24 de dezembro de 2007

O Burro e a Flauta

"Jogada no campo estava desde faz tempo uma Flauta que já ninguém tocava, até que um dia um Burro que passeava por ali soprou forte nela fazendo-a produzir o som mais doce de sua vida, quer dizer, da vida do Burro e da Flauta.

Incapazes de compreender o que tinha acontecido, pois a racionalidade não era o seu forte e ambos acreditavam na racionalidade, se separaram rapidamente, envergonhados do melhor que um e outro tinham feito durante toda a sua triste existência."

Augusto Monterroso, "O Burro e a Flauta", in A ovelha negra e outras histórias, trad. Millôr Fernandes, Rio de Janeiro, Record, 1983.

14 de dezembro de 2007

"O Comboio-do-Sono (peça em 1 ato)"

Eu tenho de escrever no blogue-cãozinho TODOS OS DIAS. Isso é o que eu tenho de fazer. Eu chego logo de manhãzinha, bem cedo (dormi mal, já explico por quê), ligo o laptop, olho para o blogue-cãozinho e bocejo. Ele olha para mim e diz: “Você tem de escrever em mim hoje”. Eu digo a ele: “Mas eu já escrevi em você na sexta-feira passada…”. “É pouco”, diz ele. “Você tem de escrever em mim TODOS OS DIAS. Nem que seja uma ou outra coisinha”. “Muito bem”, eu digo. “Vamos a isso.” Hoje eu vou escrever só para desabafar e colocar para fora o tanto sono que eu tenho.

O Comboio-do-Sono

(peça em 1 ato)


Cenário: casa do Juva e da Te, de madrugada
Tema: Clarinha não dorme, o Juva não dorme
Personagens que atuam: o Juva, a Clarinha, a Pipoca (Alice)
Personagem que dorme: Te (representada aqui pelo símbolo, ou melhor, para sermos mais exatos, pela metonímia “Os Peitos”)

CENA 1 (1h da manhã)

(O Juva dorme, Clarinha dorme, Pipoca dorme, Os Peitos dormem. O relógio tiquetaqueia. Silêncio em Santo Amaro de Oeiras. Clarinha dá um berro. O Juva abre os olhos, arregalando-os na escuridão. Os Peitos não se mexem. O Juva pensa: “Clarinha quer leite… Acordo ou não acordo Os Peitos, para que eles cumpram o seu trabalho de amamentar-pacificar-embalar-e-adormecer-a-criaturinha-em-choro?”. E depois o Juva ainda pensou: "Não. Trato eu disso". E lá foi o Juva tratar disso ele-mesmo, levantando-se lentamente e se encaminhando para o quarto da Clarinha.)

Juva:

Clarinha… Clarinha... do-do-da-da… Hora de nanar… Papai ‘tá aqui, papai-lindo-de-morrer-‘tá aqui… Papai vai salvar Clarinha… Papai tem a chupeta-salvadora… Nanar… ná, ná, ná…

Clarinha:

Ahhrrr… Ãaaaiinnncs… Ãaaaiinnncs… Ãaaaiinnncs!!!

Juva:

Chegou o papai-herói-do-meu-coração…O papai-herói-mais-lindo-do-mundo…

Clarinha:

Dá… dá… dá… Dá!!! Úuuuu! Dú! Dú!! Dú!!! Dú!!!! Ãaaaiinnncs!!!!!

Juva:

OK, OK, OK… Papai vai dar leitinho-inho-inho pra Clarinha-inha-inha…

(O Juva desce correndo as escadas na escuridão da casa, prepara o biberão [do francês biberon, o mesmo que mamadeira, de mamar + deira: garrafinha provida de chupeta, para amamentar crianças artificialmente), sobe correndo as escadas, fecha a porta do quarto da Clarinha, para que Os Peitos não acordem, tira a Clarinha do berço, senta-se no sofazinho, coloca a Clarinha no colo e dá o biberão para a Clarinha, que sorri.)

Clarinha:

Ah… Ah… (mama a mamadeira) Ah… Ah... (e dá uma gargalhadinha)

Juva:

Bom… bom…

(Passam-se vinte minutos.)

Juva (retirando a mamadeira vazia da boca da criatura):

Agora vamos arrotar…

(A Clarinha indigna-se, abre o berro e começa a berrar feito uma doida. O Juva dá a chupeta à Clarinha. A Clarinha pára de berrar feito uma doida. O Juva levanta-se com a Clarinha ao colo e começa a bater nas costas da Clarinha.)

Juva:

Arrota, Clarinha… Arrota…

(A Clarinha não arrota. O Juva bate um pouco mais rapidamente nas costas da Clarinha.)

Juva:

Arrota, Clarinha… Arrota…

(A Clarinha não arrota. O Juva bate com um pouquinho de nada de mais força nas costas da Clarinha.)

Clarinha:

Rhuhuaumrrrr [o mesmo que arroto: erupção ruidosa de gases do estômago pela boca; eructação].

(O Juva coloca a Clarinha no berço, a Clarinha ri e começa a bater as perninhas, o Juva fica tenso.)

Juva:

Não, Clarinha… Clarinha... do-do-da-da… Hora de nanar… Papai-lindo-de-morrer-‘tá aqui… Nanar… Ná… ná... ná…

Clarinha:

Dá… dá… dá… Dá! Ú! Ú! Dú! Dú!! Dú!!! Dú!!!! Ãaaaiinnncs!!!!!

Juva:

Clarinha… Clarinha... Não…

(Passam-se, assim, quarenta minutos, ao fim dos quais a Clarinha fecha enfim os olhinhos e ferra no sono. O Juva sorri, volta para a cama e tenta dormir.)

CENA 2 (2h da manhã)

(O Juva continua tentando dormir, mas sente que perdeu o Comboio-do-Sono [comboio: do fr. convoi, convoyer: série de trilhos puxados sobre vagões por uma locomotiva; trem, pronuncia-se combóio]. O Juva remexe-se na cama e tenta puxar de volta para si o edredon [variante de edredão: cobertura acolchoada para a cama, com recheio de penugem, ou paina, ou algodão, o mesmo que cobertor]. O Juva consegue recuperar a parte que lhe cabe do edredão. Os Peitos não se mexem. O Juva espera pelo próximo Comboio-do-Sono. Enquanto espera, conta biberãos. O relógio tiquetaqueia. Silêncio em Santo Amaro de Oeiras.)

CENA 3 (5h da manhã)

(Clarinha dá um berro. O Juva abre os olhos, arregalando-os na escuridão, e não acredita no que ouve. Olha para o lado, em busca de alguma explicação. Os Peitos não se mexem. O Juva pensa: “Clarinha quer leite de novo? De novo?!”. O Juva espreguiça-se, levanta-se lentamente e vai para o quarto da Clarinha.)

(O Juva aproxima-se do berço e olha cuidadosamente lá para dentro. A Clarinha de olhos fechados... O Juva pensa: “Não foi nada… As crianças às vezes dão esses berros, mas voltam logo a dormir”. O Juva gira nos calcanhares e, sorrindo levemente ao se imaginar a si mesmo novamente deitado, se dirige para a saída do quarto da Clarinha.)

Clarinha (abrindo os olhinhos):

Ahhrrr… Ãaaaiinnncs… Ãaaaiinnncs… Ãaaaiinnncs!!!

(O Juva estaca, chocado, e volta-se novamente, em direção ao berço da Clarinha.)

Clarinha:

Dá… dá… dá… Dá! Dú!! Dú!!! Dú!!! Ãaaaiinnncs!!!!

Juva (respirando fundo e tentando manter a calma):

Clarinha… Clarinha... do-do-da-da… Hora de nanar… Papai-lindo-de-morrer-‘tá com sono também… Papai-lindo-de-morrer quer nanar também… Nanar, viu?… Ná… ná... ná…

(A Clarinha dá uma gargalhadinha, saracoteia as perninhas e estende os bracinhos.)

Juva:

Não... não… Hora de nanar. Na-nar. Ná… ná... ná…

(A Clarinha abre o berreiro e chora-a-plenos-pulmões. O Juva começa a suar [temperatura nesta época do ano, em Santo Amaro de Oeiras, às 5h10m da manhã: 8 graus]. O Juva pensa na possibilidade de mais um biberão: “Dou-não-dou-dou-não-dou-dou-não-dou? DOU!”.)

(A Clarinha berra ainda mais alto, ainda mais alto, ainda mais alto.)

(O Juva dispara em direção à saída do quarto da Clarinha, desce correndo as escadas na escuridão da casa, prepara outro biberão, sobe correndo as escadas, entra no quarto da criatura-aos-berros, fechando a porta para que Os Peitos não acordem, tira a criatura-aos-berros do berço, senta-se no sofazinho, coloca a criatura-aos-berros no colo, posiciona o biberão na entrada da goela da criatura-aos-berros e respira fundo. A criatura-aos-berros volta num segundo a ser a Clarinha-coisa-mais-linda-do-papai-maravilhoso e sorri, extasiada. Os Peitos dormem.)

Clarinha:

Ah… Ah… (mama a mamadeira de olhos fechados)

Juva:

Bom… bom…

(Passam-se vinte minutos.)

Juva (retirando a mamadeira da boca da criatura):

Agora vamos arrotar…

(O Juva olha para a Clarinha e vê que a sua Clarinha-coisa-mais-fofa-e-gorda-da-face-do-planeta pegou no sono enquanto mamava. O Juva pensa: “Os bebês, depois que mamam, precisam arrotar, senão…”. O Juva então se levanta do sofazinho, com a Clarinha ao colo, e começa a bater nas costas da Clarinha.)

Juva:

Acorda, Clarinha… Acorda…

(A Clarinha não acorda, tampouco arrota. O Juva bate um pouco mais rapidamente nas costas da Clarinha.)

Juva:

Acorda-arrota, Clarinha… Acorda-arrota…

(Passam-se vinte minutos.)

(A Clarinha não acorda-arrota. O Juva bate com um pouquinho de nada de mais força nas costas da Clarinha. Nada. O Juva suspira e pensa: “Eu dei a ela uma oportunidade para arrotar; ela não arrotou, paciência”. O Juva coloca delicadamente a Clarinha no berço, cobre-a com o cobertorzinho [o mesmo que edredãozinho] e se dirige lentamente para a porta, para o corredor, para o seu próprio quarto, para a sua própria cama, para a sua própria metade da cama, para a sua própria metade do edredão, deita-se e tenta dormir. Os Peitos dormem.)

CENA 4 (6h da manhã)

(O Juva está deitado na sua cama, parado, à espera do próximo Comboio-do-Sono, que-não-vem-que-não-vem-que-não-vem. E o Juva começa então a pensar que está com fome, e começa a pensar no café-da-manhã, café-com-pão-café-com-pão-café-com-pão, e também no Comboio-do-Sono, que-não-vem-que-não-vem-que-não-vem. O Juva dorme enfim.)

CENA 5 (6h30m da manhã)

Pipoca (Alice) (parada no meio do corredor):

Mamã… [o mesmo que mamãe] Mamã… Mamãããã!

(O Juva abre os olhos, arregalando-os em plena escuridão do quarto, e pensa, quase-ainda-dormindo: “A Clarinha… Não, a Clarinha ainda não sabe falar…”. O Juva acorda-assim-assim, espreguiça-se, levanta-se e se dirige ao corredor. Os Peitos dormem.)

Juva (aproximando-se da Pipoca):

Pipoca? O que houve, minha flor? Hã? Teve um pesadelo?

Pipoca (com voz de choro):

Papá [o mesmo que papai]…

Juva (bocejando):

Sim, minha flor. O que houve?

Pipoca (começando a chorar baixinho):

Estou com imensa saudade das minhas amigas da escola [imensa saudade: o mesmo que muita, muita, muita saudade mesmo]… E por isso não estou a conseguir dormir…

Juva (chocado):

Minha flor, são seis e meia da manhã. Essas suas imensas saudades devem ser vontade de fazer xixi. Vamos fazer xixi.

(O Juva vai com a Pipoca para a casa-de-banho [o mesmo que banheiro], senta a Pipoca na sanita [o mesmo que vaso sanitário] e espera.)

Pipoca (já dormindo):

Xiiiiiiiiiii [o mesmo que fazer xixi].

(O Juva passa o papel higiénico no pipi [o mesmo que xibiuzinho] da Pipoca, sobe as cuequinhas [o mesmo que calcinhas] da Pipoca, sobe o pijaminha da Pipoca e leva a Pipoca, já adormecida, para a sua caminha. Cobre a Pipoca e retorna rapidamente para o seu quarto, para a sua cama-maravilhosa, para o seu edredão, a ver se consegue chegar a tempo de não perder o próximo Comboio-do-Sono, que, no entanto (bolas!), havia acabado de passar. O Juva deita-se. O Juva remexe-se na cama. O Juva vira-se para um lado, cansa-se desse lado, vira-se para o outro lado, começa e pensar no que é que escreverá para o seu blogue-cãozinho nesta sexta-feira, tem enfim uma idéia, começa a pensar nessa idéia com animação, olha para o relógio, que tiquetaqueia no silêncio de Santo Amaro de Oeiras, e não dorme. Os Peitos, Os Peitos dormem.)

CENA 6 (7h da manhã)

(O Juva continua a remexer-se na cama, remexendo pensamentos e à espera de um Comboio-do-Sono que afinal não veio. Os Peitos dormem. Até que…)

Clarinha:

Ahhrrr… Ãaaaiinnncs… Ãaaaiinnncs…

(O Juva, de olhos bem abertos, levanta-se totalmente desperto, sai do seu quarto, fecha a sua porta e entra no quarto da Clarinha, fechando a porta de modo a que Os Peitos não acordassem.)

Clarinha:

Dá… dá… dá… Dá! Dú! Dú!! Dú!!! Dú!!!! Ãaaaiinnncs!!!!!

Juva (abrindo um sorriso-do-tamanho-de-um-bonde):

Bom dia, Clarinha-batatinha… Bom dia… Papai veio te salvar… te salvar… te salvar…

(O Juva tira a Clarinha do berço, troca a fraldinha-cheinha-de-xixi-da-Clarinha por uma nova-fraldinha-sequinha-sequinha e senta-se no sofazinho com a Clarinha. O Juva brinca de do-do-da-da-plim-plim-plum-plum com a Clarinha, que ama brincar disso. Passa-se uma hora, toda ela cheia de do-do-da-das e plim-plim-plum-pluns.)

CENA 7 (8h da manhã)

(Eis que a porta do quarto da Clarinha se abre, revelando a presença da…

Pipoca:

Papá… Não estou a conseguir dormir. Dói-me imenso este pé aqui.

Juva:

Bom dia, minha flor. Deixe ver o pé. Onde é que dói?

Pipoca:

Aqui, ó (e aponta para o pé). Tenho aqui uma comichão [o mesmo que coceira].

Juva:

Isto não é nada. Já passa.

Pipoca (indignada):

Mas eu não estou a conseguir dormir, papá!

Juva:

Não precisa dormir mais, minha Pipoflex-flip-flip. Já são horas de acordar.

Pipoca (fazendo carinha de coro):

Quero a mamã [o mesmo que Os Peitos]…

Juva:

Vamos deixar a mamãe dormir. Mamãe trabalhou muito ontem. Mamãe está cansada. Vamos tomar o nosso pequeno-almoço: eu, você e a nossa Clarinha-batatinha.

(Pipoca e Juva, com a Clarinha-batatinha ao colo, descem para a cozinha e começam a preparar o pequeno-almoço. Já acabavam de comer quando ouvem um som no andar de cima.)

Pipoca:

É a mamã! É a mamã!! Mamããã!!!

Clarinha:

Dá! Dá!! Dá!!! Dú! Dú!! Dú!!! Ãaaaiinnncs!!!!

Os Peitos (bocejando e sorrindo ao mesmo tempo):

Bom dia a todos!

Juva:

Bom dia, amor! Dormiu bem?

Os Peitos (sorrindo o sorriso-mais-doce-do universo):

Ôoooooo…

Fim

16 de novembro de 2007

"O cimo da montanha mágica"

"O cimo da montanha mágica"

Um bosque oculto, a liberdade de não ler, uma coisa chamada A montanha mágica, e de que modo um grande debate consegue prenunciar o Horror. Em seguida, um duelo a pistola; em seguida, o surpreendente desfecho; em seguida, a Europa em cacos.

Isto não passa do espanto de um leitor que deseja compartilhar com outros um momento de felicidade narrativa. É o que em geral acontece quando se lê uma coisa que depois fica esquecida na lembrança, embora grudada e guardada nalgum canto da cabeça: o tempo passa, e sempre que se ouve falar daquilo que se leu, a coisa guardada mostra a sua cara. Esta semana mostraram-me as suas caras um bosque oculto, longe alguns quilômetros do sanatório Berghof, cenário principal e quase único de uma coisa escrita pelo Thomas Mann e chamada por ele A montanha mágica, e também, a tomar lugar no tal bosque oculto, um duelo entre dois homens, um duelo com pistola, talvez um dos mais inusitados e inesquecíveis duelos com que a literatura já desafiou os seus leitores.

Como a vontade de assuntar o duelo e contar o que sucedeu é bastante maior do que a consideração que se deveria ter por aqueles que ainda não leram mas pretendem ler ou por aqueles que estão lendo e desejam continuar a ler a festa literária que é A montanha mágica, fica aqui reafirmado o óbvio: a liberdade que tem o leitor de fugir para bem longe; o direito que tem o leitor de não ler o que está lendo agora. Dou a sugestão, por outro lado, como quem dá de ombros, talvez por não acreditar que alguma festa efetivamente se estrague quando são antecipados momentos importantes de romances que estão pelo meio — à exceção dos policiais, sim, mas não é este o caso.

O caso, aqui, é outro. A montanha mágica, romance publicado em 1924, aponta para uma Europa imediatamente anterior à explosão da Primeira Guerra; uma Europa que pode ser representada em parte, em sua parte mais fina e chique, pelo seleto grupo dos personagens que vivem hospedados nas elevadas regiões de Davos, nos Alpes suíços, entre os limites bastante amplos da propriedade pertencente ao sanatório Berghof, para tuberculosos. Toda a ação do livro se concentra nestas elevações, e estas elevações não permanecem soberanas e onipresentes, por quase todo o romance, à toa; estão ali para servir de contraste à vida burguesa e frívola da planície; para servir de contraste à perfídia dos momentos finais da história — momentos finais que esmagam e engolem, literalmente, o protagonista, Hans Castorp, jovem engenheiro de Hamburgo. Castorp vai para Berghof visitar o seu primo Joachim, pretendendo permanecer no sanatório, como visita, não mais que três semanas. Permanece sete anos.

Sete anos nas alturas permanece o jovem Hans Castorp, que, protagonista que é de um romance tido como exemplo eloqüente da categoria dos Bildungsroman, ou romance de formação, cresce e também se eleva como personagem, ganhando conhecimento de si e do mundo que o envolve. Acompanhamos o desenvolvimento não só da doença que Hans Castorp descobre oculta em seu peito mas também de suas aptidões filosóficas e morais, de seus gostos e devaneios literários e, principalmente, de sua inabalável vontade de aprender com quem sabia e podia lhe ensinar. Chegamos aí, não ao seu primo Joachim, tenente enfermiço e embrutecido pela tuberculose galopante, homem de alcances encurtados e unicamente absorvido pelas singelezas concretas da vida quotidiana e por sua aptidão para a obediência militar, mas a dois outros homens, também habitantes do elevado sanatório Berghof e suas redondezas: Lodovico Settembrini, que já lá estava quando chega Castorp, e o novato Leo Naphta, que surge mais tarde, pelo meio do livro, sendo apresentado formalmente ao leitor na página 415. Em suas mãos e sobre as palavras que trocam entre si estes dois homens é que se desenvolve o debate intelectual que constitui o centro nervoso desta coisa explosiva chamada A montanha mágica.

E o que é que tanto debatem Settembrini e Naphta? Estamos diante de dois homens informados, cultos e magistralmente versados na arte do parlatório, ou, dito de outro modo, duas criaturas de incorrigível espírito discursivo. O primeiro, um humanista, racionalista, classicista, escritor e biógrafo; o segundo, professor de línguas antigas, pequeno, magro, feio como o diabo, mas de uns olhos cinza-claros e de uma elegância no vestir que deixavam em desvantagem o alto e desengonçado Settembrini. É descabida a tentativa de se resumir um décimo que seja das querelas acadêmico-filosófico-religiosas havidas entre Lodovico Settembrini e Leo Naphta - cuja discussão, entre os vai-e-vens do quotidiano um pouco abestalhado do sanatório Berghof, dura quinhentas páginas compostas com intercalações de alguma ação. É descabida, sim, mas tentadora para um incauto resumidor. Eis então um resumo dos assuntos sobre os quais viviam discutindo o Settembrini e o Naphta. Tomemos água, e tomemos fôlego. Serão dez rounds a preceder o duelo final.

1. Settembrini abomina o sedentarismo que impera inoperante naquele sanatório, abomina a imobilidade, o ócio e a contemplação desinteressada do devir; elogia o trabalho, a razão e o empreendedorismo da espécie humana. Naphta torce a boca e cita uma espécie de hierarquia da perfeição, cujo ponto mais baixo é o moinho, ou seja, o local de trabalho, e o ponto mais elevado, o leito do repouso e mesmo a doença, que tem o condão de levar o homem ao encontro de si mesmo.

2. Settembrini ri, nervoso e horrorizado; Naphta lembra-o de que é na cama que se dá a contemplação isolativa do homem em sua união com Deus; é na cama que têm lugar os grandes arrependimentos e tomadas de consciência, porque é através da doença, que na cama ganha vulto, que o homem se torna mais humano. Ser homem, diz Naphta, é ser doente, porque o simples fato de estar doente é o que o torna homem. O homem destaca-se da natureza, e o que o distingue dela é uma coisa chamada Espírito. E é no Espírito que se baseia a dignidade do homem.

3. Settembrini, de olhos arregalados, acusa Naphta de praticar uma hierarquia orientalóide, que condena toda a atividade e apregoa o ócio e mesmo a enfermidade do corpo. É com estes argumentos, pergunta-lhe Settembrini, que espera convencer os jovens a se deixarem conduzir pelo espírito e nele depositarem a fé? É assim, declarando que a doença e a morte são nobres, ao passo que a saúde e a vida, aviltantes, que espera servir à humanidade? E se todos cessassem de agir?, pergunta-lhe o italiano, pasmado. Haveria no mundo a mais perfeita calma, sim, é verdade, mas também não haveria mais nada.

4. E a mística ocidental?, pergunta-lhe Naphta, de supetão. Que mística ocidental, professor? Ora, a mística ocidental, segundo a qual toda ação representa um erro, já que a tentação de agir ofende a Deus, que é o Único que deve, na Sua perfeição, agir. Não, não, meu caro Settembrini, continua Naphta. A possibilidade da salvação espiritual através do repouso e da não-ação é uma possibilidade que está diluída entre todos os homens, não só entre os orientais.

5. Settembrini dá dois pulinhos no chão e lembra que cabem ao homem ocidental a razão, a análise, a ação e o progresso, e não a cama, onde se espreguiça o monge. Já que o senhor falou no monge, interrompe Naphta, recordo-lhe que é ao monge que se deve a cultura do solo europeu, sem a qual Itália, França e Alemanha não passariam de um grande brejo fedorento e cheio de moscas. Se houve na nossa história trabalhadores dignos desse nome, eles foram os monges, complementa Naphta, inflando disfarçadamente o peito.

6. E diz Settembrini, de enfiada, que o professor não estava fazendo mais nada senão concordar com os valores e a necessidade do trabalho. E era mesmo o que Naphta queria ouvir, porque logo em seguida disse que o trabalho do monge não tinha finalidade senão em si mesmo, ou seja, não era uma válvula de escape e nem mesmo uma maneira de enriquecimento material ou de mecanismo para a eclosão do progresso no mundo. Era, prosseguiu Naphta, com orgulho, um exercício ascético, uma forma de salvação, um escudo contra as demandas da carne e da sensualidade.

7. Deste ponto acabaram caindo inevitavelmente na figura do militar, que, para Settembrini, se revelava insustentável do ponto de vista espiritual, já que é, diz ele, meramente formal, sem conteúdo, já que se alista em suas fileiras tanto por uma causa quanto por outra. Vamos enobrecer o soldado, sim, provoca ainda o italiano, quando soubermos por qual causa ele realmente se bate. Não, diz, Naphta, o simples fato de que se bate por algo é o que o torna nobre, muito mais nobre do que a concepção positiva e pragmática que tem o burguês, não só da vida, mas das ciências e do Universo.

8. O italiano empertigou-se. O que há de errado com as ciências e o Universo, senhor Naphta? Estão, por acaso, equivocados? Naphta riu, e chocou Settembrini, deixando-o de queixo caído, com a exposição da sua idéia de que o Século das Luzes e a nova astronomia não fizeram mais do que destruir o magnífico cenário onde Deus e o Diabo disputavam a posse da criatura humana, por ambos almejada. Esse cenário, prosseguiu Naphta, rindo com seriedade, acabou sendo transformado num insignificante, obscuro e passageiro planetazinho chamado Terra. Esta é a história do fim da grandiosidade do homem no Universo.

9. O senhor, pelos vistos, disse-lhe Settembrini, com as mão na cabeça, insiste mesmo em sua condição de jesuíta tardio, não? E a ciência, e a teoria heliocêntrica, senhor Leo Naphta? O senhor está defendendo aqui uma espécie de retorno do geocentrismo? Isto é quase humor! E o conhecimento puro, onde fica? O progresso? A tecnologia? Dessa vez foi Naphta que colocou as mãos na cabeça. Conhecimento puro?! O senhor está falando de conhecimento puro? Meu caro Settembrini, quanta ingenuidade! Recordo para o senhor as palavras de Santo Agostinho: “Creio, para que possa conhecer”. A fé é o órgão do conhecimento por excelência. A fé. Uma humanidade, continua Naphta, que não reconhece não poder ser verdadeiro nas ciências naturais o que é falso na filosofia não é humanidade. Verdadeiro é o que convém ao homem.

10. Protesto!, gritou Settembrini. Não proteste, disse-lhe Naphta, e fechou a discussão esboçando um resumo da ópera. Eu sugiro que empreguemos a lógica, disse o jesuíta ao italiano. Ou a Escolástica tem razão, e o mundo é finito quanto ao tempo e ao espaço. Então a divindade é transcendental, existe oposição entre Deus e o mundo, o homem é um ser dualista, e o seu grande problema é lidar com o antagonismo entre o físico e o metafísico. O resto é secundário. Ou então, segue Naphta, o tal do conhecimento puro que o senhor advoga descobriu enfim a verdade e temos outro quadro: o universo é infinito, não há mundo transcendental, não há dualismo, porque o além se acha absorvido pelo aquém, desaparecendo também a oposição entre Deus e a natureza, e o homem, nesse caso, não se angustia com o seu dualismo, porque não há mais dualismo, havendo tão-somente uma personalidade harmoniosa e una. O conflito, agora, passa a ser outro, e nesse ponto da sua história aparecem o Estado e a lei moral, e blá-blá-blá, sabemos o final dessa lenga-lenga, senhor Settembrini, e em que é que vão dar os tais sentimentos nobres que o senhor tanto proclama: a Liberdade, a Democracia, o Estado de Direito, a Ciência, as Luzes, a Razão e o Esclarecimento. Em quê?, pergunta-lhe o italiano. Numa nova versão do Terror, responde-lhe Naphta.

A discussão prossegue livro adentro, e em determinado ponto, diante de uma explosão de cólera de Settembrini, Naphta o convida a ponderar o que disse. O italiano nega-se, e o jesuíta desafia-o então para um duelo. Eu estou no seu caminho, disse-lhe Naphta, e o senhor está no meu. Liqüidemos a diferença num lugar adequado. Settembrini, humanista que é, defensor implacável dos valores e da vida, teoricamente reprova, sim, o duelo, como reprova o militarismo e a guerra, mas como homem de brios e honra não o recusa.

As exigências de Naphta, que as tinha como direito, já que era ele o ofendido, incluíam ser o duelo a pistola e deverem os duelistas afastar-se cinco passos de distância, trocando, se necessário, três balas. Settembrini aceita tudo, e diz a um amigo que não tentará matar Leo Naphta. Vou me expor à bala dele, e isso é tudo o que a honra pode exigir de mim, fique sossegado.

Chega o dia do duelo, penetram no bosque os dois homens e mais outros, que serviriam de árbitro e acompanhantes. Olham-se, cumprimentam-se, afastam-se os duelistas cinco passos e esperam pelo sinal. Dado o sinal, avançam um para o outro, as pistolas apontadas para a frente, os olhares cruzados. No terceiro passo Settembrini, muito sério, levanta ainda mais o braço, aponta a pistola para cima e atira para o alto do céu. O som do tiro ressoa múltiplas vezes por todas aquelas elevadas montanhas suíças, enchendo todo o vale de vibrações.

Naphta olha indignado para Settembrini: o senhor atirou para o alto! Eu atiro para onde quero!, diz-lhe o italiano. Atire de novo, ordena-lhe Naphta. Nem pensar, diz-lhe Settembrini. Agora é a vez do senhor, e o italiano ergueu os olhos para o céu, à espera do tiro do outro, que certamente o mataria. Leo Naphta olha para ele e diz apenas isso: Covarde!, e, levantando a pistola de modo surpreendente, aponta-a para si mesmo, dá um tiro na própria cabeça, cambaleia, faz uma brusca meia-volta e cai, com a cara na neve.

Infelice!, grita Settembrini. Che cosa fai, per l’amor di Dio?

Alguns anos depois, a nova versão do Terror, de que falou Leo Naphta, que não pôde vivê-lo, embora o tenha intuído, explodiu, fazendo cacos das palavras e dos ideais de Settembrini. Hans Castorp teve de descer a montanha mágica e alistar-se. Era o trovão, explodindo a Europa.

15 de novembro de 2007

ti (ilha)

"Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma
partícula do continente, uma parte da Terra; se um
torrão é arrastado para o mar, a Europa fica
diminuída, como se fosse um promontório,
como se fosse o solar de teus amigos ou
o teu próprio; a morte de qualquer
homem me diminui, porque sou
parte do gênero humano.
E por isso não perguntes
por quem os sinos
dobram; eles
dobram
por
ti."

John Donne

14 de novembro de 2007

Os frangos

Um personagem de Julio Cortázar, o Lucas, visitando o campo e citando Max Jacob quando este esteve pela primeira vez num ambiente, digamos, rural:

- "Oh, o campo... O campo, onde os frangos passeiam crus?"

26 de outubro de 2007

O primeiro texto curto a gente nunca esquece

Este é o meu primeiro texto curto aqui neste blogue. Vamos ver se consigo. Vou tentar não escrever nada extenso. Vai ser um esforço danado, mas vamos lá ver...

A robusta legião dos meus fiéis leitores gostou da analogia proposta: entre o blogue e um cãozinho a quem se deve alimentar diária ou semanalmente. Se eu tivesse um cãozinho, ele bem que poderia se chamar Blogue. Já que não tenho um cãozinho a quem batizar de Blogue, fico cá com o meu blogue, a quem (quem?) batizo de Cãozinho.

Cãozinho, aliás, é um nome... Não. Deixemos para depois, que isto já está ganhando vastidão.

19 de outubro de 2007

Para que serve um poema?

Para que serve um poema? "Isto não é pergunta que se faça" é a resposta que se deve dar. Ou então: serve, no mínimo, para ser lido, e tudo o mais que decorrer daí é responsabilidade daquele que lê. Esta pergunta já foi feita pelos espíritos mais toscos e já foi aplicada não só a poemas mas também a romances e outras formas artísticas. A arte, e tudo o que pode ser inserido neste conceito, parece que sempre sofreu esta inquisição imposta pelo pragmatismo mais rasteiro. Não vou aprofundar esse assunto porque não saberia como aprofundar esse assunto sem me meter pelas páginas de alguma História da Literatura e das Artes. Mas vou continuar a brincadeira.

E agora pelo seguinte caminho: para que serve uma máquina? Oh, para muitas coisas – coisas certamente que se localizam para além da máquina. A máquina em si é apenas um meio. A máquina é sempre um meio. Concordo, e basta pensarmos em todas as máquinas que nos rodeiam para conseguirmos localizar, sem dificuldade, aquele objetivo que se situa depois da máquina. O liqüidificador e a máquina de espremer laranjas são um exemplo eloqüente. E paramos por aqui, por favor, que isto está ficando óbvio demais.

E agora? Para que serviu este parágrafo? Para colocar aqui o link de um vídeo que descobri um dia desses – o vídeo que filma uma máquina que não serve para nada a não ser para a vermos funcionar, e lindamente. Depois que a vi funcionando concluí, maravilhado, que aquilo não era uma máquina, mas um delicioso poema que anda pelas próprias pernas. O nome do engenheiro-poeta é Arthur Ganson, e o nome de sua máquina-poema é Wishbone – aquele ossinho da galinha que a gente usa para fazer pedidos. A máquina do Arthur é um poema por várias razões, uma delas, apenas uma delas, é porque utiliza dois materiais: um biológico e outro não biológico, e todo o engenho produz a sensação de que é o ossinho que puxa a máquina – o ossinho caminhante que vai arrastando, a passos de caranguejo, toda aquela engenhoca.

Não dá vontade de escrever uma resenha sobre esse poema-máquina, do mesmo modo como temos vontade de escrever uma resenha sobre um poema-letra?

Arthur Ganson- Wishbone

18 de outubro de 2007

"A Ovelha Negra"

"Em um país distante existiu faz muitos anos uma Ovelha Negra.

Foi fuzilada.

Um século depois, o rebanho arrependido lhe levantou uma estátua eqüestre que ficou muito bem no parque.

Assim, sucessivamente, cada vez que apareciam ovelhas negras eram rapidamente passadas pelas armas para que as futuras gerações de ovelhas comuns e vulgares pudessem se exercitar também na escultura."

Augusto Monterroso, “A Ovelha Negra”, in A ovelha negra e outras fábulas, trad. Millôr Fernandes, Rio de Janeiro, Record, 1983.

17 de outubro de 2007

"Bartleby e Companhia - Campos de Carvalho e de Bartlebys"

"Bartleby e Companhia - Campos de Carvalho e de Bartlebys"

Li finalmente o delicioso livro do Enrique Vila-Matas, Bartleby & Companhia, e desde então não deixo de ter na cabeça o personagem do Melville, o próprio Bartleby, sujeito de mistérios esquálidos e personalidade impalpável. Bartleby não faz nada nunca; quando lhe pedem que faça algo, diz que prefere não fazer. Nunca alguém o viu lendo, ou escrevendo, ou bebendo e comendo o que quer que seja, nem indo a lugar algum, ou mesmo vindo de lugar nenhum. Bartleby é visto sempre parado, olhando por uma janela que fica atrás de um biombo, e contemplando, por essa janela, um muro qualquer de tijolos da Wall Street. Bartleby não tem parentes, não tem amigos, nunca se envolveu com outro coração, ninguém sabe a sua idade e nem outras muitas informações que não me ocorrem agora mas que podem dizer algum mínimo que seja acerca de uma pessoa, situando-a no mundo. Bartleby não se situa; é praticamente uma evanescência.

E o que faz o criativíssimo escritor espanhol Enrique Vila-Matas com um personagem que não faz nada, não tem história e não tem problemas; um personagem que, antes e depois de tudo, não evoca nada? Este é o centro nervoso do Bartleby & Companhia, pois ele parte da seguinte idéia: não é que Bartleby, graças à sua postura de testemunha quietinha e comportada do espetáculo do mundo, não evoque nada. Tire-se o “não” e chega-se ao mote do livro. Bartleby evoca nada. Bartleby evoca o Nada e transforma-se, assim, na representação ficcional de um tipo de conduta diante do fenômeno literário: a conduta daqueles que, sendo escritores ou tendo escrito algum livro ou alguns livros ou mesmo não tendo escrito nada nunca, recusam deliberadamente a escrita ou, num plano mais geral, o gesto artístico concreto. Vila-Matas, através do curioso Bartleby, desfila a insólita lista dos chamados “escritores do Não”.

A lista é comprida e povoada de seres, como não poderia deixar de ser, absurdos e surpreendentes; muitos deliciosamente mal-humorados, como é o caso deste Marcel Bénabou, que, numa notinha justificadora intitulada “Por Que Não Escrevi Nenhum Dos Meus Livros”, provavelmente a única coisa que escreveu na vida, já que Vila-Matas o situa entre os chamados ágrafos, diz: “Sobretudo não acredite, leitor, que os livros que não escrevi são puro nada. Pelo contrário (que fique claro de uma vez por todas), estão como em suspensão na literatura universal”.

Há ainda o famoso caso da “desculpa esfarrapada” do escritor Juan Rulfo, que, de tão esfarrapada, se tornou original e razão de relato. “Por que não escreve mais, Rulfo?”, perguntavam-lhe. E Rulfo dizia: “Porque morreu o meu tio Celerino, que era quem me contava as histórias”. E segundo Vila-Matas existiu de fato um Celerino; um tio Celerino que bebia muito e vivia de crismar as crianças da vila, ao mesmo tempo em que ia contando ao sobrinho inúmeros causos. Morto o tio, extinta a fonte, acabadas as histórias.

Há muito tempo que releio o escritor guatemalteco Augusto Monterroso (autor de um livro fundamental em qualquer biblioteca especializada em delícias literárias; e quem não tem deveria agora mesmo parar de ler esta coluna e sair às compras...). O livro chama-se A ovelha negra e outras fábulas, com tradução do Millôr Fernandes e ilustrações do Jaguar (ed. Record). O Monterroso, dizia, escreveu uma fabulazinha intitulada “Por que a raposa é mais sábia” (cuja descrição voltei a encontrar, feliz, justamente no Vila-Matas), e nela conta a história de uma raposa que um dia decidiu ser escritor e escreveu um livro que foi um sucesso tanto de crítica quando de público. Passado um tempo escreveu um segundo livro, melhor ainda que o primeiro. E enfim sossegou o facho, já satisfeita por ter escrito dois livros excelentes. Até que o povo e a crítica começaram a velha ladainha: “O que há de errado com a raposa, que escreveu dois livros e depois parou?”. “Mas eu já publiquei dois livros...”, passou a dizer a raposa, a torto e a direito e com ar de enfado. “E muito bons”, dizia a crítica. “Por isso mesmo você tem de publicar outro.” E a raposa pensava: “Na verdade o que eles querem é que eu escreva um livro ruim; mas, como eu sou a raposa, não vou fazê-lo”. E não fez.

Logo depois de terminar de ler o Bartleby & Companhia percebi que eu seria capaz de me atrever a apontar uma grande ausência na lista proposta pelo Vila-Matas (que afinal não menciona nenhum escritor do Brasil, embora mencione de Portugal). Na verdade duas ausências notáveis: Raduan Nassar, que escreveu dois livros e mais um de contos, parou de escrever, seguindo o exemplo da raposa, e foi cuidar de suas galinhas (a raposa também, à sua maneira...); e, o que me interessa mais, o escritor Campos de Carvalho, que veio ao mundo em 1916, escreveu quatro ótimos livros de 1956 a 1964, ficou sem escrever uma única linha durante 34 anos e morreu em 1998, praticamente desconhecido. Graças a um lento trabalho levado adiante há algum tempo pela editora José Olympio e por três incansáveis e talentosos bulgarófilos chamados Mário Prata, Nelson de Oliveira e Carlos Felipe Moisés, o nosso Campos de Carvalho foi reeditado, virou moda, objeto de estudo e peça de teatro. Os títulos A lua vem da Ásia e O púcaro búlgaro (peça pensada e montada pelo Aderbal Freire Filho) já fazem parte, para o leitor médio (ou para o leitor um pouco mais curioso que o leitor médio), do vasto universo dos títulos vagamente familiares. “É claro que a lua vem da Ásia!”, disse-me um dia um estudante de letras, nos pilotis da PUC do Rio, fascinado, comovido e para sempre convertido em fiel leitor de Campos de Carvalho. “De onde mais poderia vir a lua? Hã?”, perguntou-me ainda, levantando, brilhantes e úmidos, os olhos do livro. Concordei rápido, despedi-me rápido e saí dali voando. Campos de Carvalho fascina especialmente os loucos, as crianças e os poetas.

E por que Campos de Carvalho não escreveu mais? Porque não quis ou porque não teve de onde tirar mais um livro? “Eu abandonei por completo a literatura, por razões que não quero contar, porque me faz lembrar de tudo. Não quero mais lembranças”, disse ele numa entrevista para o Marcelo Resende (Folha de S. Paulo, 29 out. 1996). É verdade que o Bartleby do Melville, apropriado pelo Vila-Matas, mais pertence ao altivo exército dos que “preferem não escrever” do que ao encabulado grupo dos que “não conseguem sair do Capítulo 1 ou mesmo do título”. Mas é verdade, também, que essas fronteiras se destinam menos à esfera privada do que à pública, na qual se pode apregoar, sim, e com charme bartlebyano, a própria renúncia (voluntarista) à literatura. 

Não é bem o caso do Campos de Carvalho, que ainda tentou algumas missões depois dO púcaro búlgaro, seu último livro. Tentou títulos como Maquinação da máquina, Especulação sem espelho, ou Maquinação sem máquina, Especulação sem espelho, Mosaico com Moisés, ou Mosaico sem Moisés, e estes, também estéreis: Concerto no ovo e/ou De novo no ovo, e ainda Maravilha no País das Alices e, por fim, O vaso noturno. Disse numa entrevista a Edney Silvestre, para a revista O Cruzeiro, em 1969: “... o título do livro que estou escrevendo no momento (...), assim como a 4ª Sinfonia de Charles Ivens exige a presença de três maestros para ser bem interpretada, assim também penso que esse meu novo livro, para ser bem compreendido, deva ser lido simultaneamente por três leitores”.

Não foi lido por nenhum.

1 de janeiro de 2007

“O SEF nosso de cada dia”

[Sem data definida.]
“O SEF nosso de cada dia”, JL — Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa, Portugal, p. 39.

Um brasileiro em Portugal, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de Lisboa, os angolanos, marroquinos, botsuanos, argelinos e chineses, os documentos, o tempo, a espera, a fome, a literatura, o caos.

E, num belo dia de setembro, mudei-me para Portugal...

Mas eu sempre soube que nunca seria um alfacinha, porque um alfacinha é aquele sujeito que nasce em Lisboa. Nunca serei um alfacinha porque sou, antes de tudo, um carioca. Mas, se for um carioca que mora nos arredores de Lisboa, posso ser um carioca e estar um “alfacinha-de-arredores”? Posso alcançar uma condição intermediária, entre o carioca e o alfacinha? Se calhar posso.

E porque estou morando ao pé de Lisboa em condições, digamos, turístico-clandestinas, sou, para todos os efeitos legais, um brasileiro que está cá uns tempos e que de três em três meses retorna ao Brasil — situação que não pode perdurar porque eu, afinal, estou mesmo residindo aqui por estas terras e preciso do que se chama um visto de residência. Preciso, na verdade, de uma autorização de residência, e porque eu não me contento com pouco: uma autorização permanente de residência.

Imbuído, pois, desse desejo de estar um alfacinha-de-arredores, ou ao menos um residente nos termos da Lei, dirigi-me ao órgão aqui em Lisboa que trata de assuntos dessa envergadura, o chamado SEF — Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. E, porque não sou bobo, levei um livro para ler, provavelmente de cabo a rabo, enquanto esperava a minha vez de ser atendido e entrevistado. Fiquei na dúvida entre Guerra e Paz ou Crime e Castigo e optei pelo primeiro — embora tenha carregado também o segundo, para o caso de ficar sem ter o que ler... —, e para lá me encaminhei.

Lá no SEF, em muito pouco tempo, deduzi que afinal aquele dia se firmaria em minha memória como um dia singular e sobre o qual eu um dia escreveria. E eu estava otimista, é verdade, e cheio de razão, pois sou casado com uma portuguesa há dez anos, tenho uma filha brasileira e portuguesa, temos cá uma casa própria, uma casa portuguesa com certeza, temos cá condições de habitabilidade, meios de subsistência e vinho na adega. Por que não me dariam uma autorização permanente de residência?

Adentrei o SEF e caiu-me o queixo. Um lugar de teto baixo e pleno de gente, muitos angolanos e argelinos e marroquinos e botsuanos e... (quem nasce na Guiné-Bissau é o quê?), e ainda cidadãos de outros países da África, mais especialmente, presumo, países de língua portuguesa, e também muitos chineses e pessoas de lugares estranhos e de línguas engraçadas de se ouvir. Havia poucos assentos e muitos candidatos a disputar os assentos, e sobre as nossas cabeças a chamada zoeira dos demônios. E todas essas pessoas tão diferentes, com diferentes histórias de vida, se vêem de repente ali, aglomeradas, e todas aquelas histórias de vida apresentariam, caso fossem escritas, esse episódio comum: estiveram um dia inteiro de suas vidas lá no SEF, a esperar a vez de conseguir um assento e em seguida ser atendidas e entrevistadas pelas moças do balcão. Peguei a minha senha às 8h15m da manhã de uma quinta-feira, dia 20 de abril último, e li no papelzinho que a previsão de atendimento apontava para as 10h11m, uma previsão formulada, creio, por um programa de computador que calcula médias de horários sob a luz de uma espécie de otimismo digital. Peguei o meu Guerra e Paz, feliz por ter trazido também o meu Crime e Castigo, e fiquei zanzando com o livro na mão, à espera de um lugar ao chão...

E me distraí olhando ao redor, e olhando pensei que todos os países do mundo têm lá o seu SEF, e todos os SEFs do mundo devem ser iguais, ou piores — piores que o SEF do quinto dos infernos, sem dúvida, porque o SEF do quinto dos infernos pelo menos está sempre vazio, ao passo que o SEF de Lisboa, que é a bela e apaixonante cidade de um belo e apaixonante país para se morar, está sempre cheio de gente de vários lugares da África e cheio de chineses e outras gentes de língua engraçada de se ouvir. Uma pessoa à espera no SEF deve observar tudo e com tudo se distrair, pensei eu, ainda mais sendo essa pessoa um dono-de-casa-que-escreve, o meu caso. Ao trabalho etnográfico, pois. Mas, antes, a minha autorização permanente de residência, se faz favor.

Tenho todos os papéis cá comigo, que conferi minuciosamente e com grande requinte, mas nunca será demais reconferir, e decido enfim me sentar no chão mesmo, num canto mais limpinho que encontrei perto de uma parede, onde me encostei com um suspiro de alívio por estar a descansar as minhas fatigadas pernas de estrangeiro, e peguei o meu requerimento principal e a sua cópia, e o meu passaporte e a sua cópia, cópia de todas as folhas, não bastando das primeiras três, segredaram-me, e a certidão de casamento brasileira e ainda a sua cópia, seguida do assento de casamento que tiramos lá no consulado português no Brasil e a sua cópia, e quando eu digo cópia eu digo cópia certificada, e também a legitimação desse assento de casamento pela Conservatória do Registro Civil de Santo Amaro de Oeiras, local onde moramos, ao pé de Lisboa, e com data recente, porque eu tinha um certificado com data antiga que é antiga demais, e sabe-se lá, podiam imaginar que a minha mulher, ou eu, se casou ou casei, novamente com outro ou outra, e agora um formulariozinho assinado por ela, que aqui em Portugal se torna então responsável por este estrangeiro que vos fala, e todas as suas identificações de esposa, e agora vejamos as provas de que moramos juntos, e para isso uma declaração do Imposto de Renda de 2006 aqui de Portugal, ano-base 2005, será suficiente, e agora, para garantir, lá tenho eu também em cópias certificadas e em originais as certidões de nascimento brasileira e portuguesa da linda filha que temos, e estamos com tudo em cima, não esquecendo de conferir os meus registros criminais no Brasil, garantidos pelo Departamento de Polícia Federal e pela Delegacia de Defesa Institucional e ainda, em Portugal, pela Direção-Geral da Administração da Justiça, que atestam ambos os meus antecedentes, que são ótimos e até mesmo invejáveis..., e será ainda preciso provar que temos onde habitar, e para isso cá está a escritura de compra de nossa ótima casa, que nos deram de presente os meus sogros, e como vamos nos sustentar?, será a pergunta seguinte, e eu então mostrarei à moça do balcão o contrato de trabalho da pessoa-cônjuge e também os seus recibos de salário, que provarão às autoridades portuguesas que temos dinheiro para viver e ainda comprar livros, cds e vinhos, porque este que aqui fala não trabalha fora, embora escreva, como se vê (lê). Tudo isso e as suas cópias autenticadas e certificadas e mais que legitimadas, e quanto tempo falta para eu ser atendido?

Muito, e decidi então, porque eu não estava satisfeito com a minha checagem de documentos, reorganizá-los melhor, e por categorias, e fui a um bazar chinês ali perto, não sem antes conferir qual era a senha da vez, era a 36-G, e o meu número, meu e de mais ninguém, claro está, era o 56-G. Será que vai andar rápido agora? Não, o 35-G demorou uns vinte minutos. Fui à loja correndo, comprei clipses coloridos para ajudar na catalogação, e correndo retornei ao meu posto; correndo é modo de dizer porque eu estava mancando, e algumas pessoas lá do SEF, sentadas, até me olharam com alguma comiseração, embora ninguém tenha cedido o próprio lugar a um estrangeiro náfego (e eu cederia?). O número? O mesmo 36-G. Fiz cara de choro mas não chorei. Não se deve chorar no SEF, pega mal. Encaminhei-me ao meu canto, mas ele estava ocupado por uma família de cinco membros chineses, todos sentados a rir de alguma coisa. Procurei o que poderia ser aquela coisa de que se riam mas não encontrei. Catei outro canto e desatei a reorganizar os papéis, desta vez clipsando-os nas categorias Eu, Esposa, Casamento, Moradia, Sustento, Filha e, por fim, Antecedentes criminais.

Detive-me longamente nessa recatalogação, o que tenho é tempo, pensei, e olhei para o marcador eletrônico para ver novamente o 36-G, e, aproximando-se de mim, uma senhora gorda sustentada por duas muletas de madeira e a carregar um pé inchadíssimo envolto nuns esparadrapos empretecidos, avermelhados e também amarelecidos com sujeira, sangue e pus. E baixei meus papéis para acompanhar o trajeto daquela senhora quem sabe de algum dos 54 países da África, se não me engano, que atravessou toda a grande sala em busca de uma cadeira, e não houve cadeira que se apresentasse, e ela retornou ao ponto de origem, que eu dali de meu canto no chão não podia ver, e mentalmente dei de ombros, aliviado por não ter qualquer obrigação de lhe ceder meu lugar no chão, porque chão ali havia muito, e dos bons. Horas passando, tic-tac, tic-tac, eu já bastante avançado no meu Guerra e Paz, e senti fome. E decidi sair correndo a uma tasquinha ali perto para comer um sanduíche com um suco de laranja. Olhei o número, agora era o 39-G, saí à rua e entrei na tasca e comi aquilo tudo com o coração aos saltos, total e repentinamente dominado pela certeza de que, por uma razão desconhecida ou então porque os portadores dos números posteriores ao 39-G se tinham cansado e abandonado a arena, os atendimentos seguintes àquele 39-G seriam rapidíssimos, e eu acabaria então ultrapassado sob a alegação: “56-G não presente! O próximo!”. E aquela imagem me foi dominando a um tal ponto que pedi ao moço da tasca que colocasse num copinho de plástico o meu suco e aceitasse por favor aqueles três euros naquele mesmo minuto, porque eu precisava ir embora o quanto antes. E, ainda que manco, ganhei as ruas às carreiras e adentrei o SEF munido de meu copo e meu pão, para ver, atônito, que nada, nada, nada havia mudado: estava lá o 39-G a brilhar no marcador, e estava lá, a representar aquele número 39-G, uma família nuclear de dois adultos e duas crianças, cidadãos de algum país longínquo onde os cidadãos usam turbantes coloridos sobre a cabeça. Voltei ao meu Guerra e Paz e ao tic-tac do meu coração, arrependido de não ter tomado na tasca, com calma e decência, nem ao menos um cafezinho merecido.

Quatro horas e quinze minutos mais tarde, e mais nervoso e ansioso do que quando defendi a minha tese de doutorado ou quando um dia fui entrevistado na tv para um programa cultural, apresentei-me enfim ao chamado do número 56-G. E tudo transcorreu de modo tão eficiente e tão pouco dramático, que me senti um pouco lesado, e me indignei, e cheguei ao ponto de pedir à moça que pelo menos me deixasse ficar ali à frente dela mais um pouquinho, “só mais uns minutinhos...”, pedi. “O número 35-G demorou vinte minutos, o 36-G também, e o 39-G no mínimo quarenta”, eu disse, mas ela só me olhou um olhar debruçado e exausto, tendo me pedido apenas um terço de todos aqueles papéis que eu trazia na bolsa; não me pedindo, se calhar porque eu estava naquele dia com a chamada “cara boa”, os meus antecedentes criminais e me dizendo apenas: “Vá o senhor para casa e espere uma notificação”. “Mas...”, comecei, e ela já gritava: “O próximo! O 57-G, se faz favor!”. Insisti: “Mas e os meus anteceden...”. E ela: “Vá o senhor para casa e espere uma notificação, a chegar pelos correios”.

Enquanto espero, escrevo que espero.

“Lugares simbólicos: Ilha do Pavão”

BATELLA, Juva; BERND, Z., “Lugares simbólicos: Ilha do Pavão”, in: Dicionário de figuras e mitos literários dasAméricas, 1. ed., Porto Alegre, ed. Tomo Editorial, editora da UFRGS, 2007, v. 1, p. 325-329 (ISBN: 9788586225512).

1. Apresentação

O pavão, tal como o conhecemos, ou seja, ornado de sua longa cauda, toda ela pontilhada de círculos coloridos semelhantes a olhos a espalharem-se por uma gigantesca plumagem, vem da família dos faisões, é pássaro macho, da espécie P. Cristatus, e não pouco exibido: abre-se e fecha-se como um leque, caminha com uma altivez um tanto desajeitada e pia desagradavelmente. A descrição — não menos exuberante — que lhe faz o dicionário Aurélio é a de uma “grande ave galinácea, fasianídea, cujo macho apresenta crista, plumagem brilhante azul ou verde, e grandes plumas caudais com manchas oculares iridescentes...” (Ferreira, 1999).

O verbete em pauta não é propriamente Pavão, mas uma ilha que leva o seu nome e — veremos — com ele se relaciona. A descrição que faz o escritor João Ubaldo Ribeiro de sua própria ilha imaginária, cenário de seu romance O feitiço da ilha do Pavão, é tão sedutora que a ela não resistiram Alberto Manguel e Gianni Guadalupi. Lá está a ilha, em seu Dicionário dos Lugares Imaginários (Manguel & Guadalupe, 2003, p. 333-335); lá está a descrição de João Ubaldo Ribeiro, como o único texto a ilustrar todo o verbete. A “verdadeira” ilha do Pavão, na área da cidade de Porto Alegre, no estado brasileiro do Rio Grande do Sul — uma das 28 ilhas de um grande arquipélago situado na confluência das águas do Guaíba com os rios Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí —, está um bocado longe e em nada se assemelha à ilha de João Ubaldo Ribeiro, “uma barreira de granito, amalgamada com os contrafortes do Recôncavo e os costados de Itaparica” (Ribeiro, 1997, p. 12).

"... uma ilha que inventei no meio da Baía de Todos os Santos, que se existisse talvez ocupasse uma área superior à própria baía. É uma ilha misteriosa, de difícil acesso e sobre a qual ninguém fala (...). Fiz uma espécie de fantasia. Descrevo uma sociedade no Brasil do século XVIII. Um Brasil completamente isolado do resto da colônia, embora partilhe da herança ibérica que todos nós recebemos. É a história de uma ilha que se desenvolve autonomamente. Não sei em que vai dar (Entrevista à Revista IstoÉ, 19 mar. 1997)."

Isso disse o autor ainda às voltas com a escrita. Ademais, ninguém, antes de João Ubaldo Ribeiro, falou nessa ilha do Pavão — “Jamais se escutou alguém dizer ter ouvido falar na ilha do Pavão, muito menos dizer que a viu, pois quem a viu não fala nela e quem ouve falar nela não a menciona a ninguém” (Ribeiro, 1997, p. 9). A ilha, no entanto, existe, “com sua história, sua gente, sua terra amanhada e seus matos brabos, seus bichos e seu próprio tempo, que é diverso dos outros tempos, embora ninguém saiba explicar de que maneira ou por que razão” (Ribeiro, 1997, p. 12).

2. Histórico

A ilha do Pavão — falemos dela — abriga, no século dezoito, uma sociedade de classes, sim, mas embaralhadas e comunicantes; uma sociedade em que “elementos saídos da cultura popular, massiva e culta se entrelaçam e interagem”, escreve Zilá Bernd, “sem que o autor intervenha para hierarquizá-los” (1999). Às representações ordinárias dos diversos elementos formadores do que se convencionou chamar “o povo brasileiro”, João Ubaldo contrapõe outras: são as representações rebeldes, para ficarmos em apenas três, do índio que não quer ser índio e não quer viver no mato, do negro que não tolera negros de outras origens e, sentindo-se superior, se organiza para escravizá-los, do branco colonizador e rico que não quer mandar em ninguém, não é arrogante e não se vê como superior nem credor de nada — é o caso, respectivamente, de Balduíno Galo Mau, índio mentiroso, conhecedor de todas as matreirices e avesso à idéia sedimentada de um ser inocente, ingênuo e organicamente ligado à natureza; caso de Afonso Jorge II, negro nobre do reino do Congo, filho do majestoso Afonso Jorge I, conhecidos traficantes de negros de raças “muito justamente apelidadas de infectas, raças porcas, estúpidas, atrasadas e fedorentas” (Ribeiro, 1997, p. 92), chefes sucessivos do grande Quilombo do Mani (Rei) Banto, quilombo não de negros fugidos, mas de negros cativos; caso de Capitão Cavalo, senhor de muitas terras, branco, bastante poderoso e no entanto avesso ao poder e aos seus exigentes caprichos, acolhedor de escravos fugidos, estimulador de casamentos multi-étnicos, defensor do trabalho justo e da justa divisão do produto do trabalho, socialista dos bons, revolucionário como poucos, odiado por alguns e muito cioso de seu sossego e de sua boa consciência. A sociedade que vamos encontrar na ilha do Pavão é, como vimos e para dizer o mínimo, diferente, porosa e multi-étnica.

"Possivelmente [o viajante apressado] também estranhará ver negros calçando botas, sentando-se à mesa com brancos, tuteando-os com naturalidade e agindo em muitos casos como homens do melhor estofo e posição financial, além de negras trajadas como damas e de braços dados com moços alvos como príncipes do norte (Ribeiro, 1997, p. 17)."

O lugar imaginário ocupado pela ilha do Pavão pode ter recorrências em várias literaturas, uma vez que se trata de um espaço utópico a seguir um tempo diferente, prenhe de possibilidades históricas e existenciais, uma vez que se trata, antes de tudo, de uma ilha, pedaço de terra cercado de água e já nascido como um tropo. Contudo, a ilha do Pavão, ela mesma, configura uma criação exclusiva de João Ubaldo Ribeiro, sendo único seu local de nascença: o livro que lhe dá título.

3. Campos de aplicação

3.1. A ilha (fora do) Brasil

Não se manteria como singular — embora sendo diferente, poroso e multi-étnico — um povo que não estivesse de algum modo apartado. O espaço insular presta-se muito mais a um exercício de recriação que se pretenda mítico do que a grandiosidade dos espaços já formados. Nada melhor, para se inventar um Brasil, do que um outro lugar, “fora” do Brasil, onde se irá plantar um projeto de Brasil. A ilha do Pavão situa-se nalgum ponto do Recôncavo Baiano, dentro do território brasileiro mas inacessível à maioria dos brasileiros, que dela terão pavor. Ela será sempre, neste sentido, o “outro Brasil” — ilha dentro da qual se vive bem, mas “da qual não se conhece navegante que não haja fugido”, diz o narrador, “dela passando a abrigar a mais acovardada das memórias” (Ribeiro, 1997, p. 9). E diz agora o escritor: “Fiz uma brincadeira e resolvi imaginar (...) alternativas para aquele Brasil, como se um outro país se desenvolvesse paralelamente ao que conhecemos” (entrevista ao jornal O Globo, 3 ago. 1997).

Não bastará, no entanto, ser a vida na ilha do Pavão boa para todos aqueles de todas as cores; não bastará funcionar a ilha como uma espécie de paraíso contraposto ao continente desigual e totalitário. O espaço insular de João Ubaldo Ribeiro é produtivo, como escreve Elisalva Oliveira-Joué (1999), na medida em que “remete constantemente para o começo de tudo, do país e do povo, forjados pelo encontro, na maior parte das vezes forçado, das três etnias”. Se permanecesse ancorada à condição de paraíso paralelo, a reunir as condições ideais de um Brasil que poderia ter sido, mas acabou não sendo, não estaríamos a falar da ilha do Pavão como lugar mítico, mas como lugar utópico, e uma das tarefas dos lugares míticos é esta: devem funcionar como simulações de inícios. A ilha do Pavão torna-se então, sob essa idéia, o lugar da gênese, por excelência, de uma alternativa de sociedade brasileira.

"O mito deve ser ainda distinguido da utopia (projeção de um futuro ideal), da lenda (que tem fundamento ou caráter de certo modo histórico), do conto (uma forma dessacralizada) etc. Mas o vocabulário é hesitante, mesmo quando se trata de especialistas, como sucede por exemplo com K. Mannheim, que designa sob o nome de utopia aquilo que entendemos aqui como mito. Além do mais, pode acontecer mais de uma vez que tal forma narrativa se situe a meio caminho do mito com relação à lenda, ou do mito com relação ao conto e à utopia (Dabezies, 1998, p. 732)."

A ilha do Pavão brilha na mente dos que não a conhecem e que nela nunca pisaram como um lugar, tal como um mito, de existências não vivenciadas — “paisagens adivinhadas, sonhos aos quais dar vida, sensações apenas entrevistas, lembranças vívidas do que não se passou” (Ribeiro, 1997, p. 12). A ilha do Pavão, no tempo narrativo do romance, é capaz de engendrar, para os seus personagens, muitos prováveis futuros. A história de seus habitantes, no entanto, está confinada à ilha, e, mesmo que o leitor possa, e deva, aumentar para níveis continentais o diâmetro de sua leitura, os acontecimentos narrados não se esparramam para o resto do Brasil. João Ubaldo Ribeiro não está a brincar com a história do país, imaginando o que poderia ter acontecido conosco se... os portugueses tivessem abandonado a tarefa colonizadora e os padres católicos desistido da missão catequética, os holandeses afinal se firmado na terra, os negros escravos conseguido organizar-se e lutar... Não. A sociedade que vamos conhecer lendo o romance de João Ubaldo Ribeiro é a sociedade brasileira na medida em que todos os nossos antepassados étnicos lá estão, sim, mas nem sempre mantendo preservadas as suas características como classe. A sua configuração e os seus níveis de relacionamento desenvolveram-se de modo diverso e afastaram-se totalmente da experiência “continental”. A ilha permanece isolada, e é esse isolamento que lhe confere características míticas.
           
"A metáfora do ilhamento é um dos recursos estilísticos utilizados pelo autor para impedir que os seus relatos deslizem para uma literatura panfletária, pois, ao situar a narrativa entre dois espaços, o insular de Itaparica ou da imaginária ilha do Pavão e o resto do Brasil (...), o autor planta as raízes, afirma a legitimidade dos componentes negro e índio do povo brasileiro e deixa o caminho aberto para que brotem do texto a negação do Único — a cultura européia e o tipo branco — e a valorização do Múltiplo e do Outro — o branco, o negro, o índio e o mestiço (Oliveira-Joué, 1999)."

3.2. O tempo atocaiado

Mas não só. A ilha do Pavão pode não ser ainda um mito. Como já se disse, João Ubaldo Ribeiro, ou seu narrador, é o primeiro a nomeá-la. Trata-se de uma criação exclusivamente ubaldiana e presente apenas em seu romance de 1997. Do mesmo que podemos dizer, citando André Dabezies, que um mito “tampouco é identificável com um texto. O texto literário não é em si um mito: ele retoma e reedita imagens míticas” (Dabezies, 1998, p. 732), podemos ir além e afirmar também que a ilha do Pavão, em si, não constitui um mito, mas um lugar de mitos.

João Ubaldo Ribeiro revela ao leitor que a ilha do Pavão possui escondida em seu centro uma gigantesca esfera mágica a funcionar como uma espécie de toca do tempo. Inicia-se então, dentro da história, um desfile de experimentações: os personagens protagonistas, ao entrar e sair da esfera, conseguem paralisar o andamento dos eventos e produzir, durante a paralisação, futuros latentes. Os prováveis futuros que aquela sociedade do século XVIII vivenciou correspondem, para o leitor de hoje, aos passados que tivemos ou que poderíamos ter tido. A brincadeira remete a nossa imaginação às inúmeras possibilidades de sociedade brasileira.

"E foi assim que começaram a usar de fato a toca do tempo, sobre a qual aprendiam cada vez mais, embora não entendessem nada de seus mecanismos misteriosos. Agora tinham certeza de que, enquanto o presente parava, ilimitados e indefinidos futuros ficavam em perpétua gestação e o tempo os recebia ao acaso, não tinha preferências. Ou podia ser levado a tê-las, pelo menos por exclusão, embora não por inclusão. Escolher um dos futuros disponíveis, sim; plasmar esse futuro, não, não parecia ser possível. Como não? Cada mudança mudava tudo mais, mas como saber? (Ribeiro, 1997, p. 313)."

4. Síntese crítica

4.1. O que faz um mito?

O mito situa-se fora do tempo. A ilha do Pavão abandona o seu espaço em meio às águas do Recôncavo, e é como se deixasse de existir. O mito suspende o tempo. Mal um personagem adentra a esfera mágica, a ilha do Pavão transforma-se, e um gigantesco Pavão abre a sua cauda e se ilumina, produzindo à sua volta luz e ofuscamento. Em seguida o breu e a suspensão efetiva do tempo — uma suspensão grávida. O mito recria passados e inventa futuros.

"Portanto, o tempo parava, quando o pavão acendia. E o pavão acendia quando algum deles entrava na bola. (...) E o povo via o pavão fulgurar, mas depois não se lembrava, só se lembrava de que, repentinamente, a lua sumira, tudo escurecera, a ilha parecera ser a única terra no meio do mar, para depois voltar tudo a como estava antes (Ribeiro, 1997, p. 299-300)."

Mas o mito tem também uma verdade, que não é apenas poética ou simbólica, como o era para os antigos, mas uma verdade híbrida — “... nos dias de hoje, o mito deve travar um diálogo”, diz-nos André Dabezies, “e ter uma relação de simbiose com a racionalidade metafísica ou cotidiana” (1998, p. 734). A ilha do Pavão é a morada do tempo; um lugar literário que possui uma esfera mágica literária que, no entanto, foi inspirada pelo que João Ubaldo Ribeiro chamou de a “toca do tempo”, tradução livre de “wormhole” (buraco de verme), um conceito da ciência, fruto de um raciocínio operado com teorias da ciência, sim, mas que se reporta, pela via da literatura, à aventura mítica do viajante do tempo (ver bibliog. eletrônica1). O mito provoca a ciência, que inspira a literatura, que se volta para o mito, mas alimentada, desta vez — num diálogo específico e mais ou menos verossímil —, pela ciência.

"Vem de uma especulação já conhecida de cosmólogos sobre a possibilidade de uma viagem no tempo. Isso tem alguns fundamentos científicos. Como eu não escrevo ficção científica nem sou cientista, não me senti obrigado a me restringir às limitações e normas que existem para que isso aconteça. (...) ... essa esfera é chamada por um cientista americano de “wormhole” (...). É uma complicação. Seria uma dobra na curvatura espaço-tempo, que permitiria a você atravessar o tempo. Como eu quis dar uma verossimilhança ao fato de a ilha aparecer e desaparecer, recorri a isso (Entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, 22 nov. 1997)."

 4.2. O pavão ruante

A provável razão para se chamar a ilha “do Pavão” pode dever-se à própria imagem do pavão em efetivo pavoneamento, ou seja, erguido e com a sua cauda cheia de olhos aberta em leque — infindáveis olhos vigilantes diante do leque aberto e prenhe de acontecimentos e possibilidades de história. Remonta ao universo arcaico grego a associação que se faz entre a cauda do Pavão e a idéia da onisciência, e especificamente às peripécias da deusa Hera, a orgulhosa, briguenta e vingativa mulher de Zeus. Diz o mito que Hera, ou Juno, enciumada do licencioso marido, encarcera a bela Io, deixando-a sob a guarda infalível de Argo, o ser dos cem olhos, o que tudo vê. Zeus, no entanto, que não nasceu ontem mas muito antes, encarregou o espertíssimo Hermes da tarefa de libertar Io daquela vigilância aparentemente imbatível. Bateram-se, e morre Argo com uma pedrada.

Hera, consternada, rende-lhe a homenagem final, retirando-lhe um a um os cem olhos e recolocando-os espalhados ao longo da cauda aberta de um pavão — que se torna a partir daí a ave consagrada a Hera e às suas saudades de Argo. Dizer ilha do Pavão é dizer ilha da ave dos cem olhos, a ave da onisciência e da clarividência, através da qual se vê tudo, até mesmo, e principalmente, o futuro, ou seja, o passado.

O pavão fêmea não tem plumagem e, portanto, não tem graça.

5. Autor: Juva Batella

6. Ver também: Democracia racial; Escravo; Índio degradado; Paraíso; Senhor de escravos.

7. Bibliografia

7.1. Bibliografia crítica

Bernd, Zilá. “Identidades compósitas: escrituras híbridas”. Matraga, no 12, 2o semestre, 1999, Apresentado no Congresso da Anpoll, 12 jun. 1998.2

Dabezies, André. “Mitos primitivos a mitos literários”, in Brunel, Pierre (org.). Dicionário de mitos literários, 2a ed. Trad. Carlos Sussekind, Jorge Laclette, Maria Thereza Rezende Costa e Vera Whately. Prefácio de Nicolau Sevcenko. Rio de Janeiro: José Olympio, Editora UnB, 1998.

Manguel, Alberto & Guadalupi, Gianni. Dicionário dos lugares imaginários. Trad. Pedro Maia Soares, Ilustr. Graham Greenfield e Erik Beddows. Mapas e plantas James Cook. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.Oliveira-Joué, Elisalva. “Identidade mestiça e ilhamento na obra de João Ubaldo Ribeiro”, 1999.3

7.2. Bibliografia literária

Ribeiro, João Ubaldo. O feitiço da ilha do Pavão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

7.3. Bibliografia de imprensa

Ribeiro, João Ubaldo. Entrevista à Revista IstoÉ, 19 mar. 1997.

__________. Entrevista a Daniela Name, O Globo, 3 ago. 1997.

__________. Entrevista a Bernardo Carvalho, Folha de S. Paulo, 22 nov. 1997.

7.4. Bibliografia eletrônica

* , acesso em março de 2005.

**, acesso em agosto de 2004.


***, acesso em agosto de 2004.