27 de fevereiro de 2009

Fragmento de “Vocabulário mínimo para entender-se”

“Como não entender que a única situação do escritor autêntico é o centro do átomo literário no qual partículas conhecidas e outras a conhecer se resolvem na perfeita intencionalidade da obra: a de levar ao extremo tudo o que a suscita, tudo o que a faz e tudo o que a comunica.”

Julio, Cortázar, A volta ao dia em 80 mundos, trad. Ari Roitman e Paulina Wacht, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008, p. 151.

26 de fevereiro de 2009

"A divisão do mundo"

Já se dividiram as pessoas deste planeta de muitas maneiras, algumas necessárias e produtivas, com consequências benéficas para todos, como, por exemplo, entre pessoas deficientes e não-deficientes e entre pessoas necessitadas de assistência e aquelas que não necessitam, antes prestam a referida assistência — embora haja uma terceira categoria, que é a daquelas que não necessitam de assistência e nem prestam assistência —, e algumas não tão necessárias mas mesmo assim praticadas, como a divisão entre pretos e brancos e amarelos e índios. Há ainda aquelas divisões que são pérfidas, vis, maléficas e escrotas, que são as divisões entre puros e impuros, judeus e não-judeus, hereges e não-hereges, escolhidos e renegados, escravos e senhores, e esta lista, infelizmente, é extensa, embora já tenha sido mais.

Temos ainda, no planeta, os seres humanos divididos entre os carecas e os não-carecas, os homossexuais, os heterossexuais, e os bissexuais, e também os malucos e os não-malucos, as mulheres que gozam rápido e muitas vezes e as que demoram a gozar e gozam só uma vez, e ainda os homens que gozam rápido e os que demoram a gozar, e ainda os tântricos, que gozam muitas vezes, sem falar nos que não gozam nunca, embora se divirtam à beça. Há também os que lêem e os que não lêem, e entre estes os que não lêem porque não sabem e os que não lêem porque não querem; os que trabalham e os que não trabalham, e entre estes os que não trabalham porque não têm trabalho e os que não trabalham porque vivem de juros; e ainda os que fumam e os que não fumam; os que bebem e os que não bebem; os que comem carne vermelha e os que não comem, e antes destes, claro, os que comem e os que não comem, e entre os que não comem estão aqueles que não comem porque acham que comer engorda, os que não comem porque não têm mesmo o que comer e os que comem e vomitam, que é para poderem comer e não engordar.

Creio que esta lista, que beira o caótico, corre o perigo de não ter fim, razão pela qual eu proponho ainda, somente para que fique demonstrado o seu caráter infinito, variado e aleatório, a divisão entre aqueles que fazem ginástica de manhãzinha e aqueles que fazem ginástica à noitinha, entendendo aqui por ginástica qualquer tipo de exercício físico que alcance um ritmo cardiovascular satisfatório e que se prolongue por no mínimo quarenta minutos. Desnecessário dizer que esta divisão inclui, em ambas as categorias manhãzinha e noitinha, os pretos, os brancos e os amarelos (mas não os índios, que os índios têm mais o que fazer), e inclui também os que têm algum dinheiro e os que comem diariamente (vomitando ou não vomitando depois), e entre os que comem inclui tanto os que comem carne vermelha tanto os que não comem, os que bebem e os que não bebem, os que fumam e os que não fumam, podendo incluir os que lêem, mas também os que não lêem, seja porque não sabem, seja porque não querem, embora os que não saibam raramente se encaixarão nas categorias dos que malham, seja de manhãzinha, seja à noitinha, porque malhar significa acreditar que malhar faz bem à saúde, ou seja, significa possuir um nível razoável de informação acerca do assunto, e se, muitas vezes, nem mesmo os que sabem ler estão informados acerca dos benefícios de uma vida esportivamente ativa, imagine os que não sabem ler, os quais estão, infelizmente, em nossa sociedade, excluídos do show. A categoria dos que malham, seja de manhãzinha, seja à noitinha, inclui ainda os homossexuais, os heterossexuais e os bissexuais, os que gozam rápido e os que demoram a gozar e os que não gozam never, embora se divirtam pacas, e ainda as que gozam rápido e muitas vezes e as que demoram a gozar e gozam uma só vez, e ainda os gordos, os ok e os magrelas. Inclui também os que prestam assistência e os que não prestam, mas quase sempre exclui os que necessitam de assistência, considerando que a atividade malhatória, num contexto de carência de recursos de sobrevivência (e de calorias), pode ser, e é, considerada um luxo e um perigo para a saúde (ou para a falta de saúde). Incluirá ainda os não-malucos, mas também os malucos, isto somente se levarmos em conta a relatividade do conceito de maluquice, uma vez que cresce, no mundo, a olhos vistos, entre a categoria dos malucos, a categoria dos chamados malucos por malhação. Se permanecermos na conceituação clássica da loucura e da não-loucura (ver Foucault, A história da loucura), os malucos somente poderão malhar de manhã ou no fim da tarde se a instituição psiquiátrica a que pertencem assim determinar, ou ainda se estiverem na condição de malucos não-detectados, condição que os permitirá frequentar academias de ginástica disfarçados de não-malucos (e as estatísticas nos revelam que não são poucos os casos).


Este início era para ser menos extenso, mas fazer o quê? Se a imaginação dos homens para se dividirem e subdividirem entre si não tem limites? Desenvolverei, na próxima oportunidade os traços de caráter mais marcantes dos seres humanos (uso o termo “seres humanos” bastante à vontade, uma vez que já procedi, nas linhas de cima, a todas as possíveis e delirantes especificações), dos seres humanos, eu dizia, que se incluem tanto na categoria dos que malham de manhãzinha, quanto na dos que malham à noitinha. Veremos o que pensam, o que não pensam, como se comportam em relação a si mesmos e aos outros, como vivem a vida, como comem, como bebem e como terminam, ao fim da noite, o seu dia. Chega de pensar; agora vou malhar.

23 de fevereiro de 2009

Fragmento de “Sobre a maneira de viajar de Atenas a Cabo Súnio”

"A memória joga um jogo obscuro com o seu próprio conteúdo, do qual qualquer tratado de psicologia fornece provas exemplares. (…) … a memória se assemelha à aranha esquizofrénica dos laboratórios onde são testados alucinógenos, que tece teias aberrantes com furos, cerzidos e remendos. A memória nos tece e nos captura ao mesmo tempo segundo um esquema do qual não participamos lucidamente; não se deveria falar de nossa memória, porque se alguma coisa ela tem é que não é nossa; trabalha por conta própria, nos ajuda enganando-nos, ou quem sabe nos engana para ajudar-nos (…)."

Julio Cortázar, A volta ao dia em 80 mundos, trad. Ari Roitman e Paulina Wacht, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008, p. 97-100.

21 de fevereiro de 2009

De certezas, acasos e comandos...

"E o futuro é uma astronave
que tentamos pilotar.
Não tem tempo,
nem piedade,
nem tem hora de chegar.
Sem pedir licença
muda nossa vida
e depois convida
a rir ou chorar."

Aquarela (Toquinho, Vinicius de Moraes, G. Morra, M. Fabrizio)

20 de fevereiro de 2009

Dicionário Filosófico do Voltaire - uma esplêndida história portuguesa

"A morte das pessoas"

Refiro-me à morte das pessoas verbais, que isto esteja desde já claro, e uso este título porque foi assim que um amigo abordou o tema num encontro ao fim da tarde numa varanda aqui em Santo Amaro de Oeiras. "As pessoas estão a morrer", começou ele. E eu disse: “Pois, e há muito tempo…”. “As pessoas verbais.” “Ah…”, disse eu, e rimos. Ele se referia não à morte não do eu, que este não morre nunca, mas à do tu, do nós, do vós (este já bastante morto, se é possível uma pessoa estar bastante morta), e às vezes até mesmo do eles. Decido então começar a discussão discordando. Gosto muito de discordar deste amigo, porque uma discordância, com ele, conduz a uma bela conversa, uma acalorada discussão civilizada durante a qual eu posso observar o seu raciocínio em ação. Trata-se de uma pessoa, este amigo-irmão, bastante inteligente, suficientemente culta e implacavelmente lógica.

Ele se referia à morte das pessoas verbais no Brasil, e não em Portugal. “Em Portugal”, diz-me ele, “ainda se usam, e quotidianamente, o tu, o nós, o vós e o eles, mas no Brasil estão todas mortas, e com isso perdeu-se a riqueza da língua, e até mesmo a sua praticidade.” E continuou: “No Brasil, não se diz tu; diz-se você, e a conjugação do você equivale à conjugação da terceira pessoa, que é o ele. Você vai / ele vai. A conjugação vai é a da terceira pessoa”. “Mas o nós não morreu”, eu disse, tentando salvar a pátria. E ele me respondeu citando um exemplo. Uma amiga havia dito a ele: “Não, meu caro. O nós não morreu. A gente diz o nós. Veja: nós vamos. No Brasil, a gente usa o nós”. E ele então riu, apontando a ela, à amiga, o descuido: “Vê o que disseste: disseste: a gente usa. Não disseste: nós usamos; disseste a gente usa, ou seja, utilizaste novamente a conjugação da terceira pessoa: o ele. Ele usa; a gente usa”.

Tive de concordar, rindo e assistindo à vitoriosa risada dele a acompanhar a minha. “No Brasil”, prosseguiu o meu amigo, “só há o eu, o ele e o eles, e mesmo o eles já está a ser substituído por: o pessoal, ou a galera, e caímos novamente na conjugação da terceira pessoa: em vez de dizermos eles vão, dizemos; a galera vai, o pessoal vai.” Eu argumentei alegando que não se trata de perda de riqueza, mas de transformação da língua. E lembrei-me do inglês, que não é menos rico por haver apenas o I go, o you go (da segunda pessoa do singular), o you go (da segunda pessoa do plural) e o they go. É tudo go, com exceção do he-she, que é goes.

“Trata-se de outra língua. No caso do português, temos seis pessoas, tínhamos seis pessoas, e agora temos três. Isso é empobrecimento. Quanto usas todas as pessoas, muitas vezes nem precisas usar a cabeça da pessoa. Não precisas de perguntar: tu vais sair? Perguntas apenas: vais sair? Se usas a terceira pessoa, então a frase fica: vai sair? Quem? Ele ou você?”

Eu já nem estava disposto a continuar tentando argumentar, porque eu me via bastante enfraquecido dentro da discussão. Apenas disse que o português falado no Brasil, e especialmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, tinha se encaminhado para a chamada forma mista no tratamento. Usamos as formas da segunda pessoa do singular quando aplicamos os pronomes pessoais oblíquos — átonos ou tônicos. Então dizemos: eu gosto de você, quero te chamar pra dançar. Ou: venha dançar, quero dançar contigo. Está errado? De acordo com todas as gramáticas está errado, mas estará errado quando toda a gente estiver falando assim? Quando todas as literaturas que quiserem expressar este modo de falar simplesmente o reproduzirem em suas páginas? Estará errado quando os personagens, no cinema, assim falarem — personagens não necessariamente incultos ou excluídos das esferas pedagógicas? Ou estará também, dentro de um outro registro, certo, bem como continua certo o modo tradicional? Isto não é propriamente um conjunto de argumentos, mas pode ser visto como uma tentativa de coexistência das duas formas.

Acrescente-se a isso tudo o registro fonético de Portugal, bastante diferente do registro brasileiro. Os portugueses dizem: “Amo-te”, e enfatizam o “A”, que se torna a sílaba tônica da frase. Os brasileiros dizem: “Te amo” (e os baianos dizem: “Eu lhe amo”, bem como “eu lhe olho”, “eu lhe beijo, “eu lhe como”…), e sílaba tônica, aqui, está no pronome, que, por ser tônico, acaba iniciando a frase. O registro fonético brasileiro também torna mais dificultoso, ou pomposo, falar, como no exemplo que dei mais acima: “Eu gosto de você, quero chamá-lo para dançar”. Quero te chamar impõe-se, mesmo que configure aqui um erro de duplo uso pronominal.

Trata-se de uma só língua? Sim, mas somente na esfera das gramáticas, na esfera da forma escrita. A chamada língua falada, cada vez mais, conquista o seu status de segunda língua — o seu status de língua digna, também, de registro escrito. A língua tal como a falamos é a primeira língua, uma vez que a forma escrita não passa de uma forma, a posteriori, de registro; uma forma de organizar o caos da expressão oral. E a literatura vem, com cada vez mais intensidade, e menos pudor, registrando a língua falada, colocando-a na boca de personagens e mesmo na boca de narradores oniscientes clássicos.

Diz-se que não há nada pior que um personagem que tenha um caráter e um comportamento inverossímeis. Essa inverossimilhança pode ser fatal se for uma inverossimilhança também na sua forma de se expressar. Não sei como terminar isto, porque esta conversa não tem fim, e termino num rasgo de otimismo lingüístico (por quanto tempo ainda usarei o trema?), dizendo que tu morreste, vá lá, mas você não morreu; que nós morremos, mas a gente está vivo; que vós morrestes, mas vocês me parecem saudáveis; que eles podem até ter morrido, mas todo o mundo sabe que o pessoal vai bem — com pouco dinheiro, mas bem. E a língua? E o povo? “O povo é o inventalínguas na malícia da maestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso…

17 de fevereiro de 2009

"Viagens"

“Quando os famas saem em viagem, seus costumes ao pernoitarem numa cidade são os seguintes: um fama vai ao hotel e indaga cautelosamente os preços, a qualidade dos lençóis e a cor dos tapetes. O segundo se dirige à delegacia e lavra uma ata declarando os móveis e imóveis dos três, assim como o inventário do conteúdo de suas malas. O terceiro fama vai ao hospital e copia as listas dos médicos de plantão e suas especializações.

Terminadas estas providências, os viajantes se reúnem na praça principal da cidade, comunicam-se suas observações e entram no café para beber um aperitivo. Mas antes eles se seguram pelas mãos e dançam em roda. Esta dança recebe o nome de Alegria dos famas.

Quando os cronópios saem em viagem, encontramos os hotéis cheios, os trens já partiram, chove a cântaros e os táxis não querem levá-los ou lhes cobram preços altíssimos. Os cronópios não desanimam porque acreditam piamente que estas coisas acontecem a todo o mundo, e na hora de dormir dizem uns aos outros: “Que bela cidade, que belíssima cidade”. E sonham a noite toda que na cidade há grandes festas e que eles foram convidados. E no dia seguinte levantam contentíssimos, e é assim que os cronópios viajam.

As esperanças, sedentárias, deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens e são como as estátuas que é preciso ir ver porque elas não vêm até nós.”

Julio Cortázar, "Viagens", in Histórias de Cronópios e de Famas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1972.