9. “Diante do espelho”, Revista Lilica and Tigor, São Paulo, out. 2012 (data aproximada).
A vida é uma
coisa que vai acontecendo aos poucos, tim-tim por tim-tim, mas às vezes não é
bem assim. O programa em si, apesar de aguardado e vivido como “dia especial”,
foi bem prosaico. Dizem, no entanto, que é no vai e vem das ondas desse ir e
vir cotidiano que se desvelam as cenas que nos transformam – aquelas que
depois, e somente depois, revelam o quanto estávamos a vivenciar, exatamente, o
que se chama “a divisão das águas”.
Eu estava
desde o café da manhã com a música “O xote das meninas” (Luiz Gonzaga & Zé
Dantas, 1953) rebolando dentro da minha cabeça; na verdade, com uma das duas
deliciosas interpretações da Marisa Monte, e em especial os primeiros versos: “Mandacaru/
Quando fulora na seca/ É o siná que a chuva chega/ No sertão/ Toda menina que
enjoa/ Da boneca/ É siná que o amor/ Já chegou no coração.../ Meia comprida/
Não quer mais sapato baixo/ Vestido bem cintado/ Não quer mais vestir
timão...”.
E, a partir
do meio da manhã, pensando já no tal programa: o almoço com a minha filha Alice
(a Pipoca), com quase 10 anos de idade, e um amigo do coração, que, além de
amigo do coração, vem a ser o padrinho da miúda.
Trata-se de
um rito: sempre que saímos de Lisboa e vamos para o Rio de Janeiro, reservamos
um dia especial para esse prosaico almoço especial, e após o programa a três
acontece o programa a dois, que significa um passeio do padrinho com a
afilhada, por várias lojas e sem qualquer pressa, para que ele lhe dê, a ela,
um presente ao vivo, ali na hora, e por ela escolhido — o presente do padrinho.
Assim fazemos há uns anos. Eu acompanho a dupla, mas de longe e proibido de dar
pitacos, impedido de me meter: um assunto lá deles, um momento de afeto, intimidade
e delicadeza. Às vezes entro numa livraria para sair do mundo. E assim fiz
dessa vez, esquecido da vida, metido nas páginas e sem conseguir parar de
cantarolar que toda menina que enjoa da boneca é sinal de que o amor já chegou ao
coração…
E chegaram os
dois à livraria, uma hora depois e com o presente escolhido, comprado e dado.
Foi então que percebi o quanto ele estava emocionado; o quanto desejava
compartilhar comigo o que viu e sentiu quando a viu e a sentiu, a ela, Alice,
diferente e mais mulher (ou mais menina), a escolher enfim o seu presente, que não
era uma boneca, como sempre foi, mas algo diferente; e não era apontando o dedo
e gritando “Quero esta!”, como sempre foi, mas quieta e concentrada, a passear
os dedos tamborilantes entre as saias e os vestidos dependurados; retirando em
silêncio as peças prováveis dos cabides; colocando-as à sua frente, também em
silêncio, num ensaio de experimentação que incluía virar-se de lado, de frente,
de costas, aproximando-se e afastando-se do espelho, num ritmado ir e vir, num
atento, lento e intimista mirar-se a si mesma e vendo, não mais a
menina-criança que antes víamos, pai e padrinho, mas a menina-mulher que
passamos a ver, transformada, diante do espelho.
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