30 de novembro de 1996

"Um escritor senta à mesa"

"Um escritor senta à mesa — 'bon vivant' é personagem de romance recheado com receitas da Provence", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 30 de novembro de 1996.

Resenha sobre o livro Gula, de John Lanchester, ed. Companhia das Letras, trad. Vera Pedrosa.

Gula, ou The debt to pleasure, romance de John Lanchester, poderia seguir pela deliciosa esteira das chamadas histórias-com-receita — como Festa de Babette e Como água para chocolate. Poderia, sim, não fosse a presença tantalizante, monológica e hipercrítica desta que é uma das mais sinistras e sedutoras criaturas já inventadas. Mr. Tarquin Winot, ou monsieur, como prefere, é o cavalheiro que assina o prefácio deste livro. Culto, inteligente, irónico e — a julgar pelo efeito salivante da leitura — irrepreensível cozinheiro, este inglês bon vivant de família rica decide, motivado por amigos e, segundo pensa, por algum tipo de altruísmo súbito, trazer a público o resultado de suas considerações culinário-existenciais sob a forma de uma espécie de diário de viagem gastronómico.

Winot conta em primeira pessoa detalhes de sua infância, traça a genealogia da batata, aponta os segredos do fermento, justifica a invulgaridade do caviar, desvela os sabores existentes na mente de Deus, cataloga venenos, fala de filosofia, arte e literatura e convence. Convence porque é lógico, imodesto e convicto; convence porque o texto, impecável — repita-se, impecável —, é um prato cheio de piadas eruditas, armadilhas e receitas; ingredientes que Lanchester, repórter, editor, crítico literário do London Review of Books e, sobretudo, premiado crítico de restaurantes do London Observer, soube misturar e muito bem servir. O prato é um saboroso roteiro de 220 páginas pela França, dividido em quatro partes. Cada parte é uma estação do ano; cada capítulo, um menu (o leitor pragmático deverá pegar da pena e anotar aqui mesmo, ao canto da página). Durante o Inverno, salada de queijo de cabra, ensopado de peixe e torta de limão. À Primavera, omeleta com cogumelos (alguns, fatais), carneiro assado com feijões verdes (o cordeiro é sem dúvida melhor, porém raríssimo) e pêssegos fatiados em vinho tinto (é de boa índole não servir pêssegos com sementes; estas contêm cianogénio; este, combinado com enzimas, produz cianureto). Verão, Outono, demais pratos e respectivas receitas, vide Gula.

Mas, afinal, que pretende Winot com este banquete? Não se deu ao trabalho de o escrever apenas para dizer que Auden misturava vermute e gim à hora do almoço; que vodka quer dizer aguinha; que o tempo dos incas era medido pelo tempo de estar uma batata perfeitamente cozida; que Joyce se referia ao queijo como o “cadáver do leite”, e que o leite coagulado significa sabedoria e maturidade alcançadas durante a vida, esta “doença incurável, com índice de mortalidade da ordem de cem por cento — forma segura de morte lenta”. Não.

À medida que se avança no menu e vai chegando o outono, o que antes tinha gosto de singular excentricidade e requinte ganha a consistência de uma megalomania espaçosa e ávida. Tarquin Winot controla o texto, o enredo e os personagens, trabalha com evasivas e esclarece apenas o que quer esclarecer para que tudo o mais permaneça encoberto. Cara a cara com a criatura de Lanchester, mesmo o leitor mais atento não vê nada, apenas jatos ofuscantes de narcisismo e egolatria. Recomenda-se o olhar de viés, oblíquo e dissimulado, este sim sagaz o bastante para entrever, nas histórias que Winot aos poucos vai deixando escapar — como os aperitivos e as entradas de um singular repasto —, a bizarra intimidade de sua presença com trágicos e inexplicáveis acontecimentos envolvendo a morte de pessoas próximas — explosões, suicídios, acidentes com trens e intoxicações.

É pelo rabo do olho também que se percebe a real espécie de sentimentos que Tarquin experimentava por seu falecido irmão Bartholomew — importante, fecundo e afamado pintor. Qualidades inconvenientes ao comportamento de um artista, que “deve ser avaliado pelo que não faz: o pintor, pelas telas que deixou abandonadas e não tentou fazer; o compositor, pela extensão e intensidade de seu silêncio”. Logo, quem terá feito arte, sem com isso ter cometido “o erro ingênuo, naturalmente encantador mas idiota, de transferir pensamentos para papel, tela ou piano”, será Winot, não Bartholomew — dedução que esvazia de importância a série de entrevistas que lhe faz Laura Tavistock, a bela jovem encarregada de escrever a biografia de seu irmão. Winot desloca os papéis e, por conta própria, passa a considerar-se, ele mesmo, o biografado.

Além de estranho, Winot está disfarçado, com peruca e bigode falso. Qual a razão do disfarce? Qual o objetivo de sua pequena viagem à Provença? Por que vai, aos bocados, dando a impressão de estar seguindo os passos de um jovem casal em lua-de-mel? Estas perguntas tornam-se particularmente incômodas à medida que corre a Primavera, lá pelos idos de Abril. “Foi nessa época do ano que, num desses dias, após haver comido um gigot com alho, acompanhado do clássico haricot, feito por minha bela mão (...), começou timidamente a luzir, em minha imaginação, o projeto artístico que se transformaria na obra de minha vida.” T. S. Eliot escreveu, em The waste land: “Abril é o mais cruel dos meses”. Tarquin Winot responderia: “Sim, Eliot, mas não para os cozinheiros”.

11 de outubro de 1996

"O fluxo caótico da memória"

"O fluxo caótico da memória — Romance crepuscular com parágrafo de 360 páginas reanima o passado com os vestígios do tempo presente", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 12 de outubro de 1996.

Resenha sobre o livro Passado contínuo, de Yaakov Shabtai, ed. Imago.

Passado contínuo, de Yaakov Shabtai, não conta uma história, mas dezenas. Lembranças, diálogos, descrições, devaneios, monólogos e narrativas de sonhos são fragmentos a gravitar velozmente à volta do dia-a-dia de três amigos — César, Israel e Goldman —, rasgando em mil pedaços o ambiente doméstico que os envolve e escrevendo, em cada pedaço, uma história de vida.

Logo ao início, somos informados de que o pai de Goldman morre de doença e velhice e Goldman, passados os exatos nove meses que constituem o tempo do romance, decide, em primeiro de janeiro, matar-se. A partir daí, o texto constrói uma galáxia de histórias à ligeira. Quando retrocede, a narrativa é um sistema vibrante e complexo de ancestralidades e aconteceres — famílias, amigos, amantes, brigas, casamentos, crimes, jantares, almoços de sábado e enterros, muitos enterros. Em tempo presente, fora o suicídio de Goldman, o enredo é uma teia onde não acontece nada. As frases engatinham, frouxas e descontínuas, e os personagens hesitam e atolam-se — imobilizados numa espécie de caos existencial, onde o problema, o velho e irreparável problema, continua sendo a morte sem Deus.

Passado contínuo, ou o original Zichron dvarim — segundo a tradutora, Nancy Rozenchan, expressão para Memorando, a lembrança das coisas —, é um vertiginoso fluxo de memória. O texto só existe na medida em que lembra. Tecnicamente falando, o foco narrativo está na terceira pessoa, mas ela é muito mais que uma pessoa — tem ares de divindade e bem poderia ser a bela Mnemósina, mãe das nove Musas e deusa da Memória. Sua função é reanimar o passado e alimentá-lo com vestígios do tempo presente.

Da primeira à última linha deste romance de muitas frases, poucos períodos e um só parágrafo — um bloco maciço de 360 páginas —, Shabtai esgarça o cotidiano de várias famílias israelenses. Pertencem as famílias a uma camada social de elite intimamente ligada ao movimento sionista. Nos anos seguintes à formação do Estado, em 48, esta classe, antes compacta e poderosa, assiste sentada ao próprio esfacelamento político, religioso e moral.

O resultado da decadência chega ao núcleo familiar, senta-se à mesa de sábado e come, em silêncio total, conversas, afetos e saudades. César, Israel e Goldman, microcosmos da geração mais nova, são corpos estranhos em crise. Não se reconhecem como filhos, maridos, pais ou cidadãos. O mais que conseguem são esbarros; o mais que fazem não vale nada. César é devasso, insatisfeito e egoísta. Não tem o que dizer às suas várias mulheres, não sabe de onde mais tirar o prazer que não encontra em nenhuma delas e só se relaciona na medida em que pode saciar-se sem ônus. Israel, por sua vez, é como se não existisse. Mora de favor no estúdio de César, não tem opinião, não consegue dormir com a jovem Ella, é alheio, impotente e insípido. Goldman, entre o seu próprio enterro e, nove meses antes, o do pai, fez ginástica e apenas iniciou a tradução do Somnium, de Kepler. Quis morrer antes de continuar.

Yaakov Shabtai também teve a vida curta. Nasceu em 1934, foi criado em Tel Aviv e, durante o serviço militar, estabeleceu-se num kibbutz, onde começou a escrever. Passados dez anos, volta para Tel Aviv e dedica-se à literatura. É autor de novelas, peças e histórias para crianças. Sofre, aos 47, um ataque do coração e morre — sem saber latim e sem ter podido ler o Somnium no original.

Somnium significa sonho. A fábula, até hoje pouco conhecida, conta a história de um menino, Duracotus, que sonha alto. No sonho, realiza, com sua mãe, uma viagem à lua. Lá chegando, encontram seres errantes, abrasados sob o sol do longo dia lunar, à cata constante de um pouco de água e vivendo um tempo estranho, onde a existência é curta e o crescimento, rápido.

São muitas as aproximações possíveis entre a “ficção científica” seiscentista de Kepler e o romance de Shabtai. O crítico James S. Diamond, em artigo sobre o tema, identifica algumas. Uma delas, formal, diz respeito à superposição de planos narrativos. O Somnium começa com um sonho, que atravessa todo o texto. De repente, quando já nos desligamos do contexto inicial, a história volta ao início, para o exato momento em que Duracotus acorda, sobressaltado, de sua viagem à lua. Passado contínuo, quando relembra, carrega-nos para longe; quando retorna, abrupto, mostra-nos que não saímos do lugar. A outra função do Somnium está em oferecer, através do bizarro mundo lunar, a possibilidade de um espelho deformado. Goldman traduz o Somnium e conhece a vida na lua. Duracotus sonha e assiste à vida na Terra.

Ao fim e ao cabo — sonhando ou relembrando —, Kepler e Shabtai tentam dizer a mesma coisa: o tempo voa, a realidade é um fluxo nada razoável de aconteceres e a existência só não é totalmente absurda porque, a depender do lugar e do momento em que se esteja, há quase sempre Deus ou — na eventualidade de uma ausência — a Memória.

Somnium, Johannes Kepler (1571-1630)

O astrônomo e astrólogo Johannes Kepler (1571-1630) começou a escrever este livro entre 1609 e 1610. A publicação definitiva, tal como se conhece hoje, só aconteceu, póstuma, em 1634. Segundo James Diamond, o Somnium começa com uma “história narrada por um narrador em primeira pessoa que conta como pegou no sono”. Durante o sonho, teve a sensação de que estava lendo um livro. “O estranho livro falava das aventuras de viagem de um menino chamado Duracotus”. Desse ponto em diante, Duracotus toma a cena e conta “detalhes da sua última excursão: uma viagem imaginária à lua, ao lado de sua mãe”. A narrativa segue descrevendo a superfície lunar e seus habitantes. Lendo os trechos traduzidos por Goldman, protagonista do Passado contínuo, saberemos que os habitantes da lua “não têm moradia fixa: vagam em bandos durante um dia de horizonte a horizonte (...). O crescimento [dos seres lunares] é rápido e a vida é curta porque cada corpo cresce em dimensões gigantescas”.

22 de setembro de 1996

7 de setembro de 1996

"A dinâmica das máscaras"

"A dinâmica das máscaras — Jogo de ciladas e embustes do mundo literário é revelado no segundo livro de autor premiado", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7 de setembro de 1996.

Resenha sobre o livro A dinâmica das larvas, de Rodrigo Lacerda, ed. Nova Fronteira.

Este pequeno e inusitado romance, que não é exatamente romance; é comédia, não apenas comédia, mas farsa, talvez comédia-farsa, ou farsesca; esta quase novela levemente realista e de gestos largos; esta peça enfim, mas não de teatro, podendo-se-lhe chamar então peça em prosa; este romance, dizíamos, já nascido imune à estratificação em gêneros, conta, em quatro capítulos, a história de quatro personagens, quatro desejos e um punhado de insetos cientificamente observados em sua fase larval.

“A dinâmica das larvas”, de Rodrigo Lacerda, mesmo autor de “O mistério do leão rampante”, premiado com o Jabuti de Melhor Romance em 1995, é também uma dinâmica das máscaras. Larva, aliás, nunca é demais dizer, vem do latim e pode significar “máscara”. O enredo é um tecido minado, e as armadilhas se vão armando e desarmando à medida que avançamos, capítulo a capítulo, neste jogo de ciladas e embustes.

A história começa no dia em que será anunciado o resultado do concurso de literatura promovido pela Casa do Livro. A verdadeira identidade do autor premiado está muito bem guardada na ponta da língua de uma única mulher. O problema é que dona Míriam, funcionária da Casa do Livro e principal organizadora do evento, não abrirá a boca por nada deste mundo, nem mesmo para beijar seu marido e tentar reativar as rotinas amorosas de um casamento que já vai longe.

O professor Carlos Vasconcelos, doutor em teoria literária, editor universitário e marido, tem um sonho secreto: fundar uma editora que só publique a nata, o supra-sumo da chamada “baixa literatura”: coleções de faroeste, revistinhas picantes e espionagem americana de quinto escalão. Depois de trinta anos de Academia, Vasconcelos deixou de acreditar na grande arte como via de conhecimento para as coisas do mundo, está insatisfeito com seu emprego à frente da editora da universidade e quer autonomia para decidir o que deve e o que não deve publicar.

A tese “Estrutura e dinâmica de uma população de larvas de Myrmeleon uniformis”, do zoólogo Abdias Lobato, é um exemplo do que Vasconcelos julga não dever publicar. O próprio professor Abdias, cientista obcecado, depois de quinze anos curvado sobre o modus vivendi das tais larvas, tornou-se, aos olhos de Vasconcelos, uma patologia ambulante, a representação viva de uma ciência morta — especializada, técnica e melancolicamente afastada da realidade cotidiana dos homens. Mas as larvas são, para o zoólogo, uma questão pessoal. Significam a funcionalidade morfológica levada às últimas conseqüências, exprimem a harmonia inabalável entre modo de vida e organização social, sendo, enfim, o símbolo da metamorfose sem dor e sem filosofia — um exemplo para a raça humana, esta errante, insatisfeita e desajustada espécie.

Para completar o quadro, há ainda o editor de literatura José Fonseca. Sua editora está a dever os tubos aos banqueiros, seu contador já não sabe mais a quem pedir empréstimos e Fonseca, bon vivant incurável, só faz beber e dormir. Entre os editores Fonseca e Vasconcelos está o vencedor do concurso literário. Publicar o romance premiado significa, para os dois, dinheiro. Para Vasconcelos, a única maneira de fundar a editora de seus sonhos. Para Fonseca, a única maneira de não falir.

Em menos de duzentas páginas, Rodrigo Lacerda conta, e muito bem, esta história de arapucas. O texto é ágil, o narrador esbanja competência quando passa, num átimo, do discurso indireto para o indireto livre, o vocabulário arrebanha, sem desafinar, palavras raras e outras deliciosamente informais, os diálogos são engraçadíssimos, mas, como há sempre uma gramática ranzinza (e um crítico implicante) no meio do caminho, o texto não é integralmente escorreito. Sob este aspecto, “O mistério do leão rampante” é um trabalho bem mais artesanal.

A edição da Nova Fronteira é, acima de tudo, sofisticada. A capa é um primor, e a apresentação de Marco Lucchesi é poesia, brilhante e luminosa, do começo ao fim. O único senão fica por conta do texto, anônimo, da contracapa, que inclui entre as qualidades “em geral contraditórias” da escrita de Rodrigo Lacerda a qualidade de ser ao mesmo tempo “engraçada e inteligente”. Ora, ser engraçado e, ao mesmo tempo, inteligente não é ser, nem em geral, contraditório (aliás, os respectivos opostos também podem, por sua vez, conviver, e o texto da contracapa é um exemplo vivo); ser engraçado e inteligente é, acima de tudo, ser o que esta “Dinâmica das larvas” verdadeiramente é: artística do começo ao fim.

Trecho 1:

“Sabe-se que os muitos templos, palácios, pirâmides, monumentos funerários de toda a sorte, e mesmo cidades inteiras que sobreviveram ao tempo, foram salvos da erosão e da força destrutiva dos elementos graças à sedimentação gradual dos terrenos (...). Ora, este pomposo termo, ‘sedimentação’, não passa de outro nome para a santa cruzada das minhocas. Uma vez que a sedimentação é responsável pela preservação dos monumentos, e a minhoca pela sedimentação, conclui-se daí, com boa e irrespondível lógica, que são as minhocas as padroeiras dos arqueólogos e cientistas afins, além das principais guardiãs dos conhecimentos e segredos dos povos do passado (...). Os faraós, Alexandre da Macedônia, os Césares, todos devem, onde quer que estejam, render graças às minhocas, por preservarem-lhes do ostracismo definitivo.”

Trecho 2:

“De um lado, a literatura desgostara-o tremendamente. Afora Homero, Shakespeare e Dostoiévski, os outros eram repetições pouco inspiradas do que já havia sido dito. A literatura como um todo, de uns anos para cá, parecia-lhe um repositório de velhos assuntos e personagens, velhos enredos e metáforas, que ora descambavam num humor já gasto, ora escorregavam numa dramaticidade patética. Acima de tudo, a função literária dava-lhe a impressão de uma atividade inútil, meramente contemplativa, incapaz de agir sobre os fenômenos que descrevia e, por conseqüência, de fazer algum movimento real em direção à melhoria da vida humana sobre a superfície do planeta.”

2 de janeiro de 1996

"A chuva amarela"

[Sem data.]
"A chuva amarela", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, sem data.

Resenha sobre o livro A chuva amarela, de Julio Lhamazares.

A história da solidão começa com a morte do tempo. E a solidão dá à luz, à luz fria e embaçada do inverno nos Pireneus, o infeliz que há de contar a história deste insólito romance — os dez últimos anos de vida do único sobrevivente de um vilarejo abandonado. Nas montanhas da região de Sobrepuerto, no Pireneu de Huesca, Espanha, apodrecendo aos poucos, desmoronando em silêncio, está o povoado de Ainielle. A história de seu desgraçado habitante é narrada por ele próprio, às portas da morte — se já não era morte a vida que então vivia.

A chuva amarela, do espanhol Julio Llamazares, conta esta história, que também poderia ser a de outros povoados abandonados, como os de Basarán, Cillas, Casbas, Bergua ou Escartín — lugares onde não há mais ninguém, embora ainda lá estejam as casas, com suas mesas, cadeiras, camas e cobertas de lã. Lugares que existem apenas na medida em que resistem, quando resistem. O povoado espanhol de Vegamián, na província de León, deixou de existir. Lá nasceu, em 1955, o próprio Llamazares. Formou-se em direito, viveu como jornalista em Madri, publicou dois trabalhos de poesia, La lentitud de los bueyes (1979) e Memoria de la nieve (1982), que ganhou o prêmio Jorge Guillén, e os livros El río del olvido (1990), En Babia (1991), Luna de lobos (1985), La lluvia amarilla (1988) e Escenas de cine mudo (1994).

A estranha naturalidade de Llamazares — nativo de um lugar que não existe — gerou um romance igualmente estranho e profundamente triste. Mas o povoado de Ainielle existe, está lá, aconteceu. “No ano de 1970”, segundo o autor, “ficou completamente abandonado”, embora suas casas ainda resistam “em meio ao esquecimento e à neve”. Os poucos personagens deste livro, por outro lado, não são verdadeiros. Mas dizer isto com relação aos últimos habitantes de um povoado extinto é quase a mesma coisa que dizer o oposto. Se tal ou qual personagem não existiu de fato, pode existir por suposição, e sua história de vida será, antes e depois de tudo, a história de um sobrevivente.

O sobrevivente, aqui, se chama Andrés, e sua solitária e teimosa permanência em Ainielle terá a forma de um fantástico e arrasador monólogo, cuja razão de ser está no ajuste de contas que estabelece com o mundo dos vivos — um esforço do narrador no sentido de transformar em linguagem o desamparo, o desespero e o delírio de que foi vítima. Sua lucidez nos primeiros anos, quando assunta a si mesmo, sua família ausente, o povoado e seus antigos habitantes, vai gota a gota se diluindo numa poça de sonhos, lembranças e alucinações. Alarga-se a poça com a chuva amarela das folhas de outono, abrem-se os braços da loucura e da morte, e o único olhar que devolve o seu é o de uma cadela sem nome, cuja sombra, como tudo o mais em Ainielle, vai lentamente amarelando.

A história de Andrés é também a história de sua casa. Enfrentaram ambos, um dentro do outro, a lenta partida dos outros habitantes — lenta no início, veloz quando já eram poucos os que restavam — e o terrível escorrer do tempo. Envelheceram ambos, homem e casa, ao longo de dez anos de inteira solidão. Sentiram a velhice penetrar-lhes a pele e as paredes sob a forma de rugas e rachaduras. Estalaram juntos no inverno ossos e vigas, articulações e dobradiças, enquanto assistiam, da beira do fogo, ao desmoronamento das outras casas madrugada adentro. Escutaram durante todas as noites de cada ano o crepitar da ferrugem povoando os cantos da sala, dos quartos, da cozinha e da memória. Sofreram calados a ação da umidade e perceberam em si mesmos o mofo e a angústia. Morreram um dentro do outro, ao mesmo tempo e insepultos.

O texto de Llamazares é um poema. Sua capacidade de metaforização é radical — o que faz da narrativa um laboratório de insólitos ajustes, a transferir substantivos, adjetivos e verbos de um específico universo simbólico para outros, de natureza inteiramente diversa, no restrito espaço de uma frase. E não há frase feita, porque as frases avançam, enlouquecidas e misteriosas, e o final é sempre uma cilada, ou a quebra de uma promessa, ou um soco no estômago. A tradução de Monica Stahel transcorre belamente e sustenta, sem desafinar, a vibração do texto e a justeza das expressões. Seu maior mérito, contudo, está no desenvolvimento impecável da pontuação — a difícil pontuação de um monólogo que tem de ser razoável e inteligível o bastante para descrever o próprio absurdo de sua condição póstuma.

Trecho 1: 

“Pouco a pouco, o cansaço e o desânimo foram me invadindo, a atividade infatigável dos primeiros dias deu lugar a um abatimento cruel e progressivo, e, assim, quando chegou o verão, vi-me novamente perambulando como um cão abandonado pelas ruas do povoado. Os dias eram longos, preguiçosos, e a tristeza e o silêncio abatiam-se como avalanches sobre Ainielle. Eu passava as horas vagando pelas casas, percorria as cocheiras e os aposentos e, às vezes, quando o anoitecer se prolongava mansamente entre as árvores, acendia uma fogueira com tábuas e papéis e me sentava numa entrada a conversar com os fantasmas de seus antigos habitantes.”

Trecho 2: 

“A partir desse dia, a memória foi a única razão e a única paisagem da minha vida. Abandonado num canto, o tempo se deteve e, como um relógio de areia quando é virado, começou a correr no sentido contrário ao que mantivera até então. Nunca voltei a sentir a angústia de me aproximar de uma velhice que, durante muito tempo, resistira a aceitar como sendo a minha. Nunca voltei a me dar conta daquele velho relógio que, abandonado num canto, estava inutilmente pendurado na parede da cozinha. De repente, o tempo e a memória se confundiram, e todo o resto — a casa, o povoado, o céu, as montanhas — deixara de existir, a não ser como lembrança muito distante de si mesma.”

1 de janeiro de 1996

"Três mapas de uma geografia contraditória"

[Sem data.]
"Três mapas de uma geografia contraditória — O escritor israelense Omós Oz constrói personagem que se volta para si mesmo e sua natureza errante numa Jerusalém em estado de guerra", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, sem data.

Resenha sobre o livro Fima, de Amós Oz, ed. Companhia das Letras.

Mal se aproxima do vaso, Fima abre as calças e se concentra. Como a bexiga hesita, puxa a descarga para inspirar-se no som da água caindo e consegue; a bexiga cede mas a água já se foi e há ainda um mundo de xixi pela frente. Perde a paciência de esperar que se encha novamente o reservatório e desata a puxar a cordinha, mas o fluxo é fraco, o xixi não desce, e, enfim, por que não deixar para depois?

Tanto tempo morando sozinho, Fima passou a falar às paredes, anotar meticulosamente seus sonhos e ligar para os amigos tarde da noite ou bem cedo. Quase não troca os lençóis, deixa a geléia endurecer fora da geladeira, acumula louça e lixo, observa lagartos e baratas, esquece-se das contas a pagar e das meias quando dorme fora, derruba copos, diz e faz coisas de que se arrepende, olha da janela de casa para as colinas de Belém e vê o passado desfilando pelas pernas de profetas, sacerdotes e milagreiros, ou não faz nada, e deita e dorme até o meio-dia, hora em que se levanta e vai ser aquilo que faz lá na clínica ginecológica dos doutores Wahrhaftig e Eitan: além do café, atende às pacientes, anota recados e marca consultas.

Efraim Nisan, ou Fima, nasceu em Jerusalém e tem 54 anos. Foi poeta, se poeta é algo que se deixa de ser quando não se faz mais o que poetas fazem, versos, e tem dois problemas: a luta pela paz entre judeus e árabes e sua azia. A azia é problema só dele, a guerra, não. Fima responsabiliza as suas lideranças extremistas pelo estado de carência dos árabes palestinos desde a década de 20; apresenta, em artigos e discursos aos amigos, a opção entre a identidade nacional e os territórios ocupados; insiste na suspensão total das hostilidades como o único passo para a negociação e propõe a retirada das forças armadas da faixa de Gaza, ainda que sem acordo. Para tanto, organiza verdadeiras reuniões imaginárias com o seu gabinete não menos imaginário, dá posse de ministro aos amigos e funda sozinho um Conselho Revolucionário com o fim de estabelecer a paz em seis meses. Isso tudo acontece em 1987.

Durante cinco dias acompanhamos este homem levemente gordo e bastante branco, em verdadeira peregrinação à volta de si mesmo e de uma Jerusalém em pé de guerra com os árabes. Durante cinco dias, estará Fima ao nosso lado, de manhã à noite, com algumas pausas para um pão com geléia ou um monólogo sobre a condição humana e a sua natureza errante. Ao fim de cinco dias saberemos quase tudo da vida deste intelectual em plena inatividade, na eterna cata por algo que não sabe se perdeu, porque não sabe o que é, nem como ou onde procurar.

O escritor israelense Amós Oz desenhou, com este surpreendente romance, três mapas: o mapa minucioso do cotidiano pacato de um homem, o mapa das condições políticas e históricas de seu povo e um terceiro, que pode ser o título original, Hamatsáv hashlishí, em sua tradução para o inglês: The third condition; pode ser a alternativa terceira ao problema de ser a guerra santa ou política, pode ser uma maneira de falar do povo, este terceiro-estado sempre excluído, ou pode ser o próprio Fima, deliciosamente receptivo às contradições — suas, de seu país e de sua espécie. O que acontece depois deve ser magia. Os três mapas se superpõem, as linhas geram entrelinhas, e um jogo vertiginoso de ida e volta começa. A mágica de Oz vai além de seu tempo, de seu personagem e de seu país, descansa ao pé da frase, ali onde as palavras se preparam para a corrida, ou para a dança, ou mesmo para a loucura do sonho, e volta. Fima, neste percurso, está bem perto; um pouco atrás, um pouco esbaforido, mas ao alcance da mão, a manter-nos ocupados com o banal e o sublime, sem perder a cabeça, a graça e a ironia.

Amós Oz nasceu em Jerusalém em 1939. É considerado um dos maiores escritores israelenses vivos, seus livros estão em 22 línguas, escreve para crianças, escreve para adultos, escreve ensaios, ganhou o prêmio Femina e, em 1992, o Prêmio da Paz em Frankfurt. Mas não é só. Oz faz parte de uma nova geração de escritores — surgida após o estabelecimento do Estado de Israel, em 1948 —, que, desde o fim dos anos 50, vem mudando a cara da literatura hebraica.

E a cara da literatura hebraica tinha a cara do judeu errante — desafixado e perseguido. A produção da geração anterior tratou a comunidade judaica como tema, fez deste tema personagem e construiu para ele um drama, na maior parte dos casos, histórico — a diáspora, o massacre nazista. A mudança que se verifica após 48, com a nova geração, é a tematização do indivíduo.

No entanto, fechar o cerco sobre o indivíduo, fechando-lhe os olhos para a conturbada história de seu povo, poderia significar a quebra do diálogo e sua substituição pelo ricochete do eco. Difícil ignorar o Estado de Israel; difícil não ver que, a reboque, e bastante pesada, ali está a sina do povo judeu. Difícil virar justamente esta página. Então escreveram também sobre as famílias dos indivíduos, e as famílias cresceram e se multiplicaram, tornando-se, cada qual, uma grande alegoria para uma certa idéia de nação. De outro modo, esta seqüência de metáforas acabou por desaguar novamente na larga comunidade judaica. Está, pois, fechado o cerco e restabelecido o diálogo.

Trecho 1:

“Fima não estava disposto a desistir nem deixar de lado.

— Você se lembra daquele verso famoso do poema de Amir Gilboa: ‘De súbito um homem acorda de manhã, e sente que é um povo, e começa a andar’? É exatamente a este absurdo que eu estou me referindo. Em primeiro lugar, professor, a verdade, mão no coração. Alguma vez você já acordou de manhã e sentiu que era um povo? No máximo depois do almoço. Quem é que consegue acordar de manhã e sentir que é um povo? E começar a andar? (...) É sério. Chegou a hora de parar de se sentir como um povo. Chegou a hora de nem começar a andar. Vamos acabar com essa baboseira. ‘Uma voz me chamou e eu fui.’ ‘Aonde nos enviarem — nós iremos.’ Essas frases têm uma motivação semifascista. Você não é um povo inteiro. Eu não sou um povo. Ninguém é um povo. Nem de manhã nem de noite. E, por falar nisso, não somos mesmo um povo. No máximo, talvez uma tribo.” (pág. 176)

Trecho 2:

“No meio de julho, logo depois dos seus exames finais, no jardim do Convento Ratisbonne, ele se apaixonou pela guia francesa de um grupo de turistas católicos. Estava sentado num banco do jardim esperando a namorada, uma estudante de enfermagem chamada Shula, que dois anos depois se casou com seu amigo Tsvi Kropotkin. Fima segurava entre os dedos um broto florido de oleandro e os pássaros discutiam sobre sua cabeça. Nicole, sentada no banco ao lado, se dirigiu a ele: ‘Será que há água por aqui? Você fala francês?’. Fima respondeu afirmativamente às duas perguntas, mesmo não tendo a menor idéia de onde achar água e sabendo apenas umas poucas palavras de francês. A partir daquele momento, seguiu as pegadas dela por toda parte em Jerusalém; não a deixava em paz apesar dos educados pedidos dela; não desistiu nem quando o líder do grupo o advertiu de que seria obrigado a registrar queixa contra ele. Quando ela foi à missa na Abadia da Dormição, ele esperou do lado de fora como um cachorro durante uma hora e meia. Toda vez que ela saía do King's Hotel, em frente ao Edifício Terra Sancta, encontrava Fima diante da porta giratória, olhos brilhando. Quando ela ia ao museu, lá estava ele à espreita em cada sala. Quando ela voltou para a França, ele a seguiu até Paris e inclusive até sua casa em Lyon. Numa noite de luar, já depois da meia-noite, assim corre a história em Jerusalém, o pai dela saiu da casa e disparou um tiro com uma espingarda de cano duplo, atingindo a perna de Fima. Durante os três dias que passou num hospital franciscano procurou se informar do que era preciso fazer para converter-se ao cristianismo. O pai de Nicole, ao visitá-lo no hospital para se desculpar, ofereceu-se para ajudá-lo a se converter. Entrementes, Nicole ficou farta também do pai, e fugiu de ambos, primeiro para sua irmã em Madri, e depois para sua cunhada em Málaga. Sujo, desesperado e maltrapilho, ele a perseguiu em trens e ônibus poeirentos até que seu dinheiro acabou em Gibraltar e, com a ajuda da Cruz Vermelha, foi devolvido quase à força para Israel a bordo de um cargueiro panamenho.” (págs. 20-21)