10. “Dona Saudade” (“A Dona Saudade manda lembranças”), Revista Lilica and Tigor, São Paulo, jan. 2013 (data aproximada).
Quando terminar de escrever isto, terei escrito sobre o futuro, e,
escrevendo sobre este meu futuro próximo, estarei já inundado de saudade – uma
saudade que bravamente antecipo, sentindo-a como se já a sentisse há muito
tempo. E creio que morar em Portugal por oito anos tem a ver com isto, fazendo
de mim o que já sou pela metade, um português, ao menos nas questões principais
da existência: a saudade, a forma de se defender da saudade e a alegria à mesa
diante de peixe e vinho barato. Não falarei aqui da alegria à mesa diante de
peixe e vinho barato, mas da saudade e da forma de se defender da saudade.
E é por isso que já começo a sentir saudade das minhas duas piolhas
– Alice e Clara – antes mesmo de estar longe delas; antes mesmo de pegar o
avião, sair de Portugal e voltar a morar no Brasil depois de oito anos em
Lisboa. Como bom brasileiro que sou, e ótimo carioca, transformo-me em português
e sofro duas vezes mais e alguns meses antes – sofro antes do instante em que
começarei de fato a sofrer. De saudade. E assim, já tendo sofrido tanto, e
convencido de que não será possível sofrer mais, enfrentarei a saudade real preparado
e fortalecido pelo duplo sofrimento anterior, como se o cara – digo, o gajo – já
conhecesse de tempos idos essa senhora de ares melancólicos e olhos sempre um
pouco úmidos e que atende pelo nome de Saudade.
O português já nasce sentindo saudade, ou melhor, a sentir saudade, e não sabe bem de quê,
e atravessa o mar da vida à procura da razão de sua saudade. Se morre de morte
morrida (e não “de susto, de bala ou vício”), é porque, bem investigada a causa mortis, morreu, pois, de saudade.
– Como assim, papá? O que queres dizer com isto? Disseste que vais
passar mais tempo no Brasil do que em Portugal. É isso? – pergunta a mais
velha.
– Pois é, minha linda. Portugal está num momento difícil, e o
papai não arranja trabalho aqui, e por isso vou arranjar uns trabalhos lá, e…
– Então vais trabalhar no Brasil?
– Sim, de certo modo, digamos… É como se… bom, é como disse a
vocês duas…
E a mais novinha ali, parada, com um pastel de nata a ocupar toda
a boca.
… – como disse a vocês duas: vou passar mais tempo no Brasil do que
em Portugal. Vou trabalhar no Brasil.
– Isso quer dizer que… E nós?...
E a mais miudinha, conseguindo finalmente engolir o pastel de
nata, diz: – … quer dizer, mana, que o papá vai morar no Brasil, mas só para
trabalhar, porque à noite, toda noite, ele vem morar em Portugal pra nos dar um
beijinho na testa, contar uma história da vaca amarela que deu um pum e
acabou-se a história, e dormir ao pé de nós, não é, papá?
Não soube responder. Vou perguntar àquela senhora, a dona Saudade.
– Quem deu o pum – corrigiu a mais velha, impaciente, salvando a
pátria – foi a vaca Vitória.
E assim acabou-se a história.
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