a totalidade de maneira ainda mais subjetiva, porque não apenas sente que o mundo inteiro é Sergipe como também que Sergipe surge como uma terra de machos e ele, Getúlio, como o grande macho da terra. “Poder, valentia, macheza”, diz Stella Costa de Mattos, “são as qualidades que o herói se atribui e atribui ao seu mundo, numa identificação entre o eu, o território e a totalidade” (1985, p. 56).

O mundo de Getúlio significa Sergipe, sim, mas preferencialmente o Sergipe de antes, de um tempo anterior, no qual se viviam situações mágicas, e também o Sergipe de dentro, do interior dos matos, distante da modernidade de Aracaju, com a qual Getúlio nunca se deu. Há aqui, como aponta Stella Costa de Mattos, uma vinculação do antigo com o mágico e com o primitivo (1985, p. 59), convergindo as três noções para o ideal de Getúlio: aquele lugar e aquele tempo em que ele, como macho, gostaria de ter vivido começam a invadir a sua realidade imediata e transformam-se naquele lugar e naquele tempo que ele, já um fugitivo, já virado em herói trágico, vai aos poucos, à medida que avança em seu caminho, ressuscitando.

Já próximo do fim, da entrega do preso e da suposta morte matada, e inteiramente consumido pelo mito do macho-herói que criou em torno de si mesmo, Getúlio delira e atira-se à narrativa — épica — do “Regimento dos Encourados”, espécie de grande exército mítico formado por três grandes machos da imaginação de Getúlio: o Capitão Geraldo Bonfim do Cansanção, em luta contra São Jorge; o Major Jacaré de Carira, a vencer “duzentos batalhãos de baianos”; e o Capitão Rosivaldo da Silva com Onça, que, em combate, chegou a matar quarenta e dois homens por minuto (Ribeiro, 1982, p. 141-146). Já próximo do fim, Getúlio, em seu delírio, vive duas vidas: a vida de glórias de cada uma de suas três caras-metades e, ao mesmo tempo, a de quem está a ser perseguido, como bandido perigoso e louco, por toda a força policial de Sergipe. É porque vive a primeira com ardor épico que consegue passar incólume pela segunda, que já não significa nada nem lhe diz respeito, porque é a vida de um outro que ele era e não é mais. “Eu era ele, agora eu sou eu” (1982, p. 152), anuncia. E Getúlio só não consegue ser mais que um mito para si mesmo porque fez consigo mesmo o que somente outros podem fazer, porque ousou penetrar, com a sua fala, mesmo que por apenas um instante, o suficiente para lhe calar a voz, é verdade, naquele terreno onde os mitos não circulam: a narrativa da própria morte.

5. Autor: Juva Batella

6. Ver também: Cangaceiro; Coronel; Doutor; Jagunço; Padre; Sertão; Viajante.

7. Bibliografia

7.1. Bibliografia crítica

Aragão, Maria Lúcia. “Sargento Getúlio: uma história de Aretê”. In: Caleidoscópio. São Gonçalo: Fac. Integrada São Gonçalo, nº 8, p. 104-110, 1988. Citado por Bernd, Zilá. “Um certo Sargento Getúlio”. In: Bernd, Zilá & Utéza, Francis. O caminho do meio — uma leitura da obra de João Ubaldo Ribeiro. Porto Alegre: Ed. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, 2001, p. 13-24.

Bernd, Zilá. “Um certo Sargento Getúlio”. In: Bernd, Zilá & Utéza, Francis. O caminho do meio — uma leitura da obra de João Ubaldo Ribeiro. Porto Alegre: Ed. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRGS, 2001, p. 13-24.

Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico, Séc. XXI, versão 3.0, nov. 1999.

Josef, Bella. História da literatura hispano-americana. Petrópolis, Rio de Janeiro: 1971.

Mattos, Stella Costa de. Sargento Getúlio — uma história de aretê. Instituto de Letras e Artes, Pós-graduação em Lingüística e Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, dez. 1985, sob a orientação de Regina Zilberman.

7.2. Bibliografia literária

Ribeiro, João Ubaldo. Sargento Getúlio. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

7.3. Bibliografia eletrônica



[1] Sargento Getúlio — Direção: Hermano Penna; realização: Blimp Film e Embrafilme; roteiro: Hermano Penna e Flávio Porto; diálogos adicionais: João Ubaldo Ribeiro; com: Lima Duarte, Fernando Bezerra, Orlando Vieira, Flávio Porto, Ignês Maciel Santos; direção de fotografia: Walter Carvalho; música: José Luiz Penna, Tiago Araripe, Paulinho Costa; som direto: Mario Masetti; trilha musical: Papa Poluição; cenário, figurino, maquiagem: Percival Rorato; eletricista e maquinista: Joel Queiroz; edição e montagem: Laércio Silva; direção de produção: Álvaro Pedreira.