Escrever
sobre João Ubaldo Ribeiro hoje, logo após a sua morte, pode significar um olhar
compulsório para trás, observando-se uma obra agora completa e uma vida que foi
toda ela, do começo ao fim, dedicada à literatura, mas este caráter obrigatoriamente
retrospectivo é apenas aparente. A arte de Ubaldo segue adiante, gerando
leitores, estudiosos e novas interpretações — uma forma de se atestarem a
potência de um trabalho e o seu caráter imorredouro. O escritor publicou, ao
longo de 41 anos, dez romances. Quem quiser conhecer a obra romanesca de João
Ubaldo Ribeiro terá de os atravessar, e dentro desses romances tentar
encontrá-lo, e também à sua marca.
Será
isto conversa de escritor, ou os escritores têm marcas? Há escritores
reconhecíveis à distância, numa leitura cega, e há outros de mais difícil
identificação? Diante de um escritor como Ubaldo, em que não se detecta um
estilo formal ou temático explícito a permear os seus romances, há então o quê,
à excepção da assinatura, a agrupá-los? Sua obra romanesca é tematicamente
sortida, o que tem dado ensejo a múltiplas abordagens, com variados resultados.
Deve haver, no entanto, um centro nervoso, uma “marca” a enlaçar textos tão dissemelhantes.
É
um curioso personagem ubaldiano, batizado no romance Viva o povo brasileiro de a “almazinha brasileira”, que pode
iluminar uma leitura dos demais livros, anteriores e posteriores a 1984, e nos
ajudar a identificar a “marca” do escritor baiano. É este personagem também que
pode funcionar como a representação ficcional de um modo de se narrar ampla e
radicalmente utilizado pelo autor: o discurso indirecto livre.
A
almazinha de Ubaldo aparece como uma das mais brilhantes ideias da literatura
brasileira, e justamente porque se comporta tal qual um discurso indireto livre
o faria, sobrevoando as inúmeras histórias que compõem um romance e não se
identificando de modo restrito com nenhum personagem; antes, de maneiras
diversas, conseguindo ser cada um deles e ao mesmo tempo não ser nenhum, sendo
apenas ela mesma, de algum modo única e sozinha. A almazinha que surge às
primeiras páginas de Viva o povo...
atravessa quatro séculos e algumas gerações, sempre a encarnar em
pobres-diabos, índios tupinambás, negrinhas escravas maltratadas ou ainda
soldados brasileiros mortos na flor da idade, como foi o caso do pescador e
alferes José Francisco Brandão Galvão.
O
jovem, atingido pelas balas portuguesas, cai morto no cais da Ponta das
Baleias, na Baía de Todos os Santos, com o crânio em pedaços. Mas José
Francisco, graças às palavras de amor à pátria que teria supostamente proferido
à hora da morte, se tornou, da noite para o dia, um herói da independência.
Naquele
dia de 1822, a almazinha que habitava o corpo do alferes um segundo antes do
passamento afinal se despega, às carreiras, e sobe mais uma vez aos céus,
aboletando-se no “Poleiro das Almas”, sítio onde se aboletam as almas enquanto
esperam pelo momento de mais uma vez poder descer e encarnar noutro ser.
Permanecendo almas, não aprendem nada; encarnando, aprendem as razões da vida.
As almas precisam ser, e cada
encarnação de uma alma é um modo de ser.
E é essa almazinha brasileira que acaba por ser, ao fim e ao cabo, o mais
constante personagem do caudaloso romance de Ubaldo. Ela entra e sai das
histórias mais diversas, através de encarnações e desencarnações que partem do
século XVII e chegam ao XX — quatro séculos de tiranias e humilhações —, para
compor a eloquente amostra de alguns específicos modos de ser brasileiro.
Quais
modos de ser? Do entrelaçamento de
todas as histórias do livro e dos cruzamentos familiares verificados ao longo
de tantas décadas destacam-se, do quadro ficcional, três personagens, analisados
pela professora Eneida Leal Cunha, na sua tese Estampas do imaginário — literatura, cultura, história e identidade
(Dep. Letras, PUC-Rio, Rio de Janeiro, 1993). José Francisco, que a posteridade
reconhece como o heroico alferes Brandão Galvão, encarnará a ideia do
patriotismo vazio que atravessa o imaginário brasileiro, do povo às elites. Um
índio tupinambá, que chamam de Capiroba, habitante da ilha de Itaparica pelos
idos de 1647, canibal de gosto exigente e apreciador da carne holandesa,
transforma-se na possibilidade de se poder ouvir uma voz sempre silenciada nos
relatos da história oficial: a do índio em processo de catequização. E
transforma-se também — porque o centro da acção, aqui, é a catequese forçada,
uma vez que o índio não se submeteu à conversão — no produto, levado às últimas
consequências antropofágicas, do que lhe haviam ensinado os padres jesuítas: a
celebração da Eucaristia.
A
terceira encarnação da almazinha brasileira recairá sobre uma mulher. A jovem
guerrilheira Maria da Fé parece constituir uma vontade do autor de que seja
ela, das três, a mais apropriada encarnação da alma do povo brasileiro —
almazinha inquieta e indecisa, é verdade, mas possuidora de um grande desejo de
ser. Os três personagens carregam por
toda a vida, habitando-lhes as entranhas, a almazinha brasileira que constitui
o ser do romance; e carregam também,
agora nos ombros, a responsabilidade de constituírem, cada um à sua maneira,
uma tentativa de representação da assim chamada “identidade nacional”.
Esta
almazinha é então esses três
personagens, e não é nenhum deles,
sendo apenas ela mesma e igual apenas a si mesma. Esta almazinha pode ser uma
resposta à nossa busca pela “marca” do autor, na medida em que este insólito
personagem funciona como uma representação ficcional, portanto interna à obra,
de uma outra coisa, esta, sim, constituinte e fundante do universo romanesco: o
narrador. A natureza do narrador na obra de João Ubaldo Ribeiro é a mesma da
almazinha voadora: errática e ambígua quanto à sua identidade.
Ubaldo
leva às últimas consequências, como poucos escritores o fazem, o discurso
indirecto livre, que se apresenta, na sua narrativa, com uma radicalidade
joyceana. E quais são essas “últimas consequências”? São graves. O que se
espera de um narrador? Que conheça a história que vai contar. Mas o narrador
ubaldiano, que não consegue mover-se e falar senão como se move e fala o
personagem que está incorporando, não conhece a história que deveria contar,
salvo nos raríssimos momentos em que não está “incorporando” algum personagem.
Assim
como a almazinha, que necessita encarnar para aprender, o trabalho do narrador
vai desenrolar-se ao longo de um determinado percurso de vida — a sua vida de
narrador ao longo dos principais romances do escritor. De Setembro não tem sentido, de 1968, a O albatroz azul, publicado 41 anos mais tarde, vislumbra-se um
caminho, linear no tempo, de progressiva e nítida abertura, que parte do
personagem ensimesmado e avança em direcção a uma nova condição — condição que inclui
os relacionamentos desse personagem com os grupos sociais que o envolvem, cada
vez maiores e mais complexos, e também consigo mesmo e com a História.
Assim
é que o seu primeiro romance, Setembro
não tem sentido, se concentra na figura de Orlando, fechado em seu quarto e
em si mesmo e demonstrando angústia e falta de perspectiva. Este romance tem a
velocidade e a criatividade de um livro no qual claramente se inspira: O retrato do artista quando jovem, de
James Joyce.
O
facho da narrativa começa a abrir-se para o mundo no romance seguinte, Sargento Getúlio, de 1971. O narrador
apresenta-se aqui em primeira pessoa, o próprio sargento, e por todo o livro o
que faz é falar, não apenas de si, mas do que faz na vida: ser sargento, ser um
empregado de seu chefe e ser portador de uma missão: levar um preso tido por
comunista de um lugar para outro. Sargento
Getúlio foi traduzido para o inglês pelo próprio Ubaldo e inspirou um
estupendo e premiado filme homónimo, do realizador brasileiro Hermano Penna,
com o actor Lima Duarte no papel principal. Observamos, neste segundo romance, o
personagem Getúlio diante de sua missão e diante de si mesmo. Não há à sua
volta nenhum grupo social a que pertença; há apenas ele, Getúlio, o desgarrado.
A narrativa e o leitor estão encarcerados na mente de Getúlio.
Oito
anos mais tarde chega ao público o romance Vila
Real (1979). O personagem Argemiro torna-se ao longo da história um líder natural
para o seu povo; um homem pouco preocupado consigo mesmo e dolorosamente
comprometido com os valores e os problemas da sua comunidade. Toda a narrativa
se mantém encaixada na terceira pessoa, usando e abusando, no entanto, do
discurso indirecto livre, para dar conta do universo subjectivo de Argemiro,
contraposto às agruras objectivas do povo de Argemiro, uma comunidade rural
situada na região da Jurupema, ameaçada de todos os lados por povos inimigos.
Não há aqui uma perspectiva nacional; não há perspectiva outra senão a da
comunidade. Não se fala de Brasil; fala-se da região da Jurupema. O diâmetro do
facho narrativo não ultrapassa as cercanias de Vila Real. O facho, no entanto,
abriu-se um pouco mais. Já se pode ver que a área iluminada pelo narrador
ultrapassa em muito os interesses particulares dos protagonistas, não mais
fechados em seus quartos ou preocupados apenas em cumprir uma ordem e se manter
em paz consigo próprios.
Com
o romance Viva o povo brasileiro
(1984), João Ubaldo, a começar pelo título, que não fala de um homem, Getúlio,
nem de uma vila, a Real, mas de um povo, o brasileiro, dá mostras de avançar e
ampliar sensivelmente o facho de interesses e o universo temático do seu
narrador. O grupo social de que se fala agora é outro, ou são vários: o povo
brasileiro como um todo e cada uma das suas partes — pretos e brancos, e dentro
dos brancos os portugueses, holandeses, alemães e ingleses, e dentro dos pretos
os de vários tipos e origens, e entre eles todos os pardos, mulatos, cafuzos e mamelucos.
Tudo
isso está representado pela gente de um mesmo lugar, o seu universo por
excelência: o Recôncavo Baiano. Os rudimentos de uma ideia de pátria envolvem
todos os personagens e relativizam os seus projectos particulares em nome de
uma causa maior, de âmbito nacional. Foi a partir de Viva o povo... que se começou a falar, acerca da obra de Ubaldo, da
necessidade cultural, espelhada na literatura, de se contornar com mais nitidez
o que se convencionou chamar de “a questão da identidade nacional”.
O
romance seguinte, O sorriso do lagarto,
de 1989, cujo protagonista é um cientista, inaugura uma nova direcção no grupo
de temas do escritor. Mesmo se passando em Itaparica, o livro não tem como
preocupação contar a história desta ilha baiana e do seu povo. O narrador
ilumina os seus personagens com um assunto de responsabilidade internacional e
alça-os à condição não mais de representantes de um povo do Recôncavo Baiano ou
do Brasil, mas de uma ideia de humanidade. Os alvos dO sorriso do lagarto são a ciência, a engenharia genética, as
consequências sociais do mau uso da tecnologia e a suposta presença de uma
ideia universalista do mal nas condutas humanas.
No
romance que se lhe segue, O feitiço da
ilha do Pavão (1997), esse facho narrativo, que começou com o indivíduo e
chegou à humanidade, realiza agora a sua abertura mais radical: através do
tempo histórico, para afirmar uma dilatação não apenas do seu ambiente
ficcional, mas do raio de acção de uma liberdade humana sem precedentes. O
facho dilata-se para dentro do tempo, não como em Viva o povo..., que cobre quatro séculos da história brasileira,
comendo-a pelas bordas, mas através da exploração radical de uma espécie de
leque de possibilidades — à semelhança da cauda de um pavão. Para tanto, parte
do seguinte ponto, simples: a História está todo o tempo a ser alterada em seu
futuro pelos actos cometidos no presente. O
feitiço..., no entanto, não pára aí; utiliza-se da metáfora da viagem no
tempo para dar conta da ideia de que a História também pode ser alterada
retrospectivamente — um outro modo de se dizer que o passado pode ser
reinventado, sim, a depender do caminho interpretativo que se percorra, tal
qual uma obra literária...
Como
se viu, o facho narrativo de Ubaldo se foi abrindo, de 1968 a 1997, e o seu
narrador, a cada abertura, se foi tornando mais e mais comprometido com algo
que o ultrapassa. Os romances Miséria e
grandeza do amor de Benedita (2000) e A
casa dos Budas ditosos (1999) não se encaixam em tal caminho interpretativo;
enveredam por um desvio face à linearidade observada nos seis livros anteriores.
São romances escritos em função de encomendas específicas: A casa dos Budas ditosos, para a série “Plenos Pecados”, da editora
brasileira Objetiva; e Miséria e grandeza
do amor de Benedita, inserida no projecto da editora Nova Fronteira de
criação do primeiro e-book
brasileiro.
Em
2002, com a publicação de Diário do farol,
o autor regressa ao ponto de partida: o quarto fechado, onde o facho parece estreitar-se
novamente para os limites do indivíduo ensimesmado. Parece estreitar-se, mas na
verdade se amplia. O protagonista do Diário...,
dentro do seu quarto, talvez o quarto de uma instituição psiquiátrica,
dispõe-se a forjar a sua biografia, com paciência e detalhes. O facho volta a
dirigir-se ao indivíduo, mas se dilata para dentro do universo infinito das memórias
de infância, do inconsciente e da loucura.
Com
O albatroz azul, o seu último
romance, de 2009, Ubaldo narra com uma tristeza e uma melancolia que já o
acompanhavam de alguma forma. É o seu romance mais introspectivo e triste.
Tertuliano Jaburu, o protagonista, é um homem triste; a vida de Tertuliano é,
na sua maior parte, também triste, e de uma tristeza serena e constante, sendo
os seus momentos menos tristes ironicamente aqueles em que passa a acreditar
que irá morrer dali a pouco, anunciando assim a boa nova aos amigos; a história
de seus antepassados é triste, e não poderia ser senão triste o tom do
narrador, uma vez que está quase todo o tempo em focalização interna com
Tertuliano — um narrador que só não fala mais da morte e da velhice porque tem
uma história de vida para contar, ou um romance para escrever.
Mesmo
assim é da morte que fala, e é para ela e o seu infinito que se amplia o foco narrativo.
Com este romance o leitor conhece um novo e último Ubaldo, agora às voltas com
um novo e último tema, que é o velho tema, o tema de sempre, o tema de todo
dia, que é o próprio fim, uma das maneiras de se falar da própria vida.
Toda
essa gradual abertura para universos mais amplos e complexos, da infância à
velhice e à morte, obriga o narrador de Ubaldo a “encarnar” em mais vidas e a
se comprometer com problemas cada vez menos particulares. Ao longo do facho,
que é sempre outro e mais amplo, já não são um ou dois, mas uma grande
comunidade de personagens a reivindicar para si esse narrador. Talvez seja esta
a “marca” que procurávamos — esta “almazinha brasileira” que está lá em cada
personagem, e ao mesmo tempo não está, e que será sempre aquilo que nos escapa.
A almazinha de João Ubaldo Ribeiro, no entanto, esta não nos escapa: está
impressa, página a página, aguardando leituras e releituras eternas. Isto é um
convite.