Eu tenho de escrever no blogue-cãozinho TODOS OS DIAS. Isso é o que eu tenho de fazer. Eu chego logo de manhãzinha, bem cedo (dormi mal, já explico por quê), ligo o laptop, olho para o blogue-cãozinho e bocejo. Ele olha para mim e diz: “Você tem de escrever em mim hoje”. Eu digo a ele: “Mas eu já escrevi em você na sexta-feira passada…”. “É pouco”, diz ele. “Você tem de escrever em mim TODOS OS DIAS. Nem que seja uma ou outra coisinha”. “Muito bem”, eu digo. “Vamos a isso.” Hoje eu vou escrever só para desabafar e colocar para fora o tanto sono que eu tenho.
O Comboio-do-Sono
(peça em 1 ato)
Cenário: casa do Juva e da Te, de madrugada
Tema: Clarinha não dorme, o Juva não dorme
Personagens que atuam: o Juva, a Clarinha, a Pipoca (Alice)
Personagem que dorme: Te (representada aqui pelo símbolo, ou melhor, para sermos mais exatos, pela metonímia “Os Peitos”)
CENA 1 (1h da manhã)
(O Juva dorme, Clarinha dorme, Pipoca dorme, Os Peitos dormem. O relógio tiquetaqueia. Silêncio em Santo Amaro de Oeiras. Clarinha dá um berro. O Juva abre os olhos, arregalando-os na escuridão. Os Peitos não se mexem. O Juva pensa: “Clarinha quer leite… Acordo ou não acordo Os Peitos, para que eles cumpram o seu trabalho de amamentar-pacificar-embalar-e-adormecer-a-criaturinha-em-choro?”. E depois o Juva ainda pensou: "Não. Trato eu disso". E lá foi o Juva tratar disso ele-mesmo, levantando-se lentamente e se encaminhando para o quarto da Clarinha.)
Juva:
Clarinha… Clarinha... do-do-da-da… Hora de nanar… Papai ‘tá aqui, papai-lindo-de-morrer-‘tá aqui… Papai vai salvar Clarinha… Papai tem a chupeta-salvadora… Nanar… ná, ná, ná…
Clarinha:
Ahhrrr… Ãaaaiinnncs… Ãaaaiinnncs… Ãaaaiinnncs!!!
Juva:
Chegou o papai-herói-do-meu-coração…O papai-herói-mais-lindo-do-mundo…
Clarinha:
Dá… dá… dá… Dá!!! Úuuuu! Dú! Dú!! Dú!!! Dú!!!! Ãaaaiinnncs!!!!!
Juva:
OK, OK, OK… Papai vai dar leitinho-inho-inho pra Clarinha-inha-inha…
(O Juva desce correndo as escadas na escuridão da casa, prepara o biberão [do francês biberon, o mesmo que mamadeira, de mamar + deira: garrafinha provida de chupeta, para amamentar crianças artificialmente), sobe correndo as escadas, fecha a porta do quarto da Clarinha, para que Os Peitos não acordem, tira a Clarinha do berço, senta-se no sofazinho, coloca a Clarinha no colo e dá o biberão para a Clarinha, que sorri.)
Clarinha:
Ah… Ah… (mama a mamadeira) Ah… Ah... (e dá uma gargalhadinha)
Juva:
Bom… bom…
(Passam-se vinte minutos.)
Juva (retirando a mamadeira vazia da boca da criatura):
Agora vamos arrotar…
(A Clarinha indigna-se, abre o berro e começa a berrar feito uma doida. O Juva dá a chupeta à Clarinha. A Clarinha pára de berrar feito uma doida. O Juva levanta-se com a Clarinha ao colo e começa a bater nas costas da Clarinha.)
Juva:
Arrota, Clarinha… Arrota…
(A Clarinha não arrota. O Juva bate um pouco mais rapidamente nas costas da Clarinha.)
Juva:
Arrota, Clarinha… Arrota…
(A Clarinha não arrota. O Juva bate com um pouquinho de nada de mais força nas costas da Clarinha.)
Clarinha:
Rhuhuaumrrrr [o mesmo que arroto: erupção ruidosa de gases do estômago pela boca; eructação].
(O Juva coloca a Clarinha no berço, a Clarinha ri e começa a bater as perninhas, o Juva fica tenso.)
Juva:
Não, Clarinha… Clarinha... do-do-da-da… Hora de nanar… Papai-lindo-de-morrer-‘tá aqui… Nanar… Ná… ná... ná…
Clarinha:
Dá… dá… dá… Dá! Ú! Ú! Dú! Dú!! Dú!!! Dú!!!! Ãaaaiinnncs!!!!!
Juva:
Clarinha… Clarinha... Não…
(Passam-se, assim, quarenta minutos, ao fim dos quais a Clarinha fecha enfim os olhinhos e ferra no sono. O Juva sorri, volta para a cama e tenta dormir.)
CENA 2 (2h da manhã)
(O Juva continua tentando dormir, mas sente que perdeu o Comboio-do-Sono [comboio: do fr. convoi, convoyer: série de trilhos puxados sobre vagões por uma locomotiva; trem, pronuncia-se combóio]. O Juva remexe-se na cama e tenta puxar de volta para si o edredon [variante de edredão: cobertura acolchoada para a cama, com recheio de penugem, ou paina, ou algodão, o mesmo que cobertor]. O Juva consegue recuperar a parte que lhe cabe do edredão. Os Peitos não se mexem. O Juva espera pelo próximo Comboio-do-Sono. Enquanto espera, conta biberãos. O relógio tiquetaqueia. Silêncio em Santo Amaro de Oeiras.)
CENA 3 (5h da manhã)
(Clarinha dá um berro. O Juva abre os olhos, arregalando-os na escuridão, e não acredita no que ouve. Olha para o lado, em busca de alguma explicação. Os Peitos não se mexem. O Juva pensa: “Clarinha quer leite de novo? De novo?!”. O Juva espreguiça-se, levanta-se lentamente e vai para o quarto da Clarinha.)
(O Juva aproxima-se do berço e olha cuidadosamente lá para dentro. A Clarinha de olhos fechados... O Juva pensa: “Não foi nada… As crianças às vezes dão esses berros, mas voltam logo a dormir”. O Juva gira nos calcanhares e, sorrindo levemente ao se imaginar a si mesmo novamente deitado, se dirige para a saída do quarto da Clarinha.)
Clarinha (abrindo os olhinhos):
Ahhrrr… Ãaaaiinnncs… Ãaaaiinnncs… Ãaaaiinnncs!!!
(O Juva estaca, chocado, e volta-se novamente, em direção ao berço da Clarinha.)
Clarinha:
Dá… dá… dá… Dá! Dú!! Dú!!! Dú!!! Ãaaaiinnncs!!!!
Juva (respirando fundo e tentando manter a calma):
Clarinha… Clarinha... do-do-da-da… Hora de nanar… Papai-lindo-de-morrer-‘tá com sono também… Papai-lindo-de-morrer quer nanar também… Nanar, viu?… Ná… ná... ná…
(A Clarinha dá uma gargalhadinha, saracoteia as perninhas e estende os bracinhos.)
Juva:
Não... não… Hora de nanar. Na-nar. Ná… ná... ná…
(A Clarinha abre o berreiro e chora-a-plenos-pulmões. O Juva começa a suar [temperatura nesta época do ano, em Santo Amaro de Oeiras, às 5h10m da manhã: 8 graus]. O Juva pensa na possibilidade de mais um biberão: “Dou-não-dou-dou-não-dou-dou-não-dou? DOU!”.)
(A Clarinha berra ainda mais alto, ainda mais alto, ainda mais alto.)
(O Juva dispara em direção à saída do quarto da Clarinha, desce correndo as escadas na escuridão da casa, prepara outro biberão, sobe correndo as escadas, entra no quarto da criatura-aos-berros, fechando a porta para que Os Peitos não acordem, tira a criatura-aos-berros do berço, senta-se no sofazinho, coloca a criatura-aos-berros no colo, posiciona o biberão na entrada da goela da criatura-aos-berros e respira fundo. A criatura-aos-berros volta num segundo a ser a Clarinha-coisa-mais-linda-do-papai-maravilhoso e sorri, extasiada. Os Peitos dormem.)
Clarinha:
Ah… Ah… (mama a mamadeira de olhos fechados)
Juva:
Bom… bom…
(Passam-se vinte minutos.)
Juva (retirando a mamadeira da boca da criatura):
Agora vamos arrotar…
(O Juva olha para a Clarinha e vê que a sua Clarinha-coisa-mais-fofa-e-gorda-da-face-do-planeta pegou no sono enquanto mamava. O Juva pensa: “Os bebês, depois que mamam, precisam arrotar, senão…”. O Juva então se levanta do sofazinho, com a Clarinha ao colo, e começa a bater nas costas da Clarinha.)
Juva:
Acorda, Clarinha… Acorda…
(A Clarinha não acorda, tampouco arrota. O Juva bate um pouco mais rapidamente nas costas da Clarinha.)
Juva:
Acorda-arrota, Clarinha… Acorda-arrota…
(Passam-se vinte minutos.)
(A Clarinha não acorda-arrota. O Juva bate com um pouquinho de nada de mais força nas costas da Clarinha. Nada. O Juva suspira e pensa: “Eu dei a ela uma oportunidade para arrotar; ela não arrotou, paciência”. O Juva coloca delicadamente a Clarinha no berço, cobre-a com o cobertorzinho [o mesmo que edredãozinho] e se dirige lentamente para a porta, para o corredor, para o seu próprio quarto, para a sua própria cama, para a sua própria metade da cama, para a sua própria metade do edredão, deita-se e tenta dormir. Os Peitos dormem.)
CENA 4 (6h da manhã)
(O Juva está deitado na sua cama, parado, à espera do próximo Comboio-do-Sono, que-não-vem-que-não-vem-que-não-vem. E o Juva começa então a pensar que está com fome, e começa a pensar no café-da-manhã, café-com-pão-café-com-pão-café-com-pão, e também no Comboio-do-Sono, que-não-vem-que-não-vem-que-não-vem. O Juva dorme enfim.)
CENA 5 (6h30m da manhã)
Pipoca (Alice) (parada no meio do corredor):
Mamã… [o mesmo que mamãe] Mamã… Mamãããã!
(O Juva abre os olhos, arregalando-os em plena escuridão do quarto, e pensa, quase-ainda-dormindo: “A Clarinha… Não, a Clarinha ainda não sabe falar…”. O Juva acorda-assim-assim, espreguiça-se, levanta-se e se dirige ao corredor. Os Peitos dormem.)
Juva (aproximando-se da Pipoca):
Pipoca? O que houve, minha flor? Hã? Teve um pesadelo?
Pipoca (com voz de choro):
Papá [o mesmo que papai]…
Juva (bocejando):
Sim, minha flor. O que houve?
Pipoca (começando a chorar baixinho):
Estou com imensa saudade das minhas amigas da escola [imensa saudade: o mesmo que muita, muita, muita saudade mesmo]… E por isso não estou a conseguir dormir…
Juva (chocado):
Minha flor, são seis e meia da manhã. Essas suas imensas saudades devem ser vontade de fazer xixi. Vamos fazer xixi.
(O Juva vai com a Pipoca para a casa-de-banho [o mesmo que banheiro], senta a Pipoca na sanita [o mesmo que vaso sanitário] e espera.)
Pipoca (já dormindo):
Xiiiiiiiiiii [o mesmo que fazer xixi].
(O Juva passa o papel higiénico no pipi [o mesmo que xibiuzinho] da Pipoca, sobe as cuequinhas [o mesmo que calcinhas] da Pipoca, sobe o pijaminha da Pipoca e leva a Pipoca, já adormecida, para a sua caminha. Cobre a Pipoca e retorna rapidamente para o seu quarto, para a sua cama-maravilhosa, para o seu edredão, a ver se consegue chegar a tempo de não perder o próximo Comboio-do-Sono, que, no entanto (bolas!), havia acabado de passar. O Juva deita-se. O Juva remexe-se na cama. O Juva vira-se para um lado, cansa-se desse lado, vira-se para o outro lado, começa e pensar no que é que escreverá para o seu blogue-cãozinho nesta sexta-feira, tem enfim uma idéia, começa a pensar nessa idéia com animação, olha para o relógio, que tiquetaqueia no silêncio de Santo Amaro de Oeiras, e não dorme. Os Peitos, Os Peitos dormem.)
CENA 6 (7h da manhã)
(O Juva continua a remexer-se na cama, remexendo pensamentos e à espera de um Comboio-do-Sono que afinal não veio. Os Peitos dormem. Até que…)
Clarinha:
Ahhrrr… Ãaaaiinnncs… Ãaaaiinnncs…
(O Juva, de olhos bem abertos, levanta-se totalmente desperto, sai do seu quarto, fecha a sua porta e entra no quarto da Clarinha, fechando a porta de modo a que Os Peitos não acordassem.)
Clarinha:
Dá… dá… dá… Dá! Dú! Dú!! Dú!!! Dú!!!! Ãaaaiinnncs!!!!!
Juva (abrindo um sorriso-do-tamanho-de-um-bonde):
Bom dia, Clarinha-batatinha… Bom dia… Papai veio te salvar… te salvar… te salvar…
(O Juva tira a Clarinha do berço, troca a fraldinha-cheinha-de-xixi-da-Clarinha por uma nova-fraldinha-sequinha-sequinha e senta-se no sofazinho com a Clarinha. O Juva brinca de do-do-da-da-plim-plim-plum-plum com a Clarinha, que ama brincar disso. Passa-se uma hora, toda ela cheia de do-do-da-das e plim-plim-plum-pluns.)
CENA 7 (8h da manhã)
(Eis que a porta do quarto da Clarinha se abre, revelando a presença da…
Pipoca:
Papá… Não estou a conseguir dormir. Dói-me imenso este pé aqui.
Juva:
Bom dia, minha flor. Deixe ver o pé. Onde é que dói?
Pipoca:
Aqui, ó (e aponta para o pé). Tenho aqui uma comichão [o mesmo que coceira].
Juva:
Isto não é nada. Já passa.
Pipoca (indignada):
Mas eu não estou a conseguir dormir, papá!
Juva:
Não precisa dormir mais, minha Pipoflex-flip-flip. Já são horas de acordar.
Pipoca (fazendo carinha de coro):
Quero a mamã [o mesmo que Os Peitos]…
Juva:
Vamos deixar a mamãe dormir. Mamãe trabalhou muito ontem. Mamãe está cansada. Vamos tomar o nosso pequeno-almoço: eu, você e a nossa Clarinha-batatinha.
(Pipoca e Juva, com a Clarinha-batatinha ao colo, descem para a cozinha e começam a preparar o pequeno-almoço. Já acabavam de comer quando ouvem um som no andar de cima.)
Pipoca:
É a mamã! É a mamã!! Mamããã!!!
Clarinha:
Dá! Dá!! Dá!!! Dú! Dú!! Dú!!! Ãaaaiinnncs!!!!
Os Peitos (bocejando e sorrindo ao mesmo tempo):
Bom dia a todos!
Juva:
Bom dia, amor! Dormiu bem?
Os Peitos (sorrindo o sorriso-mais-doce-do universo):
Ôoooooo…
Fim