Andei lendo bastantes livros
ultimamente, procurando nos livros um bocado da ação e da aventura que não
encontro lá tanto assim aqui em Santo Amaro... E das coisas mais gostosas que
há no mundo é terminar um livro e sair andando pela biblioteca da casa à
procura do próximo. Fico às vezes um ou dois dias nessa procura, excitadinho, como
um menino que acabou de aprender a ler. Vou folheando alguns e dizendo para mim
mesmo e para ele, o folheado: “Não, ainda não é o momento para ti, talvez algum
dia, quem sabe...”. E recoloco-o no lugar, o preterido, para partir em busca de
um outro, com o qual flerto com simpatia, uma simpatia tamanha que quase vejo o
livro alvoroçar-se na estante, à espera de ser ele o próximo escolhido, de ser
ele a sair daquele aperto cruel da prateleira, cada vez mais apertada, e gozar
da liberdade de andar por aí por Santo Amaro, carregado por mim para lá e para
cá, acompanhando-me por alguns dias, ora no meu colo, ora na minha mesa, ora no
meu carro, ora na rede da minha varanda — aquele que irá, de certeza, toda
noite para a cama comigo.
Fiz todo esse
caminho de flertar com as estantes, fazer a minha escolha e iniciar com um
livro um relacionamento estável (leia-se: ler a criatura de cabo a rabo) em
cima dos seguintes títulos, ao longo de 2007: Pelos olhos de Maisie, do Henry
James; Bouvard e Pécuchet, do Flaubert; Sábado, do Ian McEwen; Complexo de
Portnoy, do Philip Roth; A cidade e as serras, do Eça de Queirós: e Ulisses, do
James Joyce. Tenho de me conter porque senão falo de todos — não uma crítica
literária coesa, coerente, redondinha, enfim (tarefa assaz trabalhosa), mas uma
conversa de mesa de jantar, cheia de “achei isto”, “achei aquilo”, “não gostei
disto”, “não gostei daquilo”.
O ritmo de leitura até que não
estava mal. Mas quando peguei no Ulisses foi como se o peso às minhas costas
duplicasse e a velocidade, assim, caísse. Carregar aquelas 815 páginas para
todo canto já foi uma tarefa. Lê-lo foi como deambular pelo inferno com os olhos
vendados. A culpa foi da minha mulher, que me disse, justamente quando estava
eu nesses passeiozinhos de prateleira e calhou-me de retirar do aperto da letra
“J” o famosíssimo e aclamadíssimo romance, do qual, como disse o T. S. Eliot,
“jamais escaparemos”. Eu disse ao livro: “Um dia ainda te pego...”, e olhei
para ela, que me disse: “Acho que já são horas. És um escritor, és um doutor em
Literatura, já são mesmo horas de pegares o Ulisses...”.
Aquilo foi, e ela sabe
disso, um desafio. E eu, para impressionar a minha mulher (não se deve perder
uma única oportunidade de impressionar uma mulher), disse, valentão: “Está
certo. Vou iniciar esta viagem”. Sentei-me e abri a primeira página,
excitadíssimo porque eu sabia que iria até o fim e não faria como das outras
vezes, em que o abri, li a primeira página, soltei uma risadinha e voltei a
fechá-lo, dizendo para mim mesmo: “Não, isto não é para o seu bico...”. Não foi
o bico que cresceu; foi o destemor, ou, em outras palavras, foi o livro que
diminuiu. Tive de o diminuir, retirando-lhe todo aquele caráter assustador e
glorioso.
A tarefa durou sete meses, da
primeira à última página. Mas eu, que não sou bobo, entrei no livro munido de
algumas armas: as notas explicativas da professora Bernardina, a tradutora; um
livro do Nabokov, Aulas de literatura, em que dedica umas boas cem páginas ao
Ulisses; um livro do crítico Edmundo Wilson, O castelo de Axel, em que também
dedica páginas e páginas a tentar amolecer e domesticar o livro, e mais um
sem-número de artigos colhidos na internet. Tenho aqui no blogue, ao lado, um
link (Ulysses
for Dummies) dedicado ao Ulisses.
Terminei-o enfim, e confesso duas
coisas: que houve momentos (vários), em que achei aquilo a coisa mais chata do
mundo; e outros (raros, mas de uma intensidade literária total), em que o
considerei único, dizendo a mim mesmo que nunca na vida iria encontrar espécime
sequer semelhante. Mas por que é que o li? Antes de tudo por se tratar de um
fetiche. Depois, por uma questão de curiosidade literária. Este livro está em
todas as listas que se fazem dos melhores livros de todos os tempos. Não sei
quanto dura este “de todos os tempos”, porque hoje em dia há livros escritos
com desconcertante originalidade, não apenas temática mas formal. Gostaria de
voltar e esse assunto do Ulisses, com mais vagar. Li-o, afinal, pensando em
colocar aqui no blogue algumas coisas ótimas. Li-o como se deve ler um livro de
que se gosta: com uma caneta na mão para fazer frente à borracha da memória.
Juva!! Que bom te encontrar por aqui.
ResponderExcluirComo vão suas meninas?
E como vai sua linda casa, sua linda Oeiras?
Beijos!
Socorro Acioli
Juva, eu adorei esse post! passear nas suas letras é... delícia em estado puro! ai ai... beijos, Mariela
ResponderExcluirsei como é essa sensação de sair à caça de um novo livro na estante. também tive cá meus problemas com ulisses e nunca fui capaz de encará-lo de frente (as péssimas traduções que encontrei pela frente contribuiram bastante para isso, mas não são as únicas culpadas: tive preguiça também). se ainda não leu, sugiro ir fundo em complexo de portnoy e a cidade e as serras. este último é, pra mim, o melhor livro do eça. mas falo demais, falo demais. grande abraço e feliz ano novo.
ResponderExcluir