Refiro-me à morte das pessoas verbais, que isto esteja desde já claro, e uso este título porque foi assim que um amigo abordou o tema num encontro ao fim da tarde numa varanda aqui em Santo Amaro de Oeiras. "As pessoas estão a morrer", começou ele. E eu disse: “Pois, e há muito tempo…”. “As pessoas verbais.” “Ah…”, disse eu, e rimos. Ele se referia não à morte não do eu, que este não morre nunca, mas à do tu, do nós, do vós (este já bastante morto, se é possível uma pessoa estar bastante morta), e às vezes até mesmo do eles. Decido então começar a discussão discordando. Gosto muito de discordar deste amigo, porque uma discordância, com ele, conduz a uma bela conversa, uma acalorada discussão civilizada durante a qual eu posso observar o seu raciocínio em ação. Trata-se de uma pessoa, este amigo-irmão, bastante inteligente, suficientemente culta e implacavelmente lógica.
Ele se referia à morte das pessoas verbais no Brasil, e não em Portugal. “Em Portugal”, diz-me ele, “ainda se usam, e quotidianamente, o tu, o nós, o vós e o eles, mas no Brasil estão todas mortas, e com isso perdeu-se a riqueza da língua, e até mesmo a sua praticidade.” E continuou: “No Brasil, não se diz tu; diz-se você, e a conjugação do você equivale à conjugação da terceira pessoa, que é o ele. Você vai / ele vai. A conjugação vai é a da terceira pessoa”. “Mas o nós não morreu”, eu disse, tentando salvar a pátria. E ele me respondeu citando um exemplo. Uma amiga havia dito a ele: “Não, meu caro. O nós não morreu. A gente diz o nós. Veja: nós vamos. No Brasil, a gente usa o nós”. E ele então riu, apontando a ela, à amiga, o descuido: “Vê o que disseste: disseste: a gente usa. Não disseste: nós usamos; disseste a gente usa, ou seja, utilizaste novamente a conjugação da terceira pessoa: o ele. Ele usa; a gente usa”.
Tive de concordar, rindo e assistindo à vitoriosa risada dele a acompanhar a minha. “No Brasil”, prosseguiu o meu amigo, “só há o eu, o ele e o eles, e mesmo o eles já está a ser substituído por: o pessoal, ou a galera, e caímos novamente na conjugação da terceira pessoa: em vez de dizermos eles vão, dizemos; a galera vai, o pessoal vai.” Eu argumentei alegando que não se trata de perda de riqueza, mas de transformação da língua. E lembrei-me do inglês, que não é menos rico por haver apenas o I go, o you go (da segunda pessoa do singular), o you go (da segunda pessoa do plural) e o they go. É tudo go, com exceção do he-she, que é goes.
“Trata-se de outra língua. No caso do português, temos seis pessoas, tínhamos seis pessoas, e agora temos três. Isso é empobrecimento. Quanto usas todas as pessoas, muitas vezes nem precisas usar a cabeça da pessoa. Não precisas de perguntar: tu vais sair? Perguntas apenas: vais sair? Se usas a terceira pessoa, então a frase fica: vai sair? Quem? Ele ou você?”
Eu já nem estava disposto a continuar tentando argumentar, porque eu me via bastante enfraquecido dentro da discussão. Apenas disse que o português falado no Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, tinha se encaminhado para a chamada forma mista no tratamento. Usamos as formas da segunda pessoa do singular quando aplicamos os pronomes pessoais oblíquos — átonos ou tônicos. Então dizemos: eu gosto de você, quero te chamar pra dançar. Ou: venha dançar, quero dançar contigo. Está errado? De acordo com todas as gramáticas está errado, mas estará errado quando toda a gente estiver falando assim? Quando todas as literaturas que quiserem expressar este modo de falar simplesmente o reproduzirem em suas páginas? Estará errado quando os personagens, no cinema, assim falarem — personagens não necessariamente incultos ou excluídos das esferas pedagógicas? Ou estará também, dentro de um outro registro, certo, bem como continua certo o modo tradicional? Isto não é propriamente um conjunto de argumentos, mas pode ser visto como uma tentativa de coexistência das duas formas.
Acrescente-se a isso tudo o registro fonético de Portugal, bastante diferente do registro brasileiro. Os portugueses dizem: “Amo-te”, e enfatizam o “A”, que se torna a sílaba tônica da frase. Os brasileiros dizem: “Te amo” (e os baianos dizem: “Eu lhe amo”, bem como “eu lhe olho”, “eu lhe beijo, “eu lhe como”…), e sílaba tônica, aqui, está no pronome, que, por ser tônico, acaba iniciando a frase. O registro fonético brasileiro também torna mais dificultoso, ou pomposo, falar, como no exemplo que dei mais acima: “Eu gosto de você, quero chamá-lo para dançar”. Quero te chamar impõe-se, mesmo que configure aqui um erro de duplo uso pronominal.
Trata-se de uma só língua? Sim, mas somente na esfera das gramáticas, na esfera da forma escrita. A chamada língua falada, cada vez mais, conquista o seu status de segunda língua — o seu status de língua digna, também, de registro escrito. A língua tal como a falamos é a primeira língua, uma vez que a forma escrita não passa de uma forma, a posteriori, de registro; uma forma de organizar o caos da expressão oral. E a literatura vem, com cada vez mais intensidade, e menos pudor, registrando a língua falada, colocando-a na boca de personagens e mesmo na boca de narradores oniscientes clássicos.
Diz-se que não há nada pior que um personagem que tenha um caráter e um comportamento inverossímeis. Essa inverossimilhança pode ser fatal se for uma inverossimilhança também na sua forma de se expressar. Não sei como terminar isto, porque esta conversa não tem fim, e termino num rasgo de otimismo lingüístico (por quanto tempo ainda usarei o trema?), dizendo que tu morreste, vá lá, mas você não morreu; que nós morremos, mas a gente está vivo; que vós morrestes, mas vocês me parecem saudáveis; que eles podem até ter morrido, mas todo o mundo sabe que o pessoal vai bem — com pouco dinheiro, mas bem. E a língua? E o povo? “O povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso…