25 de junho de 2010

Isto é que é chegar no fim da festa

"Admitamos a formação do nosso universo, há 15 bilhões de anos, pela grande explosão a que se convencionou chamar Big Bang. Condensemos o período decorrente desde então nos 365 dias de um ano. Teremos num calendário anterior a dezembro, comportando acontecimentos como a origem da Via Láctea (1 de maio), a origem do sistema solar (9 de setembro), a formação da Terra (14 de setembro), a origem da vida na Terra (cerca de 25 de setembro), a formação das rochas (2 de outubro), os primeiros microorganismos sexuados (1 de novembro), as plantas capazes de fotossíntese (12 de novembro), as primeiras células com núcleo (15 de novembro).

Somente no dia 1 de dezembro, uma atmosfera significativamente rica em oxigénio começaria a se desenvolver na Terra, seguida do florescimento dos invertebrados (17 de dezembro), dos vertebrados (dia 19), da disseminação de vegetais (dia 20) e de insetos (21) pelo planeta. Entre os dias 22 e 24 poderíamos assistir ao surgimento dos primeiros insertos alados, das primeiras árvores, dos primeiros répteis e dinossauros. Mamíferos e pássaros não surgiram antes do dia 28, mesma data em que apareceram as primeiras flores e se tornariam extintos os dinossauros. Esta é a véspera do aparecimento dos primeiros cetáceos, assim como dos primatas. Os hominídeos viriam à cena no dia 30 de dezembro e no dia 31, finalmente, os primeiros homens dariam o ar da graça.

A partir desse ponto seria necessário abandonar a escala do calendário, adotar a do cronômetro e utilizar critérios mais precisos, até a espessura do minuto (isto é: 29 mil anos) e do segundo (475 anos). O Procônsul e o Ramapiteco, ancestrais prováveis dos macados e dos homens, nasceriam às 13h30m desse dia 31; os primeiros homens por volta de 22h30m; as pinturas das cavernas européias teriam sido executadas às 23h59m. A invenção da agricultura ocorreria às 23h59m20s. A civilização neolítica e as primeiras cidades às 23h59m35s e nos quatro últimos segundos teríamos acotovelados o nascimento de Cristo, as grandes descobertas, os métodos experimentais em ciência, a bomba atômica, as viagens espaciais...”

José Carlos Rodrigues, “Homens e crocodilos”, in Antropologia e comunicação: princípios radicais, Rio de Janeiro, Espaço e Tempo, 1989, p. 128-129.

16 de junho de 2010

"O Bloomsday nosso de cada dia"

Acorda às oito e trinta da manhã, espreguiça-se, come cereal, toma café, fuma um cigarro, olha e é olhado, beija e é beijado, caminha para o carro, vai para casa, recebe uma mensagem, sorri, responde sorrindo, escreve, vai nadar, almoça, pára na pastelaria, pede um café, discute a situação do país, sai da pastelaria, fuma um cigarro, dá um passeio, volta para casa, escreve, fuma outro cigarro, lê, ouve música, trabalha num texto alheio, come um chocolate com laranja, bebe mais café, fuma outro cigarro, assiste à tarde caindo na noite, dá comida ao gato Ulisses, toma banho, fuma o último cigarro, escreve, lê, passa creme nas mãos, vai para o quarto, tira a roupa, lê, apaga a luz, imagina como seria bom se, pega no sono imaginando como seria bom se, e, em meio a um monólogo inexprimível, sonha que está sendo - e que é mesmo muito bom.

8 de junho de 2010

"Como perceber que o gato está encaixado"

Para se encaixar um gato são necessários um gato, uma concavidade de pernas e um certo ar de manhã sem vento. Mas não é só isso. O primeiro passo, bem anterior, é possuir uma amiga de coração amplo que encontre um gato abandonado e lhe dê pouso em sua casa. E esta amiga tem de possuir, ainda, duas tartarugas, duas cadelas (uma muito velha) e pouco espaço ao redor, mas sempre acolhedor. O gato saído da rua precisará passar por momentos de tensão diante daqueles dois seres esverdeados, minúsculos e quase sempre imóveis, prontos para o ataque, tendo ainda de conviver com as idiossincrasias dos dois outros seres, sempre espalhafatosos e dispostos a aprender o que quer que seja com os seus donos, porque os cães... Deixa pra lá.

A amiga, cansada, oferecerá enfim o gato, e nós aceitaremos, e numa manhã sem vento estaremos no sofá, a pensar em que é que pensaríamos, quando de repente ele virá, saindo da varanda e lentamente, no seu passo de gato, e dará duas ou três voltas em torno de si mesmo. O sino da igreja deve tocar nessa hora, e, se não tocar, bem... Quando ele afinal se curvar e se deitar, encostado na curva de uma de nossas pernas, ainda poderemos alongar este tempo imaginando que o gato fará alguns movimentos quase imperceptíveis, e ele fará se quiser, porque os gatos... Deixa pra lá. E então ele ficará de repente imóvel e deitará a cabeça sobre as patas, e o tempo parará, e é nesse instante único e raro que nos convenceremos de que o gato está encaixado.

E depois? E depois, já quando nos tivermos levantado, pegado os cigarros e as chaves do carro e ido para a rua, é que nos daremos conta de que tudo o que se quer da vida pode ser feito com calma e delicadeza — e, porque não somos um gato, permaneceremos deliciados por dias a fio, como se não houvesse amanhã.