Como ser um autor inédito, um autor publicado, um autor de um livro só,
uma “coisa assim” num aquário ovalado, um sujeito em risco, um travesso?
Convidaram-me um dia para
participar de uma mesa redonda cujo tema era “O autor inédito”. Como havia
outros participantes que, pela idade e pelo currículo, estavam bastante longe
da condição de jovens escritores, ainda por cima inéditos; eram antes
intelectuais de peso, nome e renome, deduzi sem esforço que o papel de autor
inédito, naquela mesa, não cabia a mais ninguém, senão ao pobre de mim. Comecei
a ficar nervoso uns dias antes, mas pensava, para a minha tranqüilidade, que a
presença do Juva, ali, seria praticamente ilustrativa, tal como se eu fosse um
espécime colhido ao acaso em meio a um cardume de seres semelhantes ao pobre de
mim: os jovens escritores brasileiros, inéditos e ávidos por uma publicação.
Todos na mesa usarão da palavra, todos debaterão com paixão e lucidez o tema
proposto, mas ali, naquele debatedouro, apenas eu não teria esse encargo. Sou,
afinal, o autor inédito, pensei; sou, afinal, aquele de quem se falará
exaustiva e brilhantemente. E me preparei para não falar nada, no máximo uma ou
outra expressão de aturdimento, às vezes de desamparo.
É verdade que eu disse imediatamente
às simpáticas moças que me convidaram que eu não era mais um autor inédito, tendo
publicado na vida quatro livros, o quinto no prelo, alguns contos, alguns
artigos, nenhum poema de amor ainda, mas nunca se sabe, e as simpáticas moças me
bateram às costas: “Mas já foi autor inédito! E, além do mais, é um jovem autor!
É de coisas assim que precisamos!”. Eu gostei mais daquele “jovem autor” do que
do “coisas assim”, e passei o dia todo amuado, vendo a mim mesmo não mais que
uma “coisa assim”, ansiosa e atordoada. No dia marcado, entretanto, e como sou
cumpridor dos meus compromissos, me enchi de brios e fui. Estavam na mesa dois
editores, um agente literário, dois intelectuais inteligentes e eu: o autor inédito,
o jovem autor, a “coisa assim”, ou que quer que seja que se encaixe na fôrma da
minha condição. Cheguei a sonhar, um dia antes, que meu lugar não seria à mesa,
mas na mesa mesmo, e dentro de um aquário ovalado e transparente, por onde me
veriam não falando, que uma “coisa assim” não fala, mas soltando belas bolhas.
Foi quase isso. Mal nos sentamos,
cumprimentativos e sorridentes, e todo o mundo ficou me olhando, até mesmo
eles, os estudiosos da minha condição. E enquanto falavam entremeavam suas
digressões com pausas que se destinavam a viabilizar um exame mais minucioso
daquela criatura que ali estava, aberta à visitação e com o seu melhor sorriso
amarelo. E era como se dissessem à platéia de ouvintes: “Olhem para ele,
observem-no, tem um olhar obcecado, uma postura obstinada, vê editores em todos
os cantos, sonha com editores, faz vodu com editores”. E imaginei a mim mesmo,
ou lembrei de mim mesmo, no papel do autor inédito, a andar, erradio e
obstinado pela chamada cidade grande, olhando para os lados e repetindo para mim
mesmo: “Sou um autor! Sou um autor!”, ao mesmo tempo em que o resto do mundo me
atirava à cara a outra condição: “És inédito! És inédito!”.
E talvez eu seja mesmo. Meus
cadernos de caligrafia, escritos com algum esforço no início da década de 70,
ainda estão inéditos, e ainda haverá um intelectual inteligente que convencerá
um editor astuto do valor daquilo, no que concerne à crítica genética,
biográfica e arquivística (eu já não estarei neste mundo...). Sou um autor
inédito porque metade da minha vida acadêmica está dentro da gaveta. Sou um
autor inédito porque sempre que me sento para escrever algo novo em folha é
como se estivesse indo tomar a primeira injeção: tenho medo de que doa; doa
sentar-se, permanecer sentado hora e meia e se levantar, com cara de bobo, sem
ter escrito uma única linha, somente bolhas. Felizmente isso quase nunca
acontece (ou eu nunca confesso que aconteça), mas é mais fácil acontecer essa
fatalidade literária a alguém que já tem um livro publicado do que a um
aventureiro que nunca publicou nada. Eu usei a palavra “aventureiro” de
propósito, pensando nos sentidos potentes que tem essa palavra. Se a literatura
é uma aventura do espírito (sim, isso é um lugar comum, mas vamos tentar
retirar essa idéia do lugar-comum e olhar para ela como se pela primeira vez;
esse procedimento salva muita coisa do lugar comum...); se a literatura é uma
aventura, quem escreve deve se debruçar, antes de tudo, sobre uma aventura, ou
seja, sobre um risco. Uma pessoa que nunca tenha publicado um livro; que não
seja, portanto, o que se chama de “autor publicado”, pode viver essa aventura
de um modo mais produtivo, porque não carregará nas costas qualquer título ou
passado literário público, por menor e irrelevante que seja. Um autor
publicado, infelizmente e em muitos casos, mete na cabeça um série de minigâncias
idiotas, compromissos literários inexistentes e responsabilidades para com
algum tipo de expectativa cuja origem está na figura abstrata de um leitor, e pronto:
está montado o quadro para esse sujeito simplesmente meter os pés pelas mãos, sentar-se,
ficar hora e meia pensando na Literatura com maiúsculas e sair da cadeira com nada
mais que a cicatriz de uma picada.
Tudo isso que eu disse acerca da
potência de se sentar para escrever sem um passado literário às costas fica
muito bonito escrito e mesmo lido em voz alta, mas também é chato e mentiroso.
Ninguém que se considere um escritor e que goste de ser um escritor e que
precise ser um escritor porque precisa escrever e, escrevendo, ganhar dinheiro
e confiança e auto-estima com aquilo que escreve — ninguém vai querer dedicar-se
ao rito de retornar estrategicamente à condição de autor inédito toda a vez em que
se dispuser a se sentar para escrever. Eu me lembro que apreciei bastante o dia
em que deixei de ser esta “coisa-assim-tipo-autor inédito” e passei a ser esta “coisa-assim-tipo-autor
publicado”. É claro que me dediquei, antes do advento daquele dia, a uma certa
produção — produção que incluiu, entre outras coisa, escrever, sim, mas não só.
A primeira providência que tomei
para deixar de ser autor inédito foi mudar o nome, seguindo os preceitos do
Mário de Andrade: “Fernando Tavares Sabino, si você quiser continuar sendo
escritor, antes de mais nada tem que encurtar o nome. Tavares Sabino, Fernando Tavares,
Fernando Sabino. O que é impossível é Fernando Tavares Sabino. Me desculpe esta
sinceridade e entremos pelos outras”, escreveu o Mário para o Fernando, em
janeiro de 1942.
A segunda coisa que fiz para
deixar de ser autor inédito foi deixar de lado a preocupação muito consciente
de que deveria abandonar a condição de autor inédito. E então comecei a
escrever assim, como quem não queria nada. Escrevi, como já disse a Marguerite
Duras e eu citei aqui uma outra vez, escrevi para saber o que eu escreveria se
escrevesse... E, como quem não quer nada, publiquei; publiquei para saber o
quer eu publicaria caso publicasse... O Mário diz que os estreantes devem pôr
no primeiro livro a idade que têm. Eu pus, e ainda pus uma foto minha de cinco
anos antes, para impressionar os mais velhos.
Depois, quando já não era mais
autor inédito, sentei para escrever com o propósito de reforçar a idéia de que
eu já não era mais autor inédito, mas ainda era, pior dos piores, “autor de um
livro só” — o que deve ser bem mais angustiante do que ser autor inédito, porque
o autor de um só livro passa aos outros, e a si mesmo (o que é desgraçadamente
mais grave), a sensação de que tudo o que tinha a dizer já disse, e não há
portanto mais nada, tendo sido aquele primeiro livro nada mais que um espasmo,
um acaso, um surto, um arroubo que aconteceu e pronto: não vai mais acontecer,
prometo. Em menos palavras: pode ser mais custoso escrever o segundo livro que
o primeiro. Pudera... São escritos por autores diferentes (quem escreve o segundo
livro é o “autor publicado”, que sofre, não raro, da moléstia da dupla
personalidade, uma vez que ele pode ser também o amofinado “autor de um livro
só”, ao passo que quem escreve o primeiro livro é simplesmente, e nada mais, o
“autor inédito”, ou seja, o sujeito em risco). De minha parte, no entanto, a
estratégia vem funcionando. Na hora em que me sento para me dedicar a escrever
o meu quinhão de escrita diária, faço de tudo para me sentir, o mais
verdadeiramente possível, um autor inédito, um amador, um aventureiro dedicado
a descobrir, de preferência com espanto e delícia, qual a travessura que faria,
caso a fizesse.
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