21 de janeiro de 2008

"Blogue dorminhoco"

Combatentes e combatentas, navegantes e navegantas,

Não direi que o blogue não está dorminhoco porque não é verdade. Ele está. Mas eu não. Cheguei ao Rio, diretamente do meu Santo Amaro, e estou num anda-e-anda-e-sente-o-calor; num entra-e-paga-e-sai-de-táxi; num senta-e-pede-o-chope-e-fala; num acena-e-paga-a-conta-e-levanta; num atende-e-fala-no-celular-e-marca um novo-chope-que-entra-na-noite; num senta-aí-e-espera-a-rodada; num pega-a-Pipoca-e-ruma-pra-praia; num arranja-um-canto-na-areia-e-relaxa, num entra-e-sai-do-chuveiro-e-se-seca, num novo-chope-com-nova-galera; num fala-fala-que-avança-e-recua; num cai-na-cama-e-apaga-e-sonha; numa Nossa-Senhora-da-Intensa-Correria. Estou tão atubibado que nem sei se terei tempo de deixar registrado aqui que estarei nesta terça-feira, dia 22 de janeiro, às 20h, lá na livraria Argumento do Leblon, autografando livros novos. Tão cansado que nem…

11 de janeiro de 2008

"Tertulinhas – A teoria das duas hipóteses"

Temos cá em Portugal um grupo tertúlico (que vem de tertúlia, que vem de Tertuliano, que vem, provavelmente, de um verbete da Wikipédia, chequem lá…). Este grupo tertúlico se reúne de vez em quando (quando nos dá na veneta) para comer bem, beber bem e ler coisas literárias. Começou com seis pessoas, e agora estamos em dez. O encontro acontece assim: algum casal faz o convite, por e-mail, aos outros, e alguns dias depois todos nos reunimos na casa do casal convidante. Passamos a semana ansiosos, tomamos banho, botamo-nos bonitos e charmosos, perfumamo-nos, saímos de casa, tocamos a campainha, o casal convidante (também ele banhado, perfumado e embonitado) abre a porta, e começa então uma festa de conversas, risadas e aperitivos sólidos e líquidos (vou usando o trema antes que acabem com ele). Depois nos atiramos a um jantar, como dizem os portugueses, à grande, e findo o jantar, mas antes da sobremesa, cada casal saca do bolso a coisa literária que passou a semana escolhendo e debatendo e lê para os demais, todos à volta de uma mesinha de centro regada a vinho do Porto. Ouvimos em silêncio e em seguida batemos palmas, comentamos a coisa literária lida, rimos e ficamos emocionados. A ideia é mesmo boa, e basta dizer que este grupo se conhece, hoje, lendo as coisas literárias que vem lendo, muito mais do que se conheceria caso não lesse as coisas literárias que vem lendo, porque cada coisa literária escolhida e lida começa a dizer um pouquinho de cada um, e assim vamos nos desbravando e nos aprofundando. As escolhas são ótimas. Já lemos Sophia de Mello Breyner, Beckett, Cortázar, Augusto Monterroso, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, José Régio, Fernando Pessoa, Mia Couto, Borges, Ruy Belo, uma peça bem escrita e bem construída, escrita pela filha de um dos tertúlicos, e outros, muitos outros, que agora a memória não me ajuda. Uma dessas peças eu reproduzo hoje aqui: um trecho de Memórias do Cárcere, do Graciliano Ramos, que relata a teoria de um dos seus companheiros de cela, um tal Apporelly — a chamada “teoria das duas hipóteses”. Vamos a ela?

“… Sem demora, uma voz pastosa, hesitante, anunciou a teoria das duas hipóteses. Risos contagiosos interromperam com freqüência a exposição. Consegui entendê-la por alto. Otimista panglossiano, Apporelly sustentava que tudo ia muito bem. Fundava-se a demonstração no exame de um fato de que surgiam duas alternativas; excluía-se uma, desdobrava-se a segunda em outras duas: uma se eliminava, a outra se bipartia, e assim por diante, numa cadeia comprida. Ali onde vivíamos, Apporelly afirmava, utilizando o seu método, que não havia motivo para receio. Que nos poderia acontecer? Seríamos postos em liberdade ou continuaríamos presos. Se nos soltassem, bem: era o que desejávamos. Se ficássemos na prisão, deixar-nos-iam sem processo ou com processo. Se não nos processassem, bem: à falta de provas, cedo ou tarde nos mandariam embora. Se nos processassem, seríamos julgados, absolvidos ou condenados. Se nos absolvessem, bem: nada melhor, esperávamos. Se nos condenassem, dar-nos-iam pena leve ou pena grande. Se se contentassem com a pena leve, muito bem: descansaríamos algum tempo, sustentados pelo governo, depois iríamos para a rua. Se nos arrumassem pena dura, seríamos anistiados, ou não seríamos. Se fôssemos anistiados, excelente: era como se não houvesse condenação. Se não nos anistiassem, cumpriríamos a sentença ou morreríamos. Se cumpríssemos a sentença, magnífico: voltaríamos para casa. Se morrêssemos, iríamos para o céu ou para o inferno. Se fôssemos para o céu, ótimo: era a suprema aspiração de cada um. E se fôssemos para o inferno? A cadeia findava aí.”

Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere, vol. 1, Rio de Janeiro/São Paulo, Record/Martins Fontes, 1975, p. 231-232.