"O cotidiano em Londres inspira a ficção — Hanif Kureishi
visita a intimidade de famílias inglesas", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1 de fevereiro de 2003.
Resenha sobre livro
O dom de Gabriel, de Hanif Kureishi, ed. Companhia das Letras, trad. Otacílio Nunes Jr.
O dom de Kureishi não é apenas escrever romances, mas pintar, com a sua escrita, quadros de cores fortes. Seu tema apaixonado é a realidade esquizofrênica dos imigrantes das ex-colônias inglesas na vida metropolitana de Londres — assunto de seu primeiro e famoso romance, O buda do subúrbio, e, de certa forma, dos dois deliciosos roteiros que fez para o diretor Stephen Frears: os filmes Minha adorável lavanderia, indicado para o Oscar em 1997, e Sammie and Rosie. Seu outro tema é a realidade de famílias de classe média despedaçadas pela desconfiança, pelo adultério, pelo homossexualismo tardio, pela depressão em pais e em filhos, pela indiferença e pela falta de dinheiro. É este o quadro de sua novela Intimidade, inteiramente construída em função de seu final, que é também o seu início, desenvolvendo-se todo o livro sobre flashbacks e sobre um tempo presente em que se adia e adia a decisão — a decisão do pai, Jay, de deixar a casa, a mulher e os dois filhos, para ir à luta, sabe-se lá como, sabe-se lá com quem. Assim é neste O dom de Gabriel, livro que, de certo modo — com outros personagens e diferente trama —, começa onde o outro termina: a saída do pai.
Os quadros de Hanif Kureishi também ilustram a história de famílias mais ou menos relacionadas com o ambiente artístico de Londres: o pai da história de Intimidade é roteirista, com amigos roteiristas e amigos pintores e atores, performers, videomakers, cineastas e dramaturgos. O pai de Gabriel, Rex, foi um roqueiro das antigas, baixista da pesada, muito famoso no passado, amigo de Keith Richards, com todos os palcos do mundo aos pés, doidão até dizer chega. Um dia, no meio de um show no norte da Finlândia, Rex animou-se e, estimulado por uma fã que lhe exibia os peitos, começou a saltar no escuro, calçando aquelas altíssimas botas com luzes no calcanhar. Caiu do alto de si mesmo, torceu o tornozelo, ficou de quarentena, foi substituído e nunca mais recontratado. Tornou-se, num primeiro momento, uma ex-estrela do rock, para em seguida transformar-se num ser nada mais que anônimo, duro, decadente, ocioso, beberrão e cheio de manias, um quadro romântico por excelência: apaixonado, angustioso e belo à sua maneira — exótica e primitivamente belo.
Os amigos de Rex encontram-se entre as pessoas da moda em Londres, artistas bem e mal-sucedidos cuja principal característica não é propriamente a moderação naquilo que dizem e fazem. São os figurantes de um universo de altos e baixos, em que dinheiro e fama não passam de tinta à base de água e “um punhado de espuma”. A mulher Christine, mãe de Gabriel, antes tão apaixonada, larga mão, bota o marido para fora e tenta recomeçar a vida. O quadro familiar, até o dia em que Rex e Christine se separam, está pronto e é barroco: cheio de excessos de ambos os lados, contrastes e exuberâncias — Rex em casa sem fazer nada, bebendo, discursando para a louça na pia e escondendo-se de Christine, por sua vez aos berros e dizendo-se cansada de tudo, de Rex, dos artistas, de sua “arte” e de sua lenga-lenga.
Mas o livro não é apenas este quadro; é outro, que por um lado é neoclássico: elegante, racional e equilibrado, e por outro impressionista. Trata-se de Gabriel, o filho de quinze anos, inteligente e sensível, sempre pronto a ajudar o pai a reerguer-se, começar a trabalhar como professor de guitarra e, quem sabe, uma vez refeito, limpo, barbeado e sóbrio, reconquistar a mãe. Gabriel, no entanto, tem lá o seu mundo: conversa com Archie, seu irmão gêmeo, morto aos dois anos e meio e tão semelhante a ele que em determinados momentos ninguém podia saber quem era quem. Um desses determinados momentos foi justamente a morte de Archie, ou de Gabriel, ninguém sabe. Decidiu-se então que quem morreu foi Archie, e não se falou mais no assunto. Durma uma criança com um barulho desses...
Gabriel também pinta quadros o tempo todo, e não apenas quando tem o pincel à mão. Faz daquilo que vê uma pintura e em seguida transforma a pintura em algo que possua novamente as três dimensões do quotidiano. E Gabriel só não escreve e conta a sua própria história porque é um narrador em terceira pessoa que o faz. As cores e as luzes da narrativa são, porém, de Gabriel. Kureishi conseguiu aplicar o tom certo ao texto; conseguiu, sem perder o rigor, a precisão e a riqueza, colocar o leitor atrás do olhar de um menino de quinze anos, relativamente precoce e absolutamente espirituoso, e ao mesmo tempo rabiscar o painel de uma divertida faceta da sociedade londrina em sua relação com alguns restos mortais da geração artística das décadas de 60 e 70.