26 de dezembro de 1998

"Contos compõem um singelo jogo de armar"

"Contos compõem um singelo jogo de armar", Caderno Idéias, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26 de dezembro de 1998.

Resenha sobre o livro de contos Surtos urbanos, de Vera Albers, ed. 34.

Cada um destes dezoito pequenos contos não conta apenas a sua própria história, mas também, sob diferentes olhares e formas, as outras dezessete. Reunidos, contornam uma história maior, que não existe senão picotada nas mesmas dezoito partes, sem início ou fim determinados, escorregadiças, impalpáveis e abruptas como somente o podem ser as lembranças e os surtos. São crônicas e às vezes poemas em prosa as peças deste singelo jogo de armar que começa montando a adolescência de uma ou várias meninas, abandona etapas intermediárias e volta a reunir-se em peças para um novo momento — aquele em que uma ou várias mulheres, já não mais meninas, sabem que podem e devem contar com as próprias palavras a própria vida.

Nos quatro primeiros contos, onde a adolescência é tema e cenário, quem conta não é quem vive, pois quem vive não tem voz. As meninas estão à mercê dos acontecimentos, e os acontecimentos, apesar de singelos e até previsíveis, machucam um quotidiano polvilhado de inocência e idealização. Um narrador em terceira pessoa, porém íntimo das personagens, vai dando conta de difíceis momentos: uma carona prenhe de ruins conseqüências para a filha temporã e reprimida; a insciência de uma menstruação tardia produzindo confusão e desamparo; um belo dia destruído por uma proposta indecente, um atraso para o jantar e duas bofetadas paternas; o romantismo de reuniões clandestinas no embate da repressão policial. “Eram reuniões informativas, sem tarefas concretas, inconsistentes, no seu otimismo alienado. (...) indolência física, cigarros e mais cigarros. (...) No fim, todos saíam com a cabeça pesada, mas sentindo-se fortes na intenção, respaldados na idéia.”

A passagem para a vida adulta acontece formalmente com a mudança do foco narrativo para a primeira pessoa. Agora sou eu quem conto, a vida é minha e não devo satisfações. Mas contar não deixa de ser um modo de dar satisfações, ao menos a si mesmo. E as reminiscências desfilam em prosa elegante e concisa. Em alguns contos a concisão é demasiada, descambando para um hermetismo de fundo, creio, tão pessoal, que resta a sensação de estarmos metidos até o nariz em assuntos que não nos dizem nada e para os quais não fomos chamados. É o caso de “Réquiem para G.H.”, “Anapla Kilala”, “A Comilança”, “Bovary 70” e “Tamanho dos Testículos Impressiona Mais Que o Pênis (De Uma Manchete do Jornal de Domingo)”, contos chatos, obscuros e carentes de enredo. Estes cinco, porém, não comprometem os outros treze, tamanhas a qualidade do texto e a capacidade narrativa desta misteriosa autora que faz questão de manter-se incógnita.

O conto “O.O.”, por exemplo, é o relato de uma experiência mística vivida com humor por uma narradora provocante e quase absurda em sua curiosidade acerca dos mistérios divinos. “O caso da Liuba foi que depois de morta voltou de noite e sentou-se na cadeira do meu quarto toda sorridente e eu segurei-lhe febrilmente o braço e perguntei aquilo que sempre quis saber neste mundo, embora desconfiasse que a resposta, existindo, só me seria dada no outro. E ela (...) disse: ‘Existe sim’.” A angústia dos amores adultos que poderiam ter acontecido mas, por algum desgraçado acaso, não acontecem está na história do Dr. Fortuna — ex-ginecologista e psicólogo ligado aos assuntos ocultos, viúvo e idoso. Pela graça de sua palavra e contundência de seus conhecimentos, acaba seduzindo a narradora, que tenta explica como, de repente e contra todos os prognósticos, se viu dobrada e apaixonada pelo mais improvável dos homens quando já era tarde demais.

Três mui competentes relatos sobressaem graças à radical mudança que operam, tanto de ambiente como de narrador. Não há em “Relato de Ismerina”, “No Cocuruto da Serra” e “A República” nada que se assemelhe a um surto urbano. São vozes do sertão a de Ismerina, “Meu nome é Ismerina Maria da Conceição, de Lagoa Nova. Nasci e me batizei lá. (...) Ouvia papai falar em sertão. Ele dizia — minha filha, é um lugar tão bom, tão grande, mas por outra parte é um lugar que tem muita pedra. — Pai, eu queria ir lá nem que fosse a passeio — dizia eu.”, e a do velhinho que pega uma carona na estrada, vindo lá do alto, do cocuruto da serra. “Vou para São Paulo, sim senhora. Vim aqui cuidar da minha roça — a senhora sabe, se eu não cuidar, ninguém cuida. (...) Meu nome é João Francisco dos Santos, filho de pai e mãe.” O último conto, a vida inteira de um italiano nascido no Piemonte e imigrado para o Brasil, depois de pisar as brasas da guerra e quase cair nas patas do nazismo, talvez seja o mais bem feito do livro, pela concisão sem buracos, sobriedade do estilo e objetividade do enredo.