1 de novembro de 2013

“Crescer dói”

13. “Crescer dói”, Revista Lilica and Tigor, São Paulo, nov. 2013 (data aproximada).

Crescer dói. Isso eu ouvi enquanto crescia, e enquanto crescia sentia a dor de crescer. Depois que cresci, parei de sentir a dor, e dessa dor de crescer me esqueci. E lá se vão alguns anos, os anos em que somos adultos e vivemos a vida dos adultos até o momento em que talvez a dor volte, e a dor então será outra, a de ficar velhinho, se é que tal dor existe, e tudo indica que sim. A dor de crescer, no entanto, essa dor das crianças crescendo, essa eu sei que existe, e agora sei não porque a sinto, mas porque a estou vendo quando olho para a minha menina mais velha (ou a minha piolha, como se diz com carinho em Portugal); a minha menina que agora tem onze anos e que está experimentando o que se pode chamar uma “transformação hormonal”, na falta de nome melhor — ou simplesmente um “virar mocinha”, porque, afinal, há sempre um nome melhor...

Os hormônios não avisam quando decidem começar a circular de forma diferente no corpo de uma menina que entra (ao início súbita e depois gradualmente) na adolescência — ou pré-adolescência, chamemos assim, vamos com calma. Conversei com amigas minhas que me confessaram ter vivido o mesmo, e com as mães de amigas minhas, e quase todas, quando provocaram a memória, se lembraram de desconfortos e febres, e mesmo de sintomas específicos, como os olhos vermelhos e a pele muito sensível. Como um homem que já foi menino e que também está aqui a espremer a memória, consigo lembrar-me de cenas parecidas, acontecidas com o meu corpo, especialmente espinhas. Mas, também como um homem que já foi menino, tentar imaginar uma menina passando por isso a que chamam “a primeira menstruação” é, mesmo na teoria (e poderia ser de outra forma?), difícil pra chuchu.

E talvez por isso eu não entendia bem quando sentia que algumas colegas minhas de escola estavam diferentes; de repentes mais crescidinhas; de repente achando as nossas brincadeiras de sempre agora “coisas de criança”. E eu comigo: “Coisas de criança?! Como assim? Nós há trinta dias estávamos brincando disso, e hoje a Fulaninha e a Beltraninha e até a Joaninha dizem, rindo da minha cara e me gozando, que a brincadeira de um mês atrás hoje é coisa de criança?”. Mal sabia eu que muitas “transformações” tinham ocorrido com elas naqueles últimos trinta dias...

E comigo? E conosco, meninos? Vamos lá, amigos, digam coisas! As coisas demorariam um bocadinho mais a acontecer... Ainda ficamos eu e o Fulaninho e o Beltraninho e o Mauricinho a correr uns atrás dos outros, a nos esconder uns dos outros, a mostrar a língua uns pros outros, a nos dar tabefes uns nos outros, a fazer caretas uns pros outros, a mandar tiros de mentirinha uns nos outros e a atirar água nas caras uns dos outros por uns bons meses ou um par de anos, até o momento em que finalmente começamos a demorar mais a pegar no sono e desatamos a sentir coisas diferentes no corpo e no coração; e os banhos ficam mais demorados; e os sonhos, mais apimentados; e insistimos em nos preocupar mais do que antes com a opinião dos outros (outras). A partir daí, crescer começa a doer, e é uma dor estranha.

E boa.


1 de agosto de 2013

“As errâncias da infância”

12. “As errâncias da infância”, Revista Lilica and Tigor, São Paulo, ago. 2013 (data aproximada).

Escrevo este texto de Lisboa, e se sair à rua para tomar uma “bica”, que é um café curto, uma espécie de shot de café, tenho de pôr um chapéu, senão as ideias, quando eu voltar, estarão secas. O sol aqui não é para terráqueos, porque o ar é bem mais seco e não há, rigorosamente, chuvas nesta época do ano. Para as minhas duas piolhas, Alice e Clara (e para os piolhos e as piolhas de todo este Portugal), começam as chamadas “férias de agosto”. Vim cá para estar com elas, rever amigos, tomar uns copos no Bairro Alto e para pouco mais – em suma, não fazer quase nada, e escrever, e olhar para as coisas e ler o que der na telha. Não é muito fácil uma pessoa estar assim diante deste mar de possibilidades de prazer. Se houver no vivente algum resquício de um perfil sofredor, ter de escolher entre tantas delícias pode tornar-se uma fonte de angústia.

Não foi sem tempo que me caiu às mãos a crônica “Breve partilha da minha sorte infinita”, de um escritor português chamado José Luís Peixoto. O gajo escreve sobre um insight que teve justamente durante umas férias típicas, enquanto lia um livro, enquanto assistia aos filhos a pular como doidos na piscina ou a jogar bola, enquanto vivia um momento em que tudo soa bem e ele se dá conta, e faço aqui uma paráfrase, da noção precisa do tamanho da sua sorte.

O centro nervoso do seu texto é o seu temor, que segundo ele vem desde jovem, de passar pelas horas mais felizes de sua vida sem as reconhecer. O que o José Luís quer parece simples, mas não é: está a falar da lucidez de se estar sempre alerta para a felicidade, o que significa detectar os momentos felizes na hora exata em que acontecem.

Isto pode começar como uma brincadeira; depois passar a ser um exercício com promessa de bons resultados e terminar sendo uma forma de vida, ou, vá lá, uma espécie de sabedoria de caráter bastante prosaico, se é que não são assim as melhores ou as mais profundas sabedorias: aquelas que nos ensinam sem que percebamos que estamos a aprender coisas; aquelas que nos envolvem no dia-a-dia e se encontram tão dentro de nós que nem damos mais por elas.

E assim fiz, e assim venho fazendo quando me vejo aqui em Lisboa, a olhar para as minhas duas piolhas a correr e a andar de bicicleta e a pular na piscina feito doidas no condomínio de casas onde moram, com árvores e espaços que não acabam mais. Vejo-as a viver uma infância perfeita, rodeadas de amigos, sem preocupações quanto à segurança, a dormir umas nas casas das outras, a ficar do lado de fora, fazendo piqueniques na grama, até o momento em que o sol, por estas bandas, se decide finalmente a ir embora e acordar lá longe os chineses, o que acontece pelas nove da noite, ou ainda mais tarde.

E depois desabam nas suas camas e nem se mexem. Não sei bem o que elas sabem acerca disso tudo; não sei se percebem a infância que estão a viver. O que sabem, e disso têm a certeza, é que no dia seguinte vão acordar e bater às portas dos amigos e recomeçar este eterno retorno de água e sol e tombos e bicicletas e choros e lanches e corridas e “noitadas” na grama. Se calhar, saberão, sim, da infância que estão a viver, mas talvez mais tarde, quando já não a estarão vivendo. E então poderão viver essa infância tal como eu a vivo hoje, enquanto as vejo: de forma indireta, mas, agora, lúcida.


1 de março de 2013

“A dona Saudade, a srta. Rima e o dr. Iscáipe”

11. “A dona Saudade, a srta. Rima e o dr. Iscáipe”, Revista Lilica and Tigor, São Paulo, mar. 2013 (data aproximada).

Sim, a Dona Saudades não brinca em serviço, e vez por outra aparece de surpresa, e geralmente de modo súbito, pungente e esquisito. Posso estar a tomar banho, depois de uma chuvada de tempestade nas ruas do Rio, e quando dou por mim já sinto, em meio à água da ducha gelada, um certo gosto de água salgada, e já estou eu a pensar na Alice e na Clarinha lá longe, em Lisboa, no frio, numa quase geada, e encerro de uma vez a chuveirada. Agora a chorar em pleno banho, pá?

Posso estar a me arrastar com um carro no meio dum engarrafamento, a ouvir Caetano, Gil, ou apenas um jazz em baixo andamento, e de repente tudo fica embaçado e cheio de gotas, e eu penso, num lamento: “Mas está lá fora um sol de rachar...”. E quando dou por mim são os óculos de sol embaçados e engotejados, e eu a fungar... Agora a chorar no trânsito, pá?

Posso estar a beber uns copos pelo Rio de Janeiro, posso estar a nadar, lépido e fagueiro, a tomar um sorvete, a chupar uma manga ou a subir num coqueiro, a comer sushi ou feijão tropeiro, que olho para o lado e lá vejo a dona Saudade, olhando pra mim (ela está ainda mais gorda?...), um arzinho zombeteiro... e choro, simplesmente choro, um choro discreto, é claro, mas longo e verdadeiro. Agora a chorar por tudo, pá?

Mas deixemos as salgadas águas da srta. Rima de lado, porque a realidade é desmedida, desafinada e seu ritmo, amalucado. E conto aqui uma façanha da mãe, em sociedade com o dr. Iscáipe. Dia 19 de março é Dia dos Pais em Portugal, e nesse dia 19 último houve então a festa dos pais na escola da Clarinha. Estão a perceber toda a cena, pois não?... “A nossa Clarinha está muito, muito triste. Chorou imenso ontem à noite porque se deu conta de que tu não estarás presente na festa de depois de amanhã. Todos os demais pais lá estarão, a realizar uma atividade em conjunto com os miúdos, menos tu... Pena, né? A nossa pequena piolha está desconsolada...” Nem consegui continuar a conversa. Dormi em sono leve e fiquei todo o dia 18 a flutuar na tristeza, sem pensar numa solução de peso. E na noite anterior ao evento lá vem a mãe ao telefone com uma feliz ideia cochichada para mim: “Amanhã acordas às seis da manhã no horário aí do Rio, põe-te na frente do Skype, e eu, com o iPad e lá na salinha de aulas da escola, que tem wi-fi, exatamente às nove no horário daqui, faço-te virtualmente presente na festa! Só não poderás comer os pastéis de nata...”. Nem acreditei, e à noite, ao dr. Iscáipe brindei, e com Nossa Senhora do Uái-Fái sonhei...

Dormi pontualmente e acordei no ponto, ou mais para o bem passado: asseado, cheiroso, barbeado e dente escovado. E me plantei à frente da tela do computador, microfone testado, áudio em bom som, vídeo ativado. E esperei pela chamada lisboeta. E qual não foi o contentamento da minha portuguesinha, olhos de repente arregalados, mão na boca a conter um berrinho... Olha a saltar pela sala uma genuína alfacinha! “O papá está no Iscáipe! Prof”ssora! Olha o meu pai no écran do Aipédi da mãe! O papá veio à minha festa! Isto é muito giro, mamã!” E amontoaram-se as coleguinhas de seis anos para ver o pai da Clarinha, lá do Brasil, e bem aqui, no Aipédi da mãe. “Mas, um momento... Olha o écran. Ele está com uma carinha...”

Mas agora choras pelo wi-fi, pá?

1 de janeiro de 2013

“Dona Saudade”

10. “Dona Saudade” (“A Dona Saudade manda lembranças”), Revista Lilica and Tigor, São Paulo, jan. 2013 (data aproximada).

Quando terminar de escrever isto, terei escrito sobre o futuro, e, escrevendo sobre este meu futuro próximo, estarei já inundado de saudade – uma saudade que bravamente antecipo, sentindo-a como se já a sentisse há muito tempo. E creio que morar em Portugal por oito anos tem a ver com isto, fazendo de mim o que já sou pela metade, um português, ao menos nas questões principais da existência: a saudade, a forma de se defender da saudade e a alegria à mesa diante de peixe e vinho barato. Não falarei aqui da alegria à mesa diante de peixe e vinho barato, mas da saudade e da forma de se defender da saudade.

E é por isso que já começo a sentir saudade das minhas duas piolhas – Alice e Clara – antes mesmo de estar longe delas; antes mesmo de pegar o avião, sair de Portugal e voltar a morar no Brasil depois de oito anos em Lisboa. Como bom brasileiro que sou, e ótimo carioca, transformo-me em português e sofro duas vezes mais e alguns meses antes – sofro antes do instante em que começarei de fato a sofrer. De saudade. E assim, já tendo sofrido tanto, e convencido de que não será possível sofrer mais, enfrentarei a saudade real preparado e fortalecido pelo duplo sofrimento anterior, como se o cara – digo, o gajo – já conhecesse de tempos idos essa senhora de ares melancólicos e olhos sempre um pouco úmidos e que atende pelo nome de Saudade.

O português já nasce sentindo saudade, ou melhor, a sentir saudade, e não sabe bem de quê, e atravessa o mar da vida à procura da razão de sua saudade. Se morre de morte morrida (e não “de susto, de bala ou vício”), é porque, bem investigada a causa mortis, morreu, pois, de saudade.

– Como assim, papá? O que queres dizer com isto? Disseste que vais passar mais tempo no Brasil do que em Portugal. É isso? – pergunta a mais velha.

– Pois é, minha linda. Portugal está num momento difícil, e o papai não arranja trabalho aqui, e por isso vou arranjar uns trabalhos lá, e…

– Então vais trabalhar no Brasil?

– Sim, de certo modo, digamos… É como se… bom, é como disse a vocês duas…

E a mais novinha ali, parada, com um pastel de nata a ocupar toda a boca.

… – como disse a vocês duas: vou passar mais tempo no Brasil do que em Portugal. Vou trabalhar no Brasil.

– Isso quer dizer que… E nós?...

E a mais miudinha, conseguindo finalmente engolir o pastel de nata, diz: – … quer dizer, mana, que o papá vai morar no Brasil, mas só para trabalhar, porque à noite, toda noite, ele vem morar em Portugal pra nos dar um beijinho na testa, contar uma história da vaca amarela que deu um pum e acabou-se a história, e dormir ao pé de nós, não é, papá?

Não soube responder. Vou perguntar àquela senhora, a dona Saudade.

– Quem deu o pum – corrigiu a mais velha, impaciente, salvando a pátria – foi a vaca Vitória.

E assim acabou-se a história.