12 e 13 de Novembro de 2009, Sociedade Portuguesa de Autores.
Moderador: Eugénio Lisboa (dia 13).
Com: Mário de Carvalho, Adalberto Alves, Jaime Salazar Sampaio, Carlos Paniágua, Mário Máximo (Portugal), Juva Batella (Brasil), Ana Paula Tavares (Angola), José Luís Hopffer Almada (Cabo Verde), Luís Carlos Patraquim (Moçambique).
"Quid pro quo - Parte I: a mesa errada"
Publiquei o meu primeiro livro aqui em Portugal — e esta frase tem dois sentidos válidos, porque publiquei, pela primeira vez, um livro em Portugal, e ao mesmo tempo esse livro foi o primeiro livro que publiquei, e ponto final. E agora estou um bocadinho, um tantinho de nada, um tamaninho só, quase-famoso — que para famoso ainda falta muito. Em duas semanas dei uma entrevista à televisão, duas entrevistas ao rádio, uma entrevista a um jornal e uma palestra. Não vou dizer que a palestra que dei tinha de durar no máximo dez minutos, porque havia mais gente para falar, mas vou dizer, sim, que era uma mesa de escritores e que eu estava a representar o Brasil.
Foi a comemoração do 60º aniversário da SLP — Sociedade da Língua Portuguesa —, através da realização de um colóquio intitulado Língua, culturas e identidades, que aconteceu no auditório da SPA — Sociedade Portuguesa de Autores. Eu, o escritor Juva Batella, que estava a representar o Brasil, deveria chegar às 16h30m e ocupar o meu lugar na mesa-redonda que era rectangular, diante do meu microfone. Foi o que fiz eu — ou seja, o Brasil. O Brasil chegou um bocadinho antes, às 16h, e ficou sentado assistindo ao debate anterior. Aquilo estava tudo um bocado atrasado, porque já eram 16h40m e a mesa anterior ainda estava a debater “O idioma português como língua filosófica” — um debate comprido e complexo e que o Brasil entendeu mais ou menos. Se ainda fosse o idioma brasileiro como língua filosófica, o Brasil pelo menos entenderia ainda menos. E lá ficou o Brasil, sentado e de braços cruzados.
Aconteceu então, ao final do debate, a chamada e ansiada “pausa para o café”, que faz qualquer português, filosófico ou não, animar-se e levantar-se, e foi nesse momento que o Brasil se levantou de seu berço esplêndido e foi para a pastelaria que ficava ali mesmo na frente da SPA, na própria Rua Gonçalves Crespo, só que do outro lado, e pediu o Brasil uma imperial (um chope, e não há acordo ortográfico que resolva isso, até porque isso não é ortografia; é lexicografia), e bebeu o Brasil aquela imperial com gosto e a pensar no que seria a sua “intervenção”, que é uma palavra que se está a usar muito aqui para substituir a expressão “a sua vez de falar”. O tema proposto para a mesa-redonda que era rectangular e da qual o Brasil, representado pelo seu escritor mais quase-famoso, iria participar intitulava-se, segure-se quem puder: “Os desafios da escrita nos nossos dias. O ato da criação literária: sintoma patológico ou a busca da mente do outro?”.
O Brasil, depois da imperial, se chegou em alguns momentos a ficar ansioso com a sua “intervenção” que já se avizinhava, já não estava mais. Entrou, impávido colosso, no auditório e cruzou à entrada com o professor Carlos Reis, da Universidade de Coimbra, e o professor Carlos Reis adora o Brasil — não o Brasil que tinha acabado de tomar a imperial, mas o Brasil mesmo, o representado, embora o professor Carlos Reis também tenha simpatia pelo escritor Juva Batella, e tanto isso é verdade que, mal o viu, já avançou, a mão estendida para a frente, e disse, em discurso directo na primeira pessoa: “Tenho muito gosto em vê-lo, meu caro Juva Batella!”. E este, todo prosa (e todo verso também), sorriu de volta, apertou-lhe a mão, num aperto de mão narratológico, disse alguma coisa, mas em indirecto livre (preferências de escritor), apertou também a mão da mulher do professor Carlos Reis, que é do Brasil, da sua parte sulista, e desejaram-se todos, o escritor, o professor e a senhora gaúcha, boa sorte em suas “intervenções”.
Fortalecido pelo aperto de mão do Carlos Reis e ainda por ver que o professor de Coimbra se lembrava muito bem do jovem escritor, pois ele foi o seu quase-co-orientador na sua tese de Doutoramento — e ainda chegaram a tomar cafezinhos juntos na Modern Sound ali de Copacabana, no longínquo Rio de Janeiro do ano de 2004 —, o Brasil, representado por este que escreve, sentou-se finalmente à mesa-redonda que era rectangular, arrumou os papéis da sua “intervenção” e esperou que a presidente da SLP, Dra. Maria Elsa Rodrigues dos Santos, fizesse as apresentações. Mas ela não as fez.
Estava ao meu lado na mesa um professor, o José Luís Pires Laranjeira, mais um outro senhor de bigodes, que não sei quem é, e mais a Dra. Elsa. “E onde estarão os escritores que representarão os demais países?”, pensei. “Onde estarão Mário de Carvalho, Adalberto Alves, Jaime Salazar Sampaio, Carlos Paniágua, Mário Máximo (representando Portugal), e ainda Ana Paula Tavares (Angola), José Luís Hopffer Almada (Cabo Verde) e Luís Carlos Patraquim (Moçambique)?”. Ali à mesa só estava o Brasil, a Dra. Elsa, o outro senhor de bigodes e ainda o professor Pires Laranjeira. “Será que Angola, Moçambique, Cabo Verde e Portugal estavam também na pastelaria, disfarçados, a beber imperiais e a comer pastéis de nata?”
O Pires Laranjeira começou a falar numa velocidade estonteante (porque tudo, afinal, estava muito atrasado), e em dois minutos eu percebi que ele não estava a fazer a sua “intervenção” acerca do tema que eu tanto havia estudado em casa: “Os desafios da escrita nos nossos dias. O ato da criação literária: sintoma patológico ou a busca da mente do outro?”. O Pires laranjeiras estava a analisar a obra do poeta cabo-verdiano Arménio Vieira. “Deve haver algo errado”, pensei. “Será que estou na mesa-redonda errada?” E, quando o Pires Laranjeira fez referência, no meio da sua “intervenção”, ao grande quiproquó havido — do latim quid pro quo: isto por aquilo, uma coisa por outra; logo, uma mesa por outra —, eu tive a certeza de que eu estava mesmo na mesa-redonda errada. “A Dra. Elsa Rodrigues está a me ver aqui sentado, na mesa errada, e não me avisa nada? Estranho…” E eu tive então outra certeza mais horripilante: a certeza de que havia entendido tudo errado; que o meu verdadeiro tema, como representante do Brasil, e porque nesse mundo das artes e das academias e das palestras e dos colóquios e das mesas-redondas tudo o que se almeja e se pretende em termos culturais é justamente integrar e viabilizar tangências e proceder a dialécticas — o meu verdadeiro tema era então, na condição de literato de um país de língua portuguesa, analisar a obra do literato de um outro país de língua portuguesa, e o meu objecto de estudo era precisamente o Arménio Vieira, o que mais poderia ser? E era por isso que a Dra. Elsa Rodrigues estava a me ver ali naquela mesa e não fazia nada: porque ali era de facto o meu lugar, a mesa sobre o Arménio Vieira. Eu havia incorrido num grande equívoco, uma troca de linhas na relação dos participantes e dos temas, e tinha de me safar daquilo. Qual sintoma patológico! O meu tema era o Arménio Vieira! Nossa Senhora dos Sarilhos!
O Pires Laranjeira agora está a agradecer, e todos estão a aplaudir, e eu estou a suar por baixo da primeira camisa, e nos próximos segundos vão me passar o microfone e eu terei então de fazer a minha “intervenção” sob a forma de uma análise da obra do poeta cabo-verdiano Arménio Vieira. Aliviava-me sobremaneira o fato de eu só ter (porque tudo estava um bocado atrasado) dez minutos, e não mais que dez minutos, para dar o meu recado.
E, sempre sorrindo, melhor ainda do aqueles pinguins do filme Madagáscar, que estão sempre “a sorrir e acenar”, pensei que eu poderia, na minha “intervenção”, ficar três minutos a agradecer o convite que me foi feito; quatro minutos a falar da importância de eu estar a realizar aquela palestra sobre aquele tema justamente ali naquele sítio, e com aquelas pessoas, e depois mais três minutos a lamentar não ter tido tempo de falar mais sobre o poeta Arménio Vieira, mas que, de todo modo, se a Dra. Elsa Rodrigues me permitir abusar mais um bocadinho da paciência dos senhores, eu poderia ler aqui um dos poemas que considero mais representativos de toda a sua poética, que poderíamos chamar de sócio-erudita — uma poética de desconstrução e ruptura e ao mesmo tempo uma tentativa de reconstrução de uma nova estética; uma estética baseada e alimentada, a cada obra, pela imensa capacidade de síntese e, portanto, de conciliação social, o que pode parecer paradoxal mas não é. E eu pegaria então da mesa um dos livros de que se estava a servir o professor Pires Laranjeira — pegaria o MITOgrafias, que estava ali à minha frente e cuja capa era bonita —, abriria numa página qualquer e, com uma inadmoestável expressão de inteligência e ainda com a testa enrugada, leria, bem devagar, o primeiro poema que me aparecesse aos olhos.
Eu estava já para começar a minha farsa poética quando subitamente o professor Pires Laranjeira se levanta, a Dra. Elsa Rodrigues toma da palavra e chama para a mesa-redonda que era rectangular Portugal e Cabo Verde, diz que o Brasil já estava posicionado e pede desculpas pela ausência de Angola e Moçambique, que não puderam estar presentes. E então eu me vejo novamente recolocado, ao lado do escritor português Mário de Carvalho e do poeta cabo-verdiano José Luís Hopffer Almada. E, mais uma vez, girei uma chave imaginária dentro da minha cabeça, retirando-a do alvo “Arménio Vieira” e reposicionando-a agora para o alvo original: “Os desafios da escrita nos nossos dias. O acto da criação literária: sintoma patológico ou a busca da mente do outro?”. O mundo se havia reconstruído, e eu teria então de fazer a minha “intervenção”.
"Quid pro quo - Parte II: o tema certo"
"Quid pro quo - Parte II: o tema certo"
— Boa tarde a todos. Meu nome é Juva Batella. Eu sou brasileiro, moro em Portugal há cinco anos e estou muito feliz, e por duas razões: a segunda razão é o fato de eu ter conseguido finalmente publicar cá um romance, que se chama O verso da língua e cuja editora é a Presença. A primeira razão é o facto de eu não ter de fazer, neste instante, uma palestra sobre o poeta cabo-verdiano Arménio Vieira, sobre o qual tudo o que sei aprendi mesmo agora, aqui ao lado do professor Pires Laranjeira.
(risos moderados)
— E tudo o que aprendi, tenho a certeza, nunca mais na vida esquecerei. Isto tudo para dizer que estou na mesa certa e tenho sobre o meu colo o tema certo, que vem a ser justamente este: Quais os desafios da escrita nos nossos dias? O acto da criação literária: sintoma patológico ou a busca da mente do outro?
Há dentro deste tema quatro grandes sub-temas: 1) os desafios da escrita no mundo de hoje, 2) o acto da criação literária, ou seja, o acto de se escrever literatura, 3) o sintoma patológico e 4) a busca da mente do outro. É bem verdade que um título como esse também não é menos preocupante; um título como esse pode deixar um sujeito sem dormir pelos dois dias anteriores à sua “intervenção”, embora eu já vá prevenindo os senhores de que não pretendo intervir em nada — antes, pelo contrário, espero que intervenham na minha pequena digressão de modo a me fazerem parar de falar quando acabarem os dez minutos a que tenho direito. Tinha, aliás — porque, estrategicamente, já gastei pelo menos três a fazer piadas.
Em sete minutos, portanto, eu digo que não acredito ser o acto da criação literária um sintoma patológico. Se for assim, poderíamos falar também que, do mesmo modo como o acto de escrita é um sintoma patológico, o ato de tocar piano também o é; o acto de pintar quadros também o é; o acto de dançar e o acto de tocar baixo acústico e de compor música também o são — tomados todos como actos de criação.
O caminho de pensamento e análise que parte da relação entre loucura e arte é um caminho específico e que conduz a descobertas e experiências específicas. Isso não me interessa. A arte não é para mim uma celebração ou uma dignificação da loucura ou uma justificação ou ainda uma compensação para a loucura. Prefiro, antes, debruçar-me sobre o último elemento do nosso tema: o acto da criação literária como a busca da mente do outro. E é aqui neste tema que o nosso título funciona lindamente.
Eu não conheço as outras artes como conheço literatura, mas tenho a convicção de que a literatura instaura desde o seu primeiro acto de escrita a suprema necessidade da decisão acerca do mesmo e do outro. Porque a literatura, de um modo radical, parte sempre do mesmo princípio: o ponto de vista, a necessidade de se escolher um ponto de vista, sempre. Sempre que uma história tem de se contada, esta decisão tem de ser tomada: quem conta, para quem conta, de onde conta, como conta, e por aí seguem as perguntas, cada vez mais específicas.
Quando eu digo “a mente do outro” eu posso querer dizer também o mesmo, porque mesmo que se esteja na própria mente quando se escreve, e mesmo que se escreva sobre si mesmo, este si mesmo, quando é observado pelo si mesmo, se torna inevitavelmente um outro. Quando eu escrevo no papel “eu”, o “eu” que escreve não é o mesmo “eu” que é escrito.
A ciência costuma referir-se à consciência como o fenómeno mais fascinante e mais indescritível que há — “… é impossível explicar o que é, o que faz ou porque se desenvolveu. Nada que foi escrito sobre ela vale a pena ser lido”. Isto disse um psicólogo chamado Stuart Sutherland, citado pelo David Lodge, no seu livro A consciência e o romance, no qual eu muito baseio esta minha “intervenção”.
Mais adiante o próprio David Lodge vai refutar essa ideia, dizendo que “a literatura é um registo da consciência humana, o registo mais rico e abrangente que possuímos. (…) O romance é muito provavelmente o esforço mais bem sucedido do homem para descrever a experiência de seres humanos individuais a moverem-se através do espaço e do tempo”. Nenhuma ciência fez isso melhor do que a literatura.
E a consciência, segundo os cientistas que se debruçam sobre esse fenómeno, tem um carácter eminentemente narrativo. O Sr. António Damásio é um dos que fala disso: “Contar histórias é uma obsessão do cérebro’, diz ele, que ainda defende a ideia da “autoconsciência de si”.
“Autoconsciência de si” pode parecer um pouco redundante, mas não é. Não apenas temos consciência de nós mesmos, como temos consciência de estarmos a ter consciência de nós mesmos. Isso nada mais é do que o trabalho constante da consciência de unificar a nossa imagem de nós mesmos. Se não fizermos isso, perdemos a sanidade e escorregamos para a loucura.
Talvez nesse sentido a literatura seja, então, justamente o oposto: não um sintoma patológico, mas um sintoma de saúde. A consciência, para suportar a si mesma, tem de unificar o ser — o ser que, “na realidade”, não passa de um estilhaço de imagens —, e a literatura faz dessa unificação do ser a sua ficção. Esse si mesmo unificado é a nossa ficção suprema. E é nessa ficção suprema que eu acredito.
— Sr. Juva Batella, o senhor tem 1 minuto para concluir…
— Obrigado.
(tosses e pigarros)
— Quanto aos desafios da escrita nos dias que correm… Os desafios me parecem ser os mesmos desafios da escrita em outros tempos. É claro que se poderá falar aqui na especificidade da nossa pós-modernidade: a velocidade da vida, a tecnologia, os meios de comunicação, a instantaneidade da informação, o mundo digital, o futuro do livro impresso, a superficialidade, ou não, dos relacionamentos no universo da urbanidade, ou, já agora, da pós-urbanidade.
Mas será tudo isso tão decisivo assim, ou não será tudo isso um fenómeno de superfície, e as principais angústias e necessidades humanas continuam sendo as mesmas? E, nesse caso, a literatura continua a ocupar o seu lugar e a se defrontar com o mesmo desafio, que é o velho desafio de sempre: a tentativa de dar sentido a uma existência que a todo segundo perde o sentido diante da ideia e da realidade da morte — ou seja, do si mesmo que é estilhaço e sobre o estilhaço avança.
Obrigado. Boa tarde a todos.
(palmas moderadas)
que divertido.
ResponderExcluiradorei, saudades, bb
você, hein...
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