“Um Ubaldo azul e
errante”, JL — Jornal de Letras, Artes e Ideias, v. 1020, Lisboa,
Portugal, 4 a 17 de nov. 2009, p. 22-23.
Resenha sobre o livro O albatroz azul, de João Ubaldo
Ribeiro, ed. Edições Nelson de Matos.
Se o novelo da trama que se desvencilha em O albatroz azul é curto, com poucos personagens decisivos, pouca acção, quase nenhuma referência relevante a acontecimentos históricos e apenas dois registos temporais, que não se misturam — uma economia romanesca incomum na prosa de João Ubaldo Ribeiro —, o seu narrador, no entanto, continua irresistivelmente atrevido, altivo e potente no manejo manhoso de todos os pontos de vista que uma história nos pode dar.
E se a história que começa a descortinar-se diante do leitor é a do nascimento de um menino que inventou de se virar para cima na hora decisiva e assim criou dificuldades para sair, produzindo angústias no pai, suores na parteira, quase morrendo ele mesmo e ainda matando a mãe, a história que arranca a partir daí, terminado o parto, que resulta afinal bem-sucedido, obra dos santos, não é a do miúdo que nasceu com o rabo voltado para a lua cheia, mas a do seu avô — não a narrativa do início de uma trajectória, mas o atento acompanhamento do que seria o final de uma vida longa.
E é com atenção que o narrador começa a acompanhar Tertuliano Jaburu, o seu protagonista, às voltas com o nascimento do seu primeiro neto homem numa casa que o miúdo terá de dividir com as suas nove irmãs, pois o pai, Saturnino Bororó, é sujeito que pertence ao grupo dos “machos modelares sob todos os aspectos, do juízo e postura à aparelhagem frontal”, mas que no entanto produzem “gala feminil”. Já não mais, uma vez que Saturnino agora fez filho homem, e finalmente, embora ninguém ainda saiba do feito e nem do feto e todos sejam capazes de jurar que o bebé vem como mulher — a décima mulher. Somente o avô Tertuliano é que sabe ser o bebé homem, e só sabe porque um dia, parado à toa no Largo da Quitanda, ouviu um sopro — “um sopro que recebeu no ouvido, sem atinar de onde, e que lhe fez o peito palpitar”; um sopro que lhe cochichou, entre muitos resmungos ininteligíveis, que o mundo ganharia um nascente macho.
E assim foi. Se houve complicações, se o menino não descia, se estava caracterizado o chamado “entalamento”, porque a criança não vinha de cabeça; vinha de rabo, a barlavento — “desenlace trabalhoso e dificílimo em qualquer parte, até mesmo nas mais famosas maternidades e nas mãos dos mais trombeteados doutores, munidos dos mais moderníssimos aparelhos norte-americanos” —, se quase se configura, afinal, naquela manhãzinha de sol na Denodada Vila de Itaparica, uma verdadeira troca de lugares entre a vida e a morte, também houve ali, na mesma proporção e ao mesmo tempo, a fagulha de perspicácia e graça que atingiu o avô Tertuliano, que percebeu, enquanto conversava com um amigo ao pé da porta, e no instante em que levantou os olhos para o céu, que a lua se tinha tornado cheia. Tornou-se cheia durante a noite anterior e agora ali estava, redondíssima e visível, mesmo com o sol subindo entre as nuvens. Era preciso avisar a parteira. “Cadê Altina, era preciso dar uma mão a ela e contribuir para não se vir a cometer o pecado irremissível de perder a ocasião raríssima que agora só faltava falar para chamar a atenção, uma verdadeira sorte grande da loteria federal em dia de feriado nacional, a maior pule de todas as possíveis!” E assim foi.
Raymundo Penaforte, o primeiro neto homem de Tertuliano Jaburu, nasceu bem e com os pezinhos apontados para baixo. Foi passado pela parteira, ainda gosmento, para as mãos do avô e rapidamente içado para o alto, para diante da janela do quarto que dava de frente para aquela lua cheia. E Tertuliano, com todo o cuidado, segurando o pequeno pelos tornozelos e amparando a sua nuquinha, fez a única coisa que tinha de fazer: ostentou “à lua cheia propiciatória o cu do neto, para que fosse iluminado pelos raios benfazejos que para sempre marcariam a trajetória de quem é dessa forma apresentado”.
Ainda estamos no capítulo terceiro, e praticamente não ouviremos mais senão duas ou três menções a este neto homem, que, ao contrário de todas as expectativas, não voltará à cena do narrado, porque a cena do narrado pertence ao avô. É Tertuliano Jaburu quem está na mira do foco do narrador; é nele que mora a alma do livro, e também a sua densidade, a sua razão de ser e, principalmente, a sua melancolia. Os demais personagens, se ali estão — e se o narrador se dá ao trabalho de os caracterizar com a robustez, a riqueza lexical e a desenvoltura barroca da sua prosa —, é para servirem de estímulo e mote para o que se vai desencavar das angústias e recordações de Tertuliano.
A narrativa inteira é como se transcorresse unicamente dentro da cabeça deste avô, que começa a ouvir vozes um pouco antes do nascimento do neto, inicia uma série de rememorações purgativas sobre a própria infância e avança pela segunda metade do livro anunciando alegremente a todos os amigos que encontra pelos caminhos que está prestes a morrer de uma hora para outra para poder começar uma outra vida o quanto antes.
Tal mudança no modo de olhar para a frente e para trás da própria existência talvez se deva às coisas nebulosas que lhe disse o seu amigo Nestor Gato Preto, “deste modo apelidado por ser mais retinto que uma broxa besuntada de piche e ter os olhos tão azuis que brilhavam no escuro, flutuando acima dos dentes”. Gato Preto, após o despejamento do neto de Tertuliano, jogou as suas cartas, consultou os seus santos e notou que pegada ao nome de Tertuliano não havia uma vida, como sempre há uma vida pegada em todos os nomes levados à consulta dos santos — como se Tertuliano Jaburu, já velho e dez vezes avô, não tivesse efectivamente vivido, até àquele momento, uma vida como deve ser.
Aquilo o transtornou ao ponto de ele, olhos húmidos e queixo tremido, começar a rememorar a sua infância, toda ela marcada por cinismos, dissimulações e um complicado amor ao pai. São as histórias da família de Tertuliano, a começar pelo seu avô e chegando ao seu pai, que ocupam o miolo do romance e constituem os seus momentos de mais acção. João Ubaldo narra com agilidade e competência linguística a transtornada história de Nuno Miguel Botelho Gomes, pai de Juvenal Peixoto do Amaral Viana Botelho Gomes, pai de Tertuliano Botelho Gomes, ou Tertuliano Jaburu — um português “que chegou à Bahia com uma mão na frente e outra atrás, mas de moço de quitanda logo subiu a quitandeiro e num triz a merceeiro, sem demora a armazeneiro, atacadista, atravessador, importador e distribuidor e adiante só seguiu ladeira acima, com labuta sem trégua, ladinice, avareza, mão fechada, coração de pedra, confiança em ninguém, palavra sempre cumprida e nem com sonhos perdendo tempo, a não ser que fosse sonho com negócios e dinheiro”.
O romance inicia com esta segunda história o que se chama de uma “narrativa encaixada”. Deixamos de lado o dia-a-dia amansado de Tertuliano e caímos no redemoinho da história de seu avô Nuno Miguel, que, bem casado, rico e já com o filho Juvenal nascido, assiste no Brasil à morte da mulher naquele que teria sido o seu segundo parto. Desesperançado, volta para Portugal, deixando o primogénito lá mesmo na Bahia, aos cuidados da madrinha, também viúva, e passa a relacionar-se com o filho apenas por carta. Juvenal cresce, tornando-se um homem com qualidades, e continua a viver na casa da madrinha, amancebado agora com as suas duas filhas, Catarina e Albina, sendo esta última a mãe de Tertuliano. Juvenal vive bem no Brasil, bonito, endinheirado, respeitado e mimado, em nenhum momento passando pela sua cabeça que precisaria de optar por uma das duas camas que lhe abrigam o corpanzil, até o dia em que chega uma carta do pai, Nuno Miguel, lá de Portugal, com uma notícia-bomba. Não se contará a aqui o assombroso desenvolvimento dos fatos que levarão Juvenal a ter de optar entre Albina e Catarina, e nem de que modo insólito e cruel esta opção afectará para sempre a vida de seu filho.
Embora quem relembre o avô e o pai seja o nosso Tertuliano Jaburu, não é ele que nos contará tudo isso, porque se contasse começaria a chorar e nunca mais pararia. Quem conta a história é o grande personagem da ficção ubaldiana — o narrador, que, tal como um maestro, vai controlando a entrada e a saída dos personagens, bem como aquilo que pensam e dizem, unicamente através do manejo do discurso indirecto livre, recurso que João Ubaldo Ribeiro, narrador de mão cheia, sabe utilizar como poucos, no que se configura uma verdadeira arte de contar histórias, e isso a um tal ponto que os personagens só em raros momentos ganham direito a um travessão de discurso directo.
O albatroz azul é o décimo romance de João Ubaldo Ribeiro, escritor nascido na Ilha de Itaparica, Bahia, em 1941, e que está hoje com 68 anos. Pode-se dizer que este é o seu romance mais introspectivo e triste. Tertuliano é um homem triste; a vida de Tertuliano é, na sua maior parte, também triste, e de uma tristeza serena e constante, sendo os seus momentos menos tristes ironicamente aqueles em que passa a acreditar que irá morrer dali a pouco, anunciando assim a boa nova aos amigos; a história de seus antepassados é triste; e não poderia ser senão triste o tom do narrador, uma vez que está quase todo o tempo em focalização interna com Tertuliano — um narrador que só não fala mais da morte e da velhice porque tem uma história de vida para contar, ou um romance para escrever.
Sim, é claro que é tudo ficção, e a arte de narrar é a arte de fingir, e o poeta é (finge ser) um fingidor. Isso já se sabe, mas a ficção de João Ubaldo Ribeiro está longe de permanecer incontaminada pelos sopros do biografismo. Ele não está o tempo todo a criar somente a partir do que os seus atentos e etnográficos olhos captam, como um observador da cultura e dos homens confortavelmente posicionado do lado de fora da página. Não. Além de lançar mão dos contextos itaparicano, baiano e sergipano — que lhe são autobiográficos por excelência —, Ubaldo põe para falar e pensar, em todos os seus romances, sem excepção, personagens que funcionam como um canal de expressão das suas opiniões pessoais sobre muitos temas e ainda das suas mais íntimas maneiras de olhar para o mundo que o engole — expressas publicamente em entrevistas e artigos para a imprensa.
Mas o leitor, neste romance, conhecerá um novo Ubaldo, agora às voltas com um novo tema, que é o velho tema, o tema de sempre, o tema de todo dia, que é o próprio fim, uma das maneiras de se falar da própria vida. E por que é que o livro se chama, então, O albatroz azul? Não é só porque há uma borboleta da ordem dos lepidópteros, da classe dos hexápodes, do filo dos artrópodes, da família dos Pieridae e que se chama justamente Blue Albatross… Também não é porque o albatroz é considerado, segundo as mais tristes lendas do mar, a encarnação da alma dos marinheiros mortos… Há outra razão, e a resposta está no fim — porque é no fim, já disse alguém, que todos nós morreremos.
Trecho 1:
“… Tertuliano se despediu com novo abraço e ainda falou alguns instantes com Gustavo e Natálio, que não aparentaram haver estranhado nada da conversa havida na frente deles. Pelo contrário, Natálio, muito compenetrado, disse que entendia tudo perfeitamente e endossava o que falara Nascimento, no compreendido e no não tão bem compreendido. Não somente isso, mas teria muito prazer em comparecer ao funeral, seria uma honra, contassem com ele do velório à missa de trigésimo dia, os amigos e admiradores não podiam faltar naquela hora. Tertuliano já sabia a data exata do passamento? Não sabia? Bem, não fazia diferença. Quando acontecesse, estaria a postos, no que foi secundado por Gustavo, que apertou a mão de Tertuliano demoradamente. Nunca desfrutara de maior aproximação com Seu Tertuliano, mas sempre o tivera em alta conta, pelo seu belo comportamento e invejável equilíbrio. Agora surgia outro motivo para inveja, qual seja morte tão bem organizada e encaixada, ideal de todos e apanágio de pouquíssimos, até mesmo entre os membros das irmandades da Boa Morte pelo mundo afora. Também estaria no funeral com muito gosto e orgulho, até porque uma das boas coisas de sua vida, de que sempre se orgulharia, fora ter conhecido Seu Tertuliano e com ele várias vezes convivido.”
Trecho 2:
“Assim contemplada do Jardim, a enchente da maré engana os olhos e a mente, na hora em que o sol já invade tudo o que se descortina, esbatendo tons de açafrão reluzente entre as folhas das amendoeiras, as ameias da Fortaleza e os contornos das nuvens. Muitas embarcações vão aproveitando o empuxo da correnteza e bordejam o lado fronteiro no prumo da Ilha, embora grande parte já de longe talhe derrota para os portos de dentro do Recôncavo e outra parte aproe afora depois de costear a leste, o velame alvo ou ocre pálido panejando contra o azul-escuro das águas mais fundas da baía. Ajuntamentos de mariscadores bulindo lá e cá como formigões vagarosos, curvados sobre a areia ou de joelhos em crateras de lama almiscarada, estalos e gorgolejos borbotando todo o tempo do vasto baixio que se funde com o horizonte, a maresia robustecida pelo sargaço amontoado ao pé do cais — e a enchente igual a um bicho engatilhado, que finge dormir mas está de bote armado, pressentida apenas no ronco do marulho longínquo. Quem não aprendeu, nada percebe. Por isso daí a pouco se surpreende e não raro se intimida com a água em roldão repentino sobre a areia dura, encobrindo-a como um lençol estendido às pressas, o mar alastrado passando a emoldurar o mundo e tomando posse da paisagem e dos ares. Desde cedo, os mais velhos procuram mostrar aos novatos na vida que nada resiste ao poder circunspecto da maré, a qual não faz alarde nem estardalhaço, mas ignora o que lhe esteja à frente e cumpre infalivelmente o seu curso, lição que, se levada em conta, conduz a uma existência bem menos inquieta do que ela sempre procura ser.”